Uma das mais insidiosas heresias hodiernas

 

Introdução

 

É curioso como, freqüentemente, a Igreja, defendendo a verdade que recebeu de seu Senhor, se vê na contingência de desmascarar heresias absolutamente contraditórias. Por exemplo: no século quarto, ela teve que desmascarar o pelagianismo, que afirmava que o homem podia, sem o influxo da graça de Deus, levar uma vida moralmente boa. Tudo dependia da vontade do homem em fazer o bem e evitar o mal. Desta forma, o pecado original não havia corrompido a nossa natureza, e seríamos, por nós mesmos, capaz de angariar a nossa salvação.

 

A Igreja ensinava que, ao contrário, o pecado original corrompera a natureza humana que, doravante, se via impossibilitada de alcançar, por si só, a Deus.

 

Séculos mais tarde, os reformadores protestantes viriam a defender doutrina radicalmente oposta, mas igualmente errada. Para eles, o homem, em Adão, foi totalmente corrompido, vendo-se incapaz de qualquer bem. O homem não podia optar entre o bem e o mal, estando, inexoravelmente, fadado a este.

Novamente em defesa da verdade, a Igreja reafirmou o seu multi-secular ensinamento de que a natureza humana foi, em Adão, enfraquecida e se inclinou para o mal, muito embora o homem fosse capaz, ainda, de escolher entre este e o bem.

 

Este padrão repete-se por toda a história da Igreja. Uns hereges afirmavam que Cristo era somente Deus, nada tendo de humano; outros, que Cristo era, apenas, homem, nada tendo de divino. Uns afirmavam que as realidades materiais são ilusórias e que apenas as espirituais são boas; outros, que as espirituais são ilusórias, e apenas as materiais é que devem ser levadas em consideração.

 

Todos errados. E, no meio deste verdadeiro oceano de erros, a Igreja de Pedro, inabalável como o seu primeiro Papa, manteve acesa a chama da verdade, que, vindo ao mundo, a todo homem ilumina.

 

Do “somente a fé” para o “somente as obras”.

 

Um dia, Lutero, apoiando-se em alguns “proto-reformadores”, afirmou que somente a fé é que poderia salvar o homem. Para a infelicidade geral do gênero humano, esta teoria ganhou adeptos e espalhou-se por todos os cantos do globo, arrastando, consigo, uma imensa multidão de almas. Trata-se, como já deve saber o leitor, do famoso sola fide (“somente a fé”).

 

A Igreja, então, viu-se na contingência de, mais uma vez, defender a verdadeira fé cristã, exposta nas Escrituras e testemunhada por todos os Santos Padres. A fé é necessária para a salvação, mas as obras igualmente o são. O que nos salva é a fé formada pela caridade (fides formata), isto é, a fé que se exterioriza em frutos de vida eterna.

 

Como seria de se esperar, cedo ou tarde haveria de vir ao mundo uma heresia diametralmente oposta ao sola fide. E, novamente, a Igreja teria que proteger os seus filhos deste engano, para que não se perdesse nenhum daqueles que o Pai entregou ao Filho.

 

Pois esta heresia veio muito mais cedo do que se poderia esperar. E, parodoxalmente, os apologistas católicos têm dado, à mesma, uma atenção muito diminuta, embora ela seja mais insidiosa e muitíssimo mais sedutora do que o próprio sola fide. Trata-se da heresia que, em suas diversas nuances, afirma que a fé não é, sequer, minimamente necessária para a salvação. Deus é Pai de todos, e não poderia salvar este ou condenar aquele com base na fé por eles seguida.

 

A esta heresia é o que eu costumo chamar de somente as obras. Segundo a mesma, o que nos salva são as obras, independentemente da fé que cada um de nós venha a ter. Quem pratica o bem se salva; quem pratica o mal, não. Católicos, muçulmanos, judeus, protestantes, budistas, hindus, e mesmo os ateus estão em pé de igualdade. Crer em Cristo, Alá, Buda, Krishna, Tao, etc., é indiferente. Todos, no fundo, crêem num mesmo deus, que se manifestou, em cada cultura, com um nome e sob uma forma diferentes e que, no fundo, espera o mesmo de todos os seres humanos: que nos esforcemos por viver em harmonia, fazendo o bem e por superando nossas divergências.

 

Obviamente, a primeira divergência que todos temos a superar é a própria religião…

 

Para se entender corretamente o que se pretende afirmar neste artigo, é necessário que se tenha em vista que, fora do catolicismo, a idéia de salvação é bastante variada. Para os espíritas, a salvação é a perfeição espiritual; para os budistas, é o escapar do interminável ciclo de reencarnações (ou, usando um termo mais apropriado: de renascimentos), atingindo-se o nirvana; para os hindus, a mesma é o perfeito equilíbrio e a conseqüente absorção do homem (atmam) na divindade (Brahman).

