Sobre penas temporais e Purgatório

Olá, Alexandre,

Estou escrevendo para agradecer seu trabalho de refutação do “Em Espírito”. Espero que vc tenha se animado a refutar outros textos daqueles hereges. Se quiser os endereços, eu os posso fornecer. Trago três dúvidas pontuais, sobre a fundamentação da visão católica sobre as obras de penitencia e penas temporais. Vc não tocou no assunto mais profundamente, até porque não era essencial, na ocasião, mas eu refleti sobre isso, tendo suas colocações como base e gostaria de compartilhar com vc essas dúvidas. Perdoe-me em tomar mais seu tempo. Responda quando puder.

 

A)Gostaria de subsídios no NT sobre a subsistencia das penas temporais após Cristo. Afinal existem muitos exemplos em que ele apenas perdoa o pecado, no máximo fala ” não peques mais; tua fé te salvou” e um abraço…sem menção à pena temporal ou a obras de penitencia… e olha..são vários casos assim…Em soma a esses subsídios, gostaria de fundamentos patristicos para tal doutrina, quanto mais proximos do século I, melhor.

Meu caro amigo católico. Quero começar esta exposição citando a definição do que sejam as ditas “penas temporais” exposta no CIC, § 1472, 1473 (o sublinhado consta do original; os negritos são meus):

“Para compreender esta doutrina (das indulgências) e esta prática da Igreja, é preciso admitir que o pecado tem uma dupla conseqüência. O pecado grave priva-nos da comunhão com Deus e, consequentemente, nos torna incapazes da vida eterna; esta privação chama-se ‘pena eterna do pecado’. Por outro lado, todo pecado, mesmo venial, acarreta um apego prejudicial às criaturas que exige purificação, quer aqui na terra, quer depois da morte, no estado chamado ‘purgatório’. Esta purificação liberta da chamada ‘pena temporal’ do pecado. (…)

O Perdão do pecado e a restauração da comunhão com Deus implicam na remissão das penas eternas do pecado. Mas permanecem as penas temporais do pecado.”

Como você vê, meu caro amigo católico, estas ditas penas temporais do pecado, e a imperiosa necessidade da expiação das mesmas, é algo diretamente ligado à doutrina da justificação e, nesta esteira, à santificação do homem.

Jesus Cristo exige de nós que sejamos santos e irrepreensíveis. Ora, uma vez que o pecado acarreta um apego desordenado às criaturas, quem peca precisa se ver livre deste apego se quiser ganhar o Reino dos Céus.

No entanto, Deus não espera que já sejamos santos para nos conceder o perdão dos pecados e, portanto, para reatar, conosco, a Aliança por nós desprezada ao pecarmos. Perdoa-nos independentemente de nossa santidade, independentemente de nossa purificação. Logicamente, portanto, perdão dos pecados não se confunde (e nem pode se confundir) com a purificação do apego desordenado que o mesmo acarreta em nossas almas.

Existem passagens na Bíblia que demonstram, com clareza fabulosa, a separação existente entre “perdão dos pecados” e expiação dos mesmos. Cito um trecho que, no meu modesto entender, é o mais significativo de todos para prová-lo. Trata-se de 2 Sm 12, 13-14. Como você sabe, Davi, cobiçando a mulher de Urias, tomou-a (tendo com ela um filho) e, visando à morte daquele, mandou-o para o ponto mais perigoso de uma batalha que se travaria contra os amoneus, onde veio a morrer.

Veja, neste ponto, o texto mencionado: “Davi disse a Natã: ‘Pequei contra Yahvweh’. Então, Natã disse a Davi: ‘Por sua parte, Yahweh perdoa a tua falta: não morrerás. Mas, por teres ultrajado a Yahweh com o teu procedimento, o filho que tiveste morrerá.’

Davi, então, para tentar livrar o filho desta terrível condenação, fez severa penitência. No entanto, o menino morreu. Veja o que disse aquele que, então, era o rei de Israel: Enquanto a criança estava viva, jejuei e chorei, por que eu dizia: Quem sabe? Talvez Yahweh tenha piedade de mim e a criança viva.” (2 Sm 12, 22).

