1. Sola Scriptura não é ensinada pela Bíblia.
A Escritura certamente é a base de toda verdade ( nisso concordamos com os protestantes), até mesmo a suprema base, mas não no sentido de se rejeitar a Igreja e a autoridade oficial da autêntica Tradição apostólica. A Bíblia não ensina isto. Os católicos concordam com os protestantes que a Escritura é materialmente suficiente. Em outras palavras, que todas as doutrinas de fé podem ser encontradas na Bíblia, ainda que implícitas e indiretas sob dedução. Mas nenhuma passagem indica que a Escritura seja a autoridade formal ou a regra de fé para os cristãos (suficiência formal), isolada da Igreja e da Tradição apostólica. A sola scriptura não pode nem ao menos ser deduzida a partir de passagens implícitas. Os protestantes tentam achá-las, mas esse esforço está destinado ao fracasso. Nunca o vi, e tenho debatido sobre ela com muitos, muitos protestantes desde minha conversão, há 13 anos.
2. “Palavra de Deus”.
“Palavra” na Sagrada Escritura quase sempre se refere à proclamação oral de um profeta ou apóstolo. Os profetas falam a Palavra de Deus, sendo ou não esse discurso registrado sob forma escrita. Por exemplo, lemos em Jeremias 25, 3. 7-8:
3 …eis que vinte e três anos são decorridos desde que a palavra do Senhor me foi dirigida e que vo-la transmiti com assiduidade…
7 Mas não me escutastes – oráculo do Senhor…
8 Por isso, assim disse o Senhor dos exércitos: porque não me escutastes as palavras…
Esta foi uma palavra de Deus tenha sido ela escrita ou não ou posteriormente declarada como Escritura Sagrada. Ela possui a mesma autoridade em forma escrita ou em forma proclamada. Da mesma forma isto é verdade para a pregação apostólica. Quando as frases “Palavra de Deus” ou “Palavra do Senhor” aparecem em Atos ou nas Epístolas, quase sempre se referem à pregação oral, e não à uma Escritura. Por exemplo:
1 Tes 2,13: Por isso é que também nós não cessamos de dar graças a Deus, porque recebestes a palavra de Deus, que de nós ouvistes, e a acolhestes, não como palavra de homens, mas como aquilo que realmente é, como palavra de Deus…
Se compararmos esta passagem com outra, escrita à mesma igreja, Paulo parece relacionar tradição e Palavra de Deus como sendo sinônimos:
2 Tes 3,6: …eviteis a convivência de todo irmão que leve vida ociosa e contrária à tradição que de nós tendes recebido.
3. Tradição não é uma palavra imoral.
Os protestantes costumam citar os versículos onde as tradições dos homens são condenadas (cf. Mt 15,2-6, Mc 7,8-13, Cl 2,8). E nós católicos concordamos. Mas não é só isso. A verdadeira tradição apostólica também é confirmada. Estas estão em total consistência e harmonia com a Escritura. Neste sentido, a Escritura é o “juízo final” da Tradição, mas não no sentido de que rejeita a Tradição e autoridade da Igreja. Aqui estão alguns versículos relevantes:
1 Cor 11,2: Eu vos felicito, porque em tudo vos lembrais de mim, e guardais as minhas instruções, tais como eu vo-las transmiti.
2 Tes 2,15: Assim, pois, irmãos, ficai firmes e conservai os ensinamentos que de nós aprendestes, seja por palavras, seja por carta nossa.
2 Tm 1,13-14: Toma por modelo os ensinamentos salutares que recebeste de mim…Guarda o precioso depósito, pela virtude do Espírito Santo que habita em nós.
2 Tm 2,2: O que de mim ouviste em presença de muitas testemunhas, confia-o a homens fiéis que, por sua vez, sejam capazes de instruir a outros.
[cf. Atos 2,42, que menciona “a doutrina dos apóstolos”]
4. Jesus e Paulo aceitaram Tradições orais e escritas não-bíblicas.
Para defender a sola scriptura os protestantes alegam que Jesus e Paulo aceitavam a autoridade do Antigo Testamento. E é verdade, mas também é verdade que usaram outras autoridades, que ficaram de fora da revelação escrita. Por exemplo:
Mateus 2,23: a referência a “…será chamado Nazareno” não é encontrada no Antigo Testamento, nem foi transmitida “pelos profetas”. Entretanto, uma profecia, que é considerada como sendo uma “Mensagem de Deus”, foi transmitida de forma oral ao invés da forma escrita.
Mateus 23,2-3: Jesus diz que os escribas e fariseus possuem uma autoridade legítima pois “sentaram-se na cadeira de Moisés“. Esta frase, ou a sua idéia, não se encontra em lugar algum do Antigo Testamento. Nós a encontramos no (originalmente oral) Mishná, onde diversas doutrinas desde Moisés são transmitidas sucessivamente.
Dois exemplos do apóstolo Paulo:
Em 1 Coríntios 10,4, Paulo se refere a uma “pedra” que seguia os judeus na vastidão do Sinai. O Antigo Testamento não diz nada sobre tal miraculoso movimento, na passagem que se relaciona quando Moisés bate na rocha para fluir água (Ex 17,1-7; Nm 20,2-13). Mas a tradição rabínica sim.
