1. Na reflexão precedente, começamos a analisar o significado da solidão original do homem. A sugestão foi-nos dada pelo texto javista, e em particular pelas seguintes palavras: “Não é conveniente que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele” (Gên. 2,18). A análise das relativas passagens do Livro do Gênesis (cap. 2) levou-nos já a conclusões surpreendentes que dizem respeito à antropologia, isto é à ciência fundamental acerca do homem, contida neste Livro. De fato, relativamente em poucas frases, o antigo texto delineia o homem como pessoa com a subjetividade que a caracteriza.
Quando Deus-Javé dá a este primeiro homem, assim formado, a ordem que diz respeito a todas as árvores que crescem no «jardim do Éden», sobretudo a do conhecimento do bem e do mal, aos delineamentos do homem, acima descritos, junta-se o momento da opção e da autodeterminação, isto é da vontade livre. Deste modo, a imagem do homem, como pessoa dotada de uma subjetividade própria, aparece diante de nós como acabada no seu primeiro esboço.
No conceito de solidão original está incluída quer a autoconsciência, quer a autodeterminação. O fato de o homem estar «só» encerra em si tal estrutura ontológica e ao mesmo tempo é um índice de autêntica compreensão. Sem isto, não podemos compreender corretamente as palavras seguintes, que constituem o prelúdio da criação da primeira mulher: «Vou dar-lhe uma auxiliar». Mas, sobretudo, sem aquele significado tão profundo da solidão original do homem, não pode ser compreendida nem corretamente interpretada a situação completa do homem criado «à imagem de Deus», que é a situação da primeira, ou melhor da primitiva Aliança com Deus.
2. Este homem, de quem a narração do capítulo 1º diz que foi criado «à imagem de Deus», manifesta-se, na segunda narração, como sujeito da Aliança, isto é, sujeito constituído como pessoa, constituído à altura de «companheiro do Absoluto», dado dever discernir e escolher conscientemente entre o bem e o mal, entre a vida e a morte. As palavras da primeira ordem de Deus-Javé (Gên. 2,16-17) que se referem diretamente à submissão e à dependência do homem-criatura do seu Criador, revelam de modo indireto precisamente tal nível de humanidade, como sujeito da Aliança e «companheiro do Absoluto». O homem está «só»: isto quer dizer que ele, através da própria humanidade, através daquilo que ele é, é ao mesmo tempo constituído numa única, exclusiva e irrepetível relação com o próprio Deus. A definição antropológica contida no texto javista aproxima-se, por seu lado, daquilo que exprime a definição teológica do homem, que encontramos na primeira narração da Criação («Façamos o homem à Nossa imagem, à Nossa semelhança» (Gên. 1,26)).
3. O homem, assim formado, pertence ao mundo visível, é corpo entre os corpos. Retomando e, de certo modo, reconstruindo o significado da solidão original, aplicamo-lo ao homem na sua totalidade. O corpo, mediante o qual o homem participa no mundo criado visível, torna-o ao mesmo tempo consciente de estar «só». De outro modo não teria sido capaz de chegar àquela convicção, a que, efetivamente, como lemos, chegou (cf. Gên. 2,20), se o seu corpo o não tivesse ajudado a compreendê-lo, tornando o fato evidente. A consciência da solidão poderia ter enfraquecido, precisamente por causa do seu próprio corpo. O homem, “‘adam”, teria podido, baseando-se na experiência do próprio corpo, chegar à conclusão de ser substancialmente semelhante aos outros seres vivos (animalia). E afinal, como lemos, não chegou a esta conclusão; pelo contrário, chegou à persuasão de estar «só». O texto javista não fala nunca diretamente do corpo; até mesmo quando diz que «o Senhor Deus formou o homem do pó da terra», fala do homem e não do corpo. Apesar disto, a narração tomada no seu conjunto oferece-nos bases suficientes para perceber este homem, criado no mundo visível, exatamente como corpo entre os corpos.
A análise do texto javista permite-nos também relacionar a solidão original do homem com a consciência do corpo, mediante o qual o homem se distingue de todos os “animalia” e «se separa» deles, e também mediante o qual ele é pessoa. Pode-se afirmar com certeza que aquele homem assim formado tem contemporaneamente o conhecimento e a consciência do sentido do próprio corpo. E isto baseado na experiência da solidão original.
4. Tudo isto pode ser considerado como implicação da segunda narração da criação do homem, e a análise do texto permite-nos um amplo desenvolvimento.
Quando no início do texto javista, ainda antes de se falar da criação do homem do «pó da terra», lemos que «ninguém cultivava a terra e fazia jorrar da terra a água dos canais para regar o solo» (Gên. 2,5-6), associamos justamente este trecho ao da primeira narração, em que está expressa a ordem divina: “enchei e dominai a terra” (Gên. 1,28). A segunda narração alude de modo explícito ao trabalho que o homem realiza para cultivar a terra. O primeiro meio fundamental para dominar a terra encontra-se no próprio homem.
O homem pode dominar a terra porque só ele e nenhum outro ser vivo é capaz de «cultivá-la» e transformá-la segundo as próprias necessidades («fazia jorrar da terra a água dos canais para regar o solo»). E então, este primeiro esboço de uma atividade especificamente humana parece fazer parte da definição do homem, tal como emerge da análise do texto javista. Por conseguinte, pode-se afirmar que tal esboço é intrínseco ao significado da solidão original e pertence àquela dimensão de solidão através da qual o homem, que desde o início está no mundo visível como corpo entre os corpos, descobre o sentido da própria corporalidade.
Sobre este assunto voltaremos na próxima reflexão.
- Fonte: Vaticano, audiência de 24 de Outubro de 1979.