Meu caro amigo católico, este trecho é bastante significativo por dois motivos. Primeiramente, por mostrar que, apesar do perdão já dado por Deus, foi exigido, ainda, uma satisfação pelo pecado de Davi (no caso, a morte de seu filho). E, em segundo lugar, pelo fato muito bem explicitado de que a penitência de Davi (jejum e orações) podiam, em tese, realizar esta satisfação.

Há outros textos que evidenciam, claramente, a necessidade de, ao lado do perdão dos pecados, a satisfação dos mesmos. Posso, rapidamente, citar o pecado de Maria (irmão de Moisés), expiado com lepra; o pecado do próprio Moisés (expiado com a proibição de o mesmo vir a entrar na Terra Santa); o pecado das tribos de Israel (expiado com a dura caminhada de quarenta anos no deserto). Apenas para ficarmos com alguns exemplos.

Portanto, quando alguém se aproxima do Novo Testamento, não pode deixar de lado, ao lê-lo, que o Antigo Testamento já ensinava serem o perdão e expiação dos pecados conceitos distintos. Aquele apaga as penas eternas; este, as temporais.

Digo isto porque, pelo que eu pude entender de tua carta, você está preocupado especialmente com o Novo Testamento. Afinal, você pediu-me textos neo-testamentários que provem que, após a vinda de Jesus Cristo, subsistem as “penas temporais.” Tentarei satisfazer o teu pedido, mas, primeiramente, gostaria de dizer que o Antigo Testamento vale tanto quanto o Novo. As doutrinas eternas lá estabelecidas nunca foram mudadas por Jesus Cristo, mas levadas à perfeição.

Se você é um bom católico (como eu suponho que seja) e se está lutando para atingir a santidade (como eu suponho que esteja), então, todo santo dia você deve perceber o quão viciado está nosso espírito no pecado. O quanto o mesmo se apega ao mal.

Quem se masturba uma vez, tende a fazê-lo inúmeras outras vezes.

Quem lesa o próximo uma vez, sente-se menos culpado ao lesá-lo uma segunda e uma terceira.

A primeira mentira nos envergonha; a segunda, nos é indiferente; a terceira já nos causa prazer.

E assim vai.

É por isto que o salmista já cantava: “Senhor, impede o meu coração de se inclinar para o mal, de cometer a maldade com os malfeitores. Não vou ter prazer em seus banquetes! Que o justo me bata, que o bom me corrija, que o óleo do ímpio não me perfume a cabeça, pois eu me viciaria em sua maldade.” (Sl 141, 3-4)

O texto neo-testamentário que, explicitamente, afirma a subsistência das penas temporais é Mt 16, 19: “Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.”

Este poder de ligar, dado pessoalmente a Pedro, foi, alhures, conferido, também, aos apóstolos (Mt 18, 18). Ora, a Igreja pose tanto perdoar pecados (desligar), apagando-os para sempre, como impor penas temporais (ligar).

A Igreja liga e desliga. Os céus confirmam uma e outra ação.

Relativamente à patrística, posso afirmar existirem literalmente dezenas de textos confirmando que o purgatório já era um ponto de fé desde o princípio do cristianismo. No que toca especificamente às penas temporais, encontrei alguns bons de Santo Agostinho textos num site católico americano (www.biblicalcatholic.com). NAda melhor para refutar teses protestantes do que citações de Santo Agostinho, tido (por mais absurdo que possa parecer) como um precursor do protestantismo. A seguir, traduzo-os para você:

“Na Igreja, portanto, existem três formas pelas quais os pecados são perdoados: pelo batismo, pela oração, e na maior humildade da penitência.

Não pode existir nenhuma dúvida que os mortos são ajudados pelas orações da Igreja Santa, pelo salvifico sacrifício, e pela esmola que são dadas por seus espíritos, . . . Pois a Igreja inteira observa esta prática que foi transmitida pelos Pais . . . Se, então, cultos de clemência são celebrados por causa daqueles dos quais lembramos, quem hesitaria em os recomendar, cujas orações ao lado de Deus não são oferecidas em vão? Não se deve duvidar que tais orações sejam lucrativas para os mortos; mas para aqueles que, antes de sua morte, viveram de um modo que torne possível que estas coisas lhe sejam de utilidade depois da morte.