2 Timóteo 3,8: “Como Janes e Jambres resistiram a Moisés…”. Esses dois homens não são encontrados pelas passagens do Antigo Testamento que estão relacionadas (Ex 7,8ss), nem em lugar algum do AT.
5. O Concílio de Jerusalém.
No Concílio de Jerusalém (At 15,6-30) vemos Pedro e Tiago falar com autoridade. Este concílio fez um pronunciamento firme (citando a Sagrada Escritura) que foi dirigida a todos os cristãos:
At 15,28-29: Com efeito, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor outro peso além do seguinte indispensável: que vos abstenhais das carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, da carne sufocada e da impureza. Dessas coisas fareis bem de vos guardar conscienciosamente.
No capítulo seguinte, lemos que Paulo, Timóteo e Silas viajavam “passando pelas cidades“, e a Escritura diz que:
…ensinavam que observassem as decisões que haviam sido tomadas pelos apóstolos e anciãos em Jerusalém.
(At 16,4).
Isto é autoridade da Igreja em prática. Eles simplesmente declararam os decretos como sendo verdadeiros – com a autorização do próprio Espírito Santo. Por isso vemos na Bíblia um exemplo do dom da infalibilidade que a Igreja Católica declara para si mesma quando se reúne em concílio.
6. Fariseus, Saduceus e tradições orais extra-bíblicas.
O cristianismo derivou de muitas maneiras da tradição farisaica do judaísmo. Os saduceus, por outro lado, eram muito mais ?heréticos.? Rejeitaram a ressurreição futura e a alma, a vida após a morte, recompensas e retribuições, demônios e anjos, e o predestinacionismo. Os saduceus eram os teólogos liberais daquele tempo. Há referências a fariseus cristãos em Atos 15,5 e Filipenses 3,5, mas a Biblía nunca menciona saduceus cristãos. Os saduceus rejeitaram também todo o ensino oral oficial, e criam essencialmente na sola scriptura. Assim nem os judeus (ortodoxos) do Antigo Testamento nem a igreja primitiva foram guiados pelo princípio da sola scriptura. Os fariseus (apesar de suas corrupções e excessos) eram os representantes principais da tradição judaica, e Jesus tanto como Paulo reconhecem isto.
7. Os Judeus do Antigo Testamento não criam na Sola Scriptura.
Dois exemplos:
Esdras 7,25-26: E tu, Esdras, segundo a sabedoria de teu Deus que te foi dada, estabelecerás juízes e magistrados para fazer justiça a todo o povo da outra banda do rio, a todos aqueles que conhecem as leis de teu Deus; e tu ensina-las-ás aos que não as conhecem. Todo o que não observar a lei de teu Deus e a lei do rei será castigado rigorosamente, seja com a morte, seja com o desterro, seja com uma multa, ou mesmo com a prisão.
Neemias 8,1-8: Esdras fez então a leitura da lei, na praça que ficava diante da porta da Água, desde a manhã até o meio-dia, na presença dos homens, mulheres e das (crianças) capazes de compreender; todos escutavam atentamente a leitura (v.3).
No v.7 vemos treze levitas que ajudavam Esdras e outros levitas explicavam a lei ao povo. Bem antes, podemos ver levitas exercendo a mesma função (2 Cr 17, 8-9); No v.8…liam distintamente no livro da lei de Deus, e explicavam o sentido, de maneira que se pudesse compreender a leitura.
Assim as pessoas compreenderam corretamente a lei (Ne 8,12), mas não sem muito auxílio – não meramente por ouvir. Do mesmo modo, no seu conjunto, a Bíblia não é por si completamente clara, mas requer o auxílio de mestres que são mais familiarizados com os estilos bíblicos, idioma hebreu, história, contexto, exegese e referências cruzadas, princípios hermenêuticos, línguas originais, etc. O Antigo Testamento, então, mostra uma tradição e uma necessidade obrigatórias por intérpretes oficiais, como no Novo Testamento:
At 8,27-28, 30-31: Filipe levantou-se e partiu…um etíope, eunuco…voltava sentado em seu carro, lendo o profeta Isaías. Filipe aproximou-se e ouviu que o eunuco lia o profeta Isaías, e perguntou-lhe: Porventura entendes o que estás lendo? Respondeu-lhe: Como é que posso, se não há alguém que mo explique?
2 Pd 1,20: Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação pessoal.
2 Pd 3,15-16: …como também vosso caríssimo irmão Paulo vos escreveu, segundo o dom de sabedoria que lhe foi dado. …Nelas há algumas passagens difíceis de entender, cujo sentido os espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos deturpam, para a sua própria ruína, como o fazem também com as demais Escrituras.
Mc 4,33-34: Era por meio de numerosas parábolas desse gênero que ele lhes anunciava a palavra, conforme eram capazes de compreender. E não lhes falava, a não ser em parábolas; a sós, porém, explicava tudo a seus discípulos.
8. 2 Timóteo 3,16-17: O “versículo de ouro” dos protestantes.
Toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça. Por ela, o homem de Deus se torna perfeito, capacitado para toda boa obra.
Esta passagem não ensina a suficiência formal, que excluiria o papel de autoridade da Igreja e da Tradição em conjunto. Os protestantes extrapolam no texto o que não está lá. Se nós olharmos o contexto desta passagem, somente em Timóteo 2, Paulo faz a referência à tradição oral três vezes (1,13-14/ 2,2 e 3,14). E para usar uma analogia, vamos examinar uma passagem muito similar, Efésios 4,11-15:
A uns ele constituiu apóstolos; a outros, profetas; a outros, evangelistas, pastores, doutores, para o aperfeiçoamento dos cristãos, para o desempenho da tarefa que visa à construção do corpo de Cristo, até que todos tenhamos chegado à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, até atingirmos o estado de homem feito, a estatura da maturidade de Cristo. Para que não continuemos crianças ao sabor das ondas, agitados por qualquer sopro de doutrina, ao capricho da malignidade dos homens e de seus artifícios enganadores. Mas, pela prática sincera da caridade, cresçamos em todos os sentidos, naquele que é a cabeça, Cristo.
Se 2 Timóteo 3 provasse a suficiência unicamente da Escritura, a seguir pela analogia, Efésios 4 provaria do mesmo modo a suficiência dos pastores, professores e assim por diante para o aperfeiçoamento dos cristãos. Em Ef 4,11-15 os cristãos são ensinados, edificados, trazidos à unidade e ao estado de homens feitos na maturidade de Cristo, e protegidos da confusão doutrinal por meio da função magisterial da Igreja. Esta é uma indicação muito mais forte do aperfeiçoamento dos homens do que 2 Timóteo 3,16-17, mas aqui a Escritura nem ao menos é citada como fonte de aperfeiçoamento.
Assim se todos os elementos não-bíblicos forem excluídos de Timóteo 2, a seguir, pela analogia, A Escritura teria que, logicamente, ser excluída em Efésios 4. É muito mais razoável reconhecer que a ausência de um ou mais elementos em uma passagem não significa que são inexistentes. A Igreja e a Escritura são ambos igualmente necessários e importantes para ensinar. E naturalmente esta é a doutrina católica.
9. Paulo afirma naturalmente que sua tradição possui autoridade e é infalível
Do contrário, ele não aconselharia aos seus seguidores estarem atentos a não seguirem doutrinas enganosas. Ele escreveu, por exemplo:
2 Tes 3,14: Se alguém não obedecer ao que ordenamos por esta carta, notai-o e, para que ele se envergonhe, deixai de ter familiaridade com ele.
Rm 16,17: Rogo-vos, irmãos, que desconfieis daqueles que causam divisões e escândalos, apartando-se da doutrina que recebestes. Evitai-os!
Paulo não escreveu, por exemplo:
…doutrinas estas em oposição à mais bela, ampla e verdadeira mas não infalível doutrina que tendes sido ensinados…
10. A Sola Scriptura é, na verdade, uma definição circular.
Quando tudo está dito e feito, os protestantes que seguem a sola scriptura como sua regra de fé irão apelar para a Bíblia. Se perguntarmos porque alguém deveria crer que a doutrina de sua igreja deve ser seguida, ao contrário de alguma outra, irão apelar para o “claro ensinamento da Bíblia” e geralmente agirão como se nenhuma tradição estivesse por trás de sua própria interpretação.
É um fato similar às pessoas perante um debate judicial, quando ambas dizem “bem, nós estamos seguindo o que é constitucional, mas vocês não”. As constituições não são, assim como a Bíblia, suficientes por si mesmas para resolverem diferentes interpretações. Cortes e juízes são necessários, e seus decretos devem ser seguidos. As decisões da Suprema Corte não pode ser derrubadas a não ser por outra Suprema Corte futura ou por uma emenda constitucional. Em qualquer caso, há sempre uma decisão final que encerra o problema.
Mas os protestantes não entendem assim porque apelam a um princípio lógico de auto-interpretação e a um livro (que sempre será interpretado por homens). Obviamente (dadas as divisões protestantes), simplesmente “ir à Bíblia” não tem funcionado. No final, o indivíduo não tem a segurança ou a certeza final no sistema protestante. Ele pode apenas “ir à Bíblia” por ele mesmo e talvez surgir com outra doutrina inovadora, que será colocado junto à coleção de doutrinas inovadoras do protestantismo. Outros ainda acreditam que sempre há uma verdade em qualquer disputa teológica, ou que podem adotar uma posição relativista ou indiferente, onde as contradições são “boas” ou onde as diferenças doutrinais são tão menores que essas diferenças “não importam”.
Entretanto a Bíblia não ensina que existam categorias “menores” de doutrinas, ou que se possa adotar um estilo livre de discordâncias. As divisões e o denominacionismo são vigorosamente condenadas. A única conclusão que podemos retirar da Bíblia é o “tri-pé”: a Bíblia, a Igreja e a Tradição, todas sendo necessárias para se chegar à verdade. Derrubando um dos três alicerces, ele desaba por inteiro.