Testemunho de G. K. Chesterton

Ainda que católico apenas há alguns anos, reconheço no entanto que a pergunta – «Porque sou católico?» – é absolutamente diferente desta outra – «Porque me tornei católico?». Há sempre mais razões na primeira, que se manifestam só quando um motivo inicial nos levou à execução. Tão numerosas, tão diferentes são elas, que por fim, o motivo original pode ficar suplantado, e pode aparecer quase reduzido a uma coisa secundária. Tanto no sentido real como no ritual pode a «confirmação» (que significa fortalecimento, consolidação) vir depois da conversão. Os argumentos para esta são inumeráveis, e frequentemente o convertido, mais tarde, não consegue determinar por que ordem apareceram. Mas em grande parte reduzem-se facilmente a um só….

Todavia, julgo poder afirmar que aquilo que primeiramente me atraiu para o Catolicismo foi o que na r ealidade me deveria ter afastado dele. Muitos católicos devem os seus primeiros passos em direcção a Roma, creio eu, à amabilidade do falecido sr. Kensit [ pequeno livreiro da City que entrando nas Igrejas perturbava o culto divino. Morreu em 1902, de feridas recebidas num daqueles assaltos. A opnão pública em breve se voltou contra ele. Com a designação de «Imprensa Kensítica» designam-se, na Inglaterra, as publicações religiosas mais ferozmente anti-católicas, a que falta toda a razão e boa-vontade.]

Lembro-me em particular de dois casos, em que as acusações de autores sérios fizeram que me parecesse desejável precisamente o que era condenado. No primeiro caso, Horton e Hocking, se não me engano, citavam tremendo de horror, uma terrível blasfémia que tinham encontrado num místico católico, a respeito da Santíssima Virgem: «Todas as outras criaturas devem tudo a Deus; mas a esta tem o mesmo Deus de estar agradecido». Eu, pelo contrário, estremeci como se tivesse ouvido o som duma trombeta e disse quase em voz alta:«Isto está dito maravilhosamente!» Pareceu-me que milagre da Incarnação, se compreendermos bem o místico, dificilmente poderá exprimir-se melhor ou mais clarmente. No segundo caso, alguém do «Daily News» (nesse tempo eu era também dos do «Daily News») apresentou como exemplo típico do formalismo vazio do culto católico, ter certo bispo francês declarado a alguns soldados e trabalhadores, que só a muito custo e exaustos conseguiam ir de manhã cedo à igreja, que Deus se contentava comsua presença corporal, e não lhes levaria a mal o cansaço e a distracção. Voltei a dizer para mim mesmo: «Que admirável senso comum possui esta gente! Se alguém percorresse dez milhas para me dar uma prova de afecto apreciá-lo-ia muitíssimo, mesmo que essa pessoa viesse a adormecer, logo na minha presença. Poderia citar ainda outros casos destes primeiros tempos em que os débeis movimentos da minha fé católica eram praticamente alimentados só por escritos antí-católicos.

Sobre aquilo que se seguiu a estes primeiros movimentos, não tenho a menor dúvida. É uma dívida que reconheci tanto mais quanto maiores foram os meus desejos de a saldar. Já antes de conhecer as duas notáveis personalidades, a que neste sentido tanto devo – o Rev. João O’Connor, de Bradford, e o sr. Hilário Belloc, tinha começado a caminhar nesta direcção, e isso debaixo da influência do meu tradicional liberalismo político, ai mesmo dentro da cidadela do «Daily News», Este primeiro impulso agradeço-o, depois de Deus, à história e à atitude do povo irlandês…a questão irlandesa…era unicamente uma questão religiosa…estes cristãos eram tão decididos e incómodos como os que outrora foram lançados por Nero aos leões. Desta minha exposição, deduzem-se facilmente as rãzoes de eu ser católico, razões que a partir de então se tornaram cada vez mais poderosas.

Poderia ainda expor como fui verificando, cada vez mais claramente, que todos impérios que se separaram de Roma conseguiram precisamente aquilo que conseguem todos os homens, que desprezam as leis e a natureza: êxito fácil, de momento, e pouco depois a sensação de ter caído num laço, de se encontrar numa situação má, da qual não podem libertar-se por si mesmos…

