Resposta à pergunta sobre mt 23,9 “a ninguém chameis de pai”

O leitor Marcos Monteiro Grillo, da Igreja Luterana, fez-nos a seguinte pergunta:

Prezados irmãos, 

 

Gostaria de pedir que explicassem, a mim e aos estimados leitores, como compreender o versículo de Mateus 23,9: “E a ninguém sobre a terra chameis vosso pai; porque um só é o vosso Pai, aquele que está nos céus.”. Por que os católicos chamam seus sacerdotes de “padre” (pai) e o bispo de Roma de “Papa” (do latim vulgar papa, “pai”)? Terão a Tradição e o Magistério tanta ou mais autoridade do que as Sagradas Escrituras, ou melhor, do que Nosso Senhor Jesus Cristo, que proferiu as palavras registradas no versículo supracitado? 

 

Sugiro a leitura de todo o capítulo 23 de Mateus“.

 

Segue em sua pergunta, na íntegra, o texto de Mt 23, que creio não ser necessário postar aqui.

 

Para responder a esta pergunta devemos entender que a Bíblia não deve ter suas letras retiradas do contexto para qualquer interpretação. Este é um princípio básico para a hermenêutica bíblica. Como dizem “texto fora de contexto é pretexo”, e este é um dos exemplos de textos fora do contexto, usados e ensinados pelos protestantes para tentar polemizar a Igreja Católica.

 

Mas uma vez, sem sucesso. Vejamos porque:

 

Jesus, nesta citação, ao invés de estar proibindo qualquer um de chamar alguém de pai, está tratando de um assunto bem diferente. Ele está falando a respeito da hipocrisia dos fariseus e doutores da lei, que punham Deus de lado e se colocavam em Seu lugar. Vejamos os versículo 6 e 7 deste mesmo capítulo:

 

6Gostam de ocupar os primeiros lugares nos banquetes e os primeiros assentos nas sinagogas; 7de serem saudados pelas pessoas na rua e serem chamados mestres

 

Jesus está explicando em quê sentido não se deve chamar ninguém de Pai.

 

Se tomarmos este versículo da forma literal, estaremos criando um grande problema, pois nos Evangelhos encontramos muitas citações onde é usado este título:

 

Mt 10,37: “Quem amar seu pai ou sua mãe mais que a mim, não é digno de mim; quem amar seus filho ou sua filha mais que a mim, não é digno de mim“.

 

Mt 15,4: “Pois Deus mandou: sustenta teu pai e tua mãe. Aquele que abandona seu pai ou sua mãe é réu de morte“.

 

Mt 19,5: “E disse: por isso, um homem deixa seus pais, junta-se à sua mulher e os dois se tornam uma só carne“.

 

Mt 19,9: “Honra o pai e a mãe, e amarás o próximo como a ti mesmo“.

 

Mt 19,29: “E todo aquele que por mim deixar casas, irmãos ou irmãs, pai ou mãe, mulher ou filhos, ou campos, receberá cem vezes mais e herdará a vida perpétua“.

 

Lc 12,53: “Opor-se-ão pai a filho e filho a pai, mãe a filha e filha a mãe, sogra a nora e nora a sogra“.

 

Lc 14,26: “Se alguém vem a mim e não põe em segundo lugar seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e irmãs, e até sua própria vida, não pode ser meu discípulo“.

 

E não podemos esquecer do mandamento divino: “Honra teu pai e tua mãe, para que teus dias se prolonguem sobre a terra que te dá o Senhor, teu Deus” (Ex 20,12).

 

Dessa forma nós podemos perceber que Jesus não se apõe a títulos, mas à forma como estes são utilizados. Os padres católicos são nossos pais na fé, mas nunca nós ou eles alegam ser substitutos de Deus ou se colocam posição de soberania como faziam os fariseus e doutores da lei a quem Jesus está se referindo em Mt 23,19. Vemos que o apóstolo Paulo chama a si mesmo de pai dos coríntios:

 

Não vos escrevo isto para vos envergonhar, mas para admoestar-vos como a filhos queridos. Pois, embora tenhais como cristãos dez mil instrutores, não tendes muitos pais. Anunciando a boa notícia, eu vos gerei em Cristo“. (1Cor 4,14-15)

 

Da mesma forma nós temos os nossos sacerdotes. São nossos pais porque nos geraram em Cristo.

 

O padre Mitch Pacwa na revista apologética católica norte-americana This Rock de janeiro de 1991, no artigo intitulado Call no Man Father, cita o seguinte: “Existem cerca de 144 ocasiões no Novo Testamento onde o título de pai é usado para outro que não seja Deus. É utilizado para os patriarcas de Israel, para os pais de família, aos líderes judeus e aos líderes cristãos“.

 

Para provar como este argumento protestante não é correto, vemos o exemplo dentro do próprio protestantismo. Os ministros protestantes são chamados “pastores”. Mas nós sabemos que somente Jesus é o “bom pastor”: “Eu sou o bom pastor: conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem, como o Pai me conhece e eu conheço o Pai; e dou a vida pelas ovelhas. Tenho outras ovelhas que não pertencem a este redil; a estas tenho que guiar, para que escutem a minha voz e se forme um só rebanho com um só pastor” (Jo 10,14-16). Entretanto ninguém se revolta contra este título utilizado pelos pastores. É porque a intenção não é retirar o título de pastor de Jesus, mas dividir de forma subordinada o sacerdócio de Jesus. Da mesma forma os padres e bispos da Igreja Católica. Todos são chamados de pais no sentido menor da palavra, não no sentido último, como o de Pai todo-poderoso, mas no sentido subordinado à missão de Cristo na terra: fazer discípulos, gerar filhos de Deus.

 

Não há a menor pretenção de tomar o lugar de Deus, como faziam os fariseus, mas dividir, subordinadamente, o ministério de Jesus.

 

Interpretar a Bíblia de forma literal e pessoal é um risco. Muitos hoje em dia julgam possuir o Espírito Santo assim que adentram em uma igreja ou seita que adere ao princípio do livre-exame, e com isso conhecem, desde então, todos os mistérios bíblicos e, portanto, não há erro em suas interpretações. Porém é isso que está levando à desestruturação da mensagem do Evangelho: a divisão no cristianismo, fruto da desobediência e do indivudualismo. Santo Agostinho dizia “Não somente uma Escritura diz, mas o que toda a Escritura diz“. Nós poderíamos dizer “Não somente o que a Escritura diz, mas o que a Escritura quer dizer”.

Abraços a todos

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