Punições temporais são suportadas por alguns já nesta vida, por outros após a morte, por mim tanto aqui como lá; mas por todos antes do último e mais severo julgamento. Mas nem todos os que sofrem punições temporais após a morte irão para a punição eterna, que se seguirá após este julgamento.

Não se pode negar que os espíritos dos mortos encontram alívio através da piedade de seus amigos e parentes que ainda vivem, quando o Sacrifício do Mediador é oferecido por eles, ou quando esmolas são dadas na Igreja.

 

B) Não é uma incoerencia da apologética católica citar a oração dos mortos no AT ( 2Mc 12, 39-45) , como fundamento para a existência do Purgatório????
Veja: o Purgatório só congrega homens salvos e justificados, purgantes de penas temporais. Ora, não há tal classe de homem morto, em tal situação ontológica e mesmo escatológica, no AT, pelo bom motivo de que o destino era o seio de abraão onde eles iriam aguardar sua libertação por Cristo. E não há ninguém naquela situação escatológica e ontológica pelo bom motivo de que não havia ninguém justificado e salvo, porque Cristo não se havia nem encarnado ainda. Portanto, o Purgatório só é um novíssimo possível depois de Cristo. Isso me gera uma outra questão: qual o objetivo real da oração pelos mortos, em Macabeus ???

Esta questão é das mais interessantes que já me formularam. Para respondê-la, é necessário que tenhamos em mente que as questões da oração pelos mortos e do purgatório são correlatas e indissociáveis. Afinal, para que alguém deveria orar pelos mortos se (segundo bravejam muitos protestantes) o falecido ou já se danou eternamente, ou já se encontra no céu para sempre? Num e noutro caso, esta oração seria inútil. Se devemos orar pelos mortos é porque mortos há que se encontram num terceiro estado após a morte. Mortos que nem entraram definitivamente no céu, nem foram preciptados para sempre nos infernos.

Digo isto porque o trecho de 2 Mc 12, 39-45 não visa provar, diretamente, a doutrina do purgatório. Ele apenas demonstra que, biblicamente, a prática da oração pelos mortos é lícita e aprovada por Deus. Provando-o, provamos indiretamente que, se é lícito orarmos pelos mortos, então, necessariamente, há mortos que nem estão no céu nem no inferno. Há mortos que se encontram num terceiro estado. Portanto, indiretamente, provamos a a existência do purgatório.

Com relação à existência do purgatório antes de Cristo, a questão, penso, não comporta uma resposta fechada e definitiva. Particularmente, eu não conheço nenhuma afirmação da Igreja sobre o assunto, pelo que nos é lícito especular. Darei, aqui, a minha opinião, submetendo-a à crítica dos mais doutos.

Penso que, propriamente falando, o purgatório somente passou a existir após a vinda da Cristo. Portanto, concordo com você quando afirma que, no Antigo Testamento não havia qualquer pessoa num estado escatológico de purgatório. No entanto, ontologicamente, a situação de muitos dos mortos do AT é, em tudo, idêntica à situação das almas padecentes.

Explico-me.

A soterologia do Antigo Testamento é bastante incompleta, tendo sofrido grandes evoluções. Na ocasião em que o Segundo Livro de Macabeus foi escrito, podem-se diferenciar dois “estados de alma” após a morte: o sheol e o Seio de Abraão, estados estes dramaticamente ilustrados na parábola do pobre Lázaro. Se você prestar atenção nesta parábola, verá que apenas Lázaro encontrava-se no “seio de Abraão”, gozando já de algum consolo. Por sua vez, o rico Epulão encontrava-se em chamas, sem esperanças e sem consolo.

Portanto, a tua afirmação de que os mortos encontravam-se no “seio de Abraão” esperando a libertação de Cristo é incompleta. Havia, já, os que não mais esperavam libertação alguma, estando condenados para sempre.