 

Todas estas idéias equivalem à noção católica de salvação, pois representam, em essência, o destino final do homem, para o qual ele teria sido, inexoravelmente criado. Todo sistema religioso possui uma idéia de salvação do homem, ainda que dê, a esta idéia, um nome e um conceito bastante diversos.

 

Por esta razão, a heresia do somente as obras é absolutamente insidiosa. Ela tem, em si, o potencial do universalismo. O sola fide é algo fadado a se manter dentro dos limites do cristianismo. O somente as obras, contudo, possui apelo universal e não se restringe a quem quer que seja.

 

É nele, por exemplo, que se baseia o espiritismo kardecista. Quem quer que já tenha lido o Livro dos Espíritos há de se lembrar da máxima de fé nele contida (não por acaso, uma mera paródia de uma verdade de fé católica): “fora da caridade não há salvação”.

 

Com esta máxima, Kardec quis, por um lado, afastar a idéia de que a Igreja (e, portanto, uma fé) é necessária à salvação, por outro, expressar a de que bastam as obras para que, num futuro extremamente remoto, alcancemos a perfeição espiritual (idéia de salvação dentro do kardecismo).

 

Igualmente, é no somente as obras que se apoia a maçonaria com o seu conceito de Deus como o “grande arquiteto do Universo”.

 

E, infelizmente, esta heresia é, hoje, decantada por muitos padres e (com que dor eu afirmo isto!!!), mesmo, por alguns bispos. É lugar comum, em nossas igrejas, nas missas, a afirmação de que “somos todos iguais perante Deus”, que todas as religiões são boas, e que o que conta, mesmo, são as obras de caridade que muitos fazem.

 

A Verdadeira Doutrina Católica.

 

A Igreja sempre defendeu a necessidade das obras para a salvação. Este ponto, inclusive, é o motivo central de um dos mais sérios debates que os católicos travam com os protestantes.

 

No entanto, a Igreja sempre afirmou que crer em Jesus Cristo e em Sua Igreja é igualmente necessário. Nem somente a fé, nem somente as obras. Mas fé e obras.

 

Deixemos que a Santa Madre Igreja fale por si mesma (os grifos são todos meus):

 

“Como entender esta afirmação (“fora da Igreja não há salvação”), com freqüência repetida pelos padres da Igreja? Formulada de uma maneira positiva, ela significa que toda a salvação vem de Cristo -Cabeça por meio da Igreja, que é seu Corpo:

 

‘Apoiado na Sagrada Escritura e na Tradição, (o concílio) ensina que esta Igreja peregrina é necessária à salvação. O único mediador e caminho da salvação é Cristo, que se torna presente em seu corpo, que é a Igreja. Ele, porém, inculcando com palavras expressas a necessidade da fé e do batismo, ao mesmo tempo confirmou a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pelo batismo como por uma porta. Por isso não podem salvar-se aqueles que, sabendo que a Igreja católica foi fundada por Deus por meio de Jesus Cristo como instituição necessária, apesar disso não quiserem nela entrar ou nela permanecer.’ (Lumen Gentium)

 

Deus pode, por caminhos dele conhecidos, levar à fé todos os homens que sem culpa própria ignoram o Evangelho. Pois ‘sem a fé é impossível agradar-lhe’ (Hb 11,6). Mesmo assim, cabe à Igreja o dever e também o direito de evangelizar todos os homens.” (CIC, §§ 846 e 848)

 

O recente documento Dominus Iesus visava, entre outras coisas, reafirmar esta doutrina. O grande alvoroço causado por sua publicação é uma demonstração cabal da popularidade de que goza a heresia do somente as obras.

 

Um horizonte ainda mais sombrio.

 

O fato é que, como desgraça pouca é bobagem, um horizonte ainda mais sombrio se perfaz. Uma doutrina ainda mais insidiosa já se insinua e, embora ainda não apresente o impacto do somente as obras, pode, no futuro, confundir as almas de inúmeros católicos.

 

Para muitos, a salvação (seja qual for o nome que se lhe dêem) não vem da prática do bem. Ele não é necessário. Para que o homem fique em paz com a divindade, basta não fazer o mal.

 

Existe uma sutil, porém abismal, diferença entre fazer o bem e não fazer o mal. Fazer o bem implica em atitudes concretas. Não fazer o mal, não implica em coisa alguma.

 

Longe da Cátedra de Pedro, a verdade se deteriora mais e mais. A afirmação de que somente as obras já bastam à salvação representou um passo para fora da verdade. O segundo passo (que já está sendo dado) é a afirmação de que sequer as boas obras são necessárias.

 

Se, com o ?somente as obras? o homem já não precisaria da Igreja, com esta nova deturpação, o homem não precisaria, sequer de Cristo. A salvação é o destino natural de cada um, e só não a alcançam aqueles que cavam sua própria condenação.

 

Que o Senhor nos livre de engano tão tenebroso…

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