 …Atentemos, nos dois pontos que me impressionaram de modo especial. No Mundo há mil e uma espécies de misticismo, capazes de fazer endoidecer um homem, mas só uma existe que o põe em estado normal… Não há dúvida que a humanidade não pode viver muito tempo sem mística. Até os primeiros e agudos sons da voz gelada de Voltaire encontraram eco em Cagliostro. Nos tempos de hoje espalham-se de novo entre nós a superstição e a credulidade com rapidez tão furiosa, que dentro em breve estarão muito próximos os católicos e os agnósticos. O católico será o único homem que terá direito a chamar-se racionalista. A mesma dança de mistérios se desencadeou nos fins da Roma pagã, a despeito de todos os «interm ezzos» cépticos de Lucrécio e Lucano. Ser materialista não é coisa natural, nem produz nenhuma impressão natural. Não é natural contentar-se com a natureza. O homem é místico. Nascido como mistico, morre também quase sempre como místico, sobretudo. Mas, enquanto todas as sociedades humanas mais cedo ou mais tarde, sentem esta inclinação para as coisas extraordinárias, é-se forçado a confessar que apenas uma delas toma em consideração as coisas da vida ordinária. Todas as outras põem de parte o que é de todos os dias, e desprezam-no….Este é apenas um dos muitos factos que provam esta verdade: que só na religião católica os mais altos e, se assim se quiser, os mais absurdos votos e profissões são, amigos e protectores das coisas boas da vida ordinária. Muitas correntes místicas abalaram o mundo; apenas uma se conservou: o santo está ao lado do homem simples; o peregrino mostra amor à família; o monje defende o matrimónio. Entre nós, o óptimo não é inimigo do bom. Entre nós, o óptimo é o melhor amigo do bom. Qualquer revelação visionária degenera por último numa ou outra filosofia indigna do homem, em simplificações perturbadoras, em pessimismo, em optimismo, em fatalismo, em coisa nenhuma, em nada, em não-sentido, em absurdo. Todas as religiões têm em si qualquer coisa de bom, mas o bom, a sua mesma realidade própria, a humildade e amor, e ardente gratidão a Deus, não se encontra nelas. Quanto mais profundamente as conhecemos, e até quanto maior reverência por elas sentimos, mais claramente o compreendemos. No mais profundo delas encontra-se qualquer outra coisa que não é o puro bem; encontra-se a dúvida metafísica acerca da matéria, ou a voz forte da natureza, ou, no melhor dos casos, o temor da lei e da divindade. Se estas coisas se exageram, surge uma deformação que pode ir até à adoração do demónio. Tais religiões só são toleráveis enquanto passivas. Enquanto permanecem inertes, podemos respeitá-las como ao protestantismo vitoriano. Mas o entusiasmo mais ardente pela Santíssima Virgem, ou a mais ousada imitação de S. Francisco de Assis, serão sempre, na sua essência mais profunda, coisas meritórias e sãs; ninguém por isso negará a sua condição de homem nem desprezará o próximo; o que é bom nunca poderá ser bom demais. Esta é uma das características que me parecem únicas e universais ao mesmo tempo. Uma outra se segue.

Apenas a Igreja Católica pode salvar os homens da escravidão destruidora e rebaixante de ser filho da sua época. Bernardo Shaw exprimiu há pouco o íntimo desejo de que toda a gente pudesse viver 300 anos, numa época mais feliz. Isso caracteriza o modo como os fabianos, segundo a sua expressão, só querem reformas verdadeiramente práticas e objectivas. De resto, é muito fácil, pois estou firmemente convencido de que, se Bernardo Shaw tivesse vivido os últimos 300 anos, já há muito se teria convertido ao catolicismo. Teria compreendido como o mundo se move num círculo, e como é pouco de se confiar no seu preten dido progresso. Teria visto como a Igreja foi sacrificada a uma superstição bíblica, e a Bíblia a uma superstição darwinistico-anarquista, e teria sido o primeiro a combater contra isto. Seja como for, ele desejava a todos os homens uma experiência de 300 anos. Em contraste com todo os outros homens, possui o católico uma experiência de 19 seculos. Um Homem que se torne católico fica de repente, a ter a idade de 2.000 anos. Exprimindo-me de modo mais exacto, quero dizer: só então é que se desenvolve e chega à plenitude da sua humanidade. Julga as coisas da maneira como elas movem a humanidade nas diferentes épocas e países e não segundo as últimas notícias dos jornais. Quando um homem moderno nos vem dizer que a sua religião é o espiritismo ou o socialismo, mostra que vive no mais recente mundo dos partidos. O socialismo é uma reacção contra o capitalismo, contra a doentia acumulação de riqueza na nossa própria nação. Completamente diferente seria a sua política, se ele vivesse em qualquer outra parte, possivelmente em Esparta ou no Tibete. O espiritismo não causaria tanta sensação, se não constituísse um protesto ardente contra o materialismo espalhado por toda â parte. Nunca a verdadeira ou falsa crença nos espíritos sobressaltou o mundo tanto como agora. O espiritismo seria impotente se o supra-sensível fosse reconhecido universalmente. Só depois de uma geração inteira haver afirmado, dogmática e definitivamente, que não pode haver espíritos, é que se deixou assustar por um miserável espiritozinho. Pode dizer-se, como desculpa, que tais são invenções da própria época. Desde há muito que a Igreja Católica demonstrou que não é invenção da sua época. É obra do seu Criador, e, a despeito da idade, tão vigorosa ainda como na primeira juventude; até os seus inimigos renunciaram, no mais profundo da sua alma, a esperança de a verem morrer um dia.”

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