Estes que se encontravam no “seio de Abraão” estavam em situação absolutamente idêntica à do purgatório. Esperavam e ansiavam pelo dia em que, finalmente, poderiam ver Deus face a face. Tinham garantida a sua salvação, mas não podiam gozá-la em plenitude.

Assim, penso que a oração pelos mortos de 2 Mc visava, precisamente, o consolo dos que esperavam no “seio de Abraão”, consolo este que foi dado ao pobre Lázaro.

c) Na leitura de Macabeus, me pareceu que os soldados de Judas criam na ressurreição dos mortos imediata, sem Cristo. Falam em bem-aventurança, não falam em seio de Abraão, não falam em espera, mas em recompensa imediata após a morte, em directo; falam também de absolvição do pecado. Há dois dados interessantes aí: primeiro, falam em pecado, não em resquícios de pecado ou pena temporal; isso já me deixa confuso… Segundo, falam em absolvição, antes de Cristo; em ressurreição por outra via que não o Cristo.. em ressurreição antes de Cristo..Isso me deixa mais confuso…Por favor, se eu estiver errado me acenda uma luz, me explique nesse item mais detidamente por que minha interpretação lhe parece errada, se for o caso. Por fim, duas questões são inevitáveis: Como o entendimento da tal ressurreição pelos Macabeus se concilia com o papel [pioneiro] de Cristo na salvação da humanidade, segundo os apóstolos??? Como , o especifico entendimento daqueles macabeus sobre a oração pelos mortos se concilia com esse papel de Cristo, no contexto disposto anteriormente????

As tuas dúvidas não são tão difíceis de serem dissolvidas, desde que você abandone um pressuposto errôneo que, parece-me, você adota. O Antigo Testamento não é completo (aliás, o Novo também não); os judeus não tinham (e ainda não têm) uma visão completa acerca da economia da salvação. Portanto, não espere que as Escrituras Judaicas sejam muito coerentes a respeito deste tema.

No princípio do AT, nem em vida após a morte se acreditava. Com o tempo, passou-se a acreditar em uma vida no sheol, onde bons e maus gozavam do mesmo destino, sem esperança para ambos. Mais tarde, passou-se a acreditar na ressurreição apenas dos justos (os maus continuariam no sheol). Avançando-se um pouco mais, passou-se a acreditar na ressurreição de todos, os bons para a vida eterna, os maus, para a eterna danação. Pouco depois (já às vésperas do Novo Testamento) passou-se a acreditar no “seio de Abraão” (tal como eu falei acima).

Portanto, a soterologia do Antigo Testamento é um contínuo evoluir, sem jamais atingir a plenitude da revelação divina. Não há, assim, qualquer personagem do AT que cria na salvação tal qual Deus nos revelou. Não há ninguém que entendesse, com precisão, a diferença entre perdão e expiação, ou que pudesse sequer suspeitar do mistério da Morte e da Ressurreição do Messias anunciado.

Como disse São Paulo, havia como que um véu obscurecendo o conhecimento dos judeus acerca de Deus. Véu este que foi tirado por Jesus Cristo.

Desta forma, pode-se responder às tuas últimas indagações. Primeiramente, os soldados de Judas, em Macabeus, sabiam, apenas, que haveria uma ressurreição para os mesmos. Quando a mesma se daria, como, e por virtude de quem, os mesmos não faziam a menor idéia. Confiavam, apenas, que Deus não os abandonaria na morte, e, nesta confiança, puderam arriscar suas vidas em defesa da fé que haviam herdado de Abraão, Isaac e Jacó.

Relativamente à questão da oração pelos mortos, acho que já respondi acima.

 

OBS b): falo também ontologica, pq considero a ação da graça no íntimo do fiel ao purgar a pena temporal devida.

Obrigado. Pode responder-me com calma, quando der. Se quiser saber minha opinião: melhor que seja ela mais longa ou mais demorada, do que rapidamente dada. Bem, se a exatidão e a rapidez puderem se conciliar, nada contra..Não interpretemos à la huguenotte, meu pedido…heheheh… : )

Valeu, mesmo !!!!!

Termino desculpando-me pela imensa demora em responder esta tua pergunta, e colocando-me à disposição para uteriores comentários,

Alexandre.

 

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