A ação da Igreja no tema da escravidão

Infelizmente nosso sistema educacional prima mais por uma formação ideológica velada que pela objetividade ou por uma tomada clara de posição. A Igreja é sempre alvo de distorções.

Escravidão

Se considerarmos a humanidade unicamente sob o aspecto individual, vemos que, já na antigüidade, os homens encontravam-se quase por toda parte divididos em duas classes: o homem livre e o escrevo.

A escravatura é o estado do homem submetido ao domínio absoluto de outro homem. Ela tinha origem na guerra, no comércio ou no nascimento. A condição material do escravo variava conforme o caráter e as disposições de seu senhor.

O que a Igreja fez em favor dos escravos

Antes de mais nada, não se julgue que a Igreja realizou de repente a organização social. As grandes revoluções têm de ser precedidas por uma evolução lenta das idéias, pois a opinião pública dificilmente abandona os costumes inveterados. A transformação duma sociedade requer, portanto, uma ação continuada, um trabalho preparatório de grande envergadura. Foi o que a Igreja empreendeu pela sua doutrina, pela sua legislação e pela sua ação.

a) Pela doutrina

Desde o começo a Igreja começou a luta contra a escravatura. O primeiro e mais eloqüente intérprete da sua doutrina foi São Paulo. O Apóstolo das Gentes, com habilidade e arte, estabeleceu os grandes princípios da igualdade (essencial, não acidental) e fraternidade, fundamentos da liberdade individual.

Perante os senhores orgulhosos do Império romano proclamou que todos os homens têm a mesma origem, que foram remidos pelo mesmo sangue, destinados à mesma felicidade e, por conseguinte, iguais ontologicamente, irmãos. Escreveu ele:

“Já não há diferença entre judeu e grego, escravo e livre, homem e mulher. Sois todos um, em Cristo Jesus.” (Gálatas III, 28)

Quando, porém, enuncia os princípios que deverão pouco a pouco abolir a escravatura, evita cuidadosamente a agressão ostensiva contra os senhores, a luta de classes e a revolução demasiado rápida, que comprometeria o bom êxito da sua obra. Julga mais prudente, por então, recordar a uns e outros os deveres recíprocos: aos escravos, a obediência; aos senhores, a bondade (Efésios VI, 5-6).

O ponto fundamental é que o Cristianismo, ao abraçar a máxima do “ama o próximo como a ti mesmo”, plantou no Ocidente as condições para que pudesse existir a igualdade jurídica entre as pessoas – numa palavra, a liberdade – fundamento último de todo o sistema jurídico, político e econômico construído ao longo dos últimos dois mil anos. Sem a mensagem salvadora de Cristo ainda estaríamos vivendo formas imperiais e/ou tribais de organização social.

No caso de nosso país, o Pe. Antônio Vieira exortou:

“Saibam os pretos, e não duvidem, que a mesma Mãe de Deus é Mãe sua…, porque num mesmo Espírito fomos batizados todos nós para sermos um mesmo corpo, ou sejamos judeus ou gentios, ou servos ou livres.” (Sermão XIV)

“Nas outras terras, do que aram os homens e do que fiam e tecem mulheres se fazem os comércios: naquela (na África) o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e compra. Oh! trato desumano, em que a mercância são homens! Oh! mercância diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias e os ricos são das próprias!” (Sermão XXVII)

Em 1707, na cidade do Salvador teve lugar o Primeiro Sínodo Diocesano do Brasil, que promulgou as “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia”, que estiveram em vigor nas demais dioceses do país durante os séculos XVIII e XIX. Esse documento dedicou vinte e três tópicos à situação dos escravos.

Entre outras, merece atenção a exortação a que os senhores proporcionassem aos escravos comