1. Pode dizer-se que a análise dos primeiros capítulos do Gênesis nos obriga, em certo sentido, a reconstruir os elementos constitutivos da original experiência do homem. Neste sentido, o texto javista é, pelo seu caráter, uma fonte especial. Falando das originais experiências humanas, pensamos não tanto no seu afastamento no tempo, quanto e mais ainda no seu significado fundamental. O importante não é, por conseguinte, que estas experiências pertençam à pré-história do homem (à sua «pré-história teológica»), mas que elas se encontrem na raiz de toda a experiência humana. É isto verdade, se bem que a estas experiências essenciais, na evolução da ordinária existência humana, não se preste muita atenção. Elas, de fato, encontram-se tão ligadas às coisas ordinárias da vida, que em geral não damos conta de serem extraordinárias.
Baseados nas análises até agora feitas, pudemos dar-nos conta de, aquilo que chamamos no princípio «revelação do corpo», nos ajudar de algum modo a descobrir o extraordinário do que é ordinário. Isto é possível porque a Revelação (a original, que encontrou expressão, primeiro na narrativa javista de Gênesis 2-3, e depois no texto de Gênesis 1) considera precisamente essas experiências primordiais em que aparece de maneira quase completa a absoluta originalidade daquilo que é o ser humano varão e mulher: enquanto homem, isto é, também através do seu corpo. A experiência humana do corpo, tal como a descobrimos nos textos bíblicos citados, encontra-se sem dúvida no limiar de toda a experiência «histórica» sucessiva. Parece, todavia, basear-se em tal profundidade ontológica, que o homem não a capta na própria vida quotidiana, embora, entretanto e em certo modo, a pressuponha como parte do processo de formação da sua imagem.
2. Sem tal reflexão introdutória, seria impossível precisar o significado da nudez original e realizar a análise de Gênesis 2,25, que diz assim: “Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha”. A primeira vista, o aparecer este particular, aparentemente secundário, na narrativa javista da criação do homem, pode parecer coisa sem valor e mesmo fora de propósito. Poderia julgar-se que a passagem citada não tem comparação com aquilo de que tratam os versículos precedentes e que, em certo sentido, não se harmonizam com o contexto. Todavia, este pensamento não resiste a uma análise aprofundada. Com efeito, Gênesis 2,25 apresenta um dos elementos-chaves da revelação original, tão determinante como os outros textos do Gênesis (2,20 e 2,23), que já nos permitiram precisar o significado da solidão original e da original unidade do homem. A estes vem juntar-se, como terceiro elemento, o significado da nudez original, com clareza posto em evidência no contexto; e ele, no primeiro esboço bíblico da antropologia, não é coisa acidental. Pelo contrário, forma precisamente a chave para a sua plena e completa compreensão.
3. É óbvio que exatamente este elemento do antigo texto bíblico oferece à teologia do corpo um contributo específico, do qual não se pode de nenhum modo prescindir. É o que nos confirmam as análises seguintes. Mas, antes de a elas nos lançarmos, permito-me observar que precisamente o texto de Gênesis 2,25 exige expressamente que se liguem as reflexões sobre a teologia do corpo, com a dimensão da subjetividade pessoal do homem; é neste âmbito, de fato, que se desenvolve a consciência do significado do corpo. Gênesis 2,25 fala deste significado de modo muito mais direto do que fazem as outras partes do texto javista, que já definimos como primeiro registro da consciência humana. A frase, segundo a qual os primeiros seres humanos, homem e mulher, «estavam nus», mas «não tinham vergonha», descreve indubiamente o estado de consciência de ambos; mais, a sua recíproca experiência do corpo, isto é, a experiência por parte do homem da feminilidade que se revela na nudez do corpo e, reciprocamente, a análoga experiência da masculinidade por parte da mulher. Afirmando que «não tinham vergonha», o autor procura descrever esta recíproca experiência do corpo com a máxima precisão que lhe é possível. Pode dizer-se que este tipo de precisão reflete uma experiência basilar do homem em sentido «comum» e pré-científico, mas corresponde também às exigências da antropologia e em particular da antropologia contemporânea, pronta a apelar para as chamadas experiências de fundo, como a experiência do pudor[1].
4. Aludindo aqui ao esmero da narrativa, quanto ele era possível ao autor do texto javista, somos levados a considerar os graus de experiência do homem «histórico» carregado com a herança do pecado, graus porém que metodologicamente partem em rigor do estado de inocência original. Já verificamos antes que, ao referir-se ao «princípio» (por nós aqui sujeito a sucessivas análises contextuais), Cristo estabelece de modo indireto a ideia de continuidade e de relação entre aqueles dois estados, como se nos permitisse retroceder do limiar da pecaminosidade «histórica» do homem até à sua inocência original. Precisamente Gênesis 2,25 exige de modo particular que se ultrapasse aquele limiar. Fácil é descobrir como este passo, juntamente com o significado a ele inerente da nudez original, se insere no conjunto contextual da narrativa javista. De fato, alguns versículos depois, o mesmo autor escreve: “Então, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam nus, prenderam folhas de figueira umas às outras e colocaram-nas como se fossem cinturões” (Gênesis 3,7). O advérbio «então» indica novo momento e nova situação, consequentes à ruptura da primeira Aliança; é situação que vem depois da falência na prova ligada à árvore do conhecimento do bem e do mal, que ao mesmo tempo constituía a primeira prova de «obediência», isto é, de atenção à Palavra em toda a sua verdade e de aceitação do Amor, segundo a plenitude das exigências da Vontade criadora. Este novo momento ou nova situação comporta também novo conteúdo e nova qualidade da experiência do corpo, de maneira que já não se pode dizer: «estavam nus e não tinham vergonha». A vergonha é portanto aqui experiência não só original, mas «de confim».
5. É significativa, portanto, a diferença de formulações, que divide Gênesis 2,25 de Gênesis 3,7. No primeiro caso, «estavam nus, mas não tinham vergonha»; no segundo caso, «reconheceram que estavam nus». Quer então dizer que, num primeiro tempo, «não reconheceram que estavam nus»? Que não sabiam e não viam reciprocamente a nudez dos seus corpos? A significativa transformação que nos é testemunhada pelo texto bíblico acerca da experiência da vergonha (de que fala ainda o Gênesis, sobretudo em 3,10-12), dá-se a um nível mais profundo que o puro e simples uso do sentido da vista. A análise comparativa entre Gênesis 2,25 e Gênesis 3 leva necessariamente à conclusão de não tratar-se aqui da passagem do «não reconhecer» ao «reconhecer», mas de uma radical mudança do significado da nudez original, da mulher diante do homem e do homem diante da mulher. Vem a mudança da consciência de ambos, como fruto da árvore da consciência do bem e do mal: “Quem te disse que estavas nu? Comeste, porventura, algum dos frutos da árvore que te proibi comer?” (Gênesis 3,11). Tal mudança diz respeito diretamente à experiência do significado do próprio corpo diante do Criador e das criaturas. O que é confirmado pelas palavras do homem: “Ouvi o ruído dos teus passos no jardim, e, cheio de medo, porque estou nu, escondi-me” (Gênesis 3,10). Mas, em particular, aquela mudança que o texto javista delineia de modo tão conciso e dramático diz respeito diretamente, talvez do modo mais direto possível, à relação homem-mulher, feminilidade-masculinidade.
6. À análise desta transformação teremos de voltar ainda, em outras partes das nossas seguintes reflexões. Agora, chegados àquele confim que atravessa a esfera do «princípio» para que apelou Cristo, deveremos perguntar-nos se é possível reconstruir, de algum modo, o significado original da nudez, que no Livro do Gênesis forma o contexto próximo da doutrina acerca da unidade do ser humano enquanto macho e fêmea. Isto parece possível, se tomarmos como ponto referencial a experiência da vergonha do mesmo modo que ela, no antigo texto bíblico, foi claramente apresentada: como experiência «liminar». Procuraremos fazer uma tentativa dessa reconstrução, ao continuarmos as nossas meditações.
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NOTA
[1] Cfr. p.ex.: M. SCHELER, “Über Scham und Schamgefühl Halle”, 1914; FR. SAWICKI, “Fenomenologia wstydliwosci” (“Fenomenologia do pudor”), Cracóvia, 1949; e também K. WOJTYLA, “Milosc i odpowiedzialnosc”, Cracóvia, 1962, s.165-185 (em italiano: “Amore e responsabilità”, Roma, 1978, 2ª ed., pp.161-178).
- Fonte: Vaticano, Audiência de 12.12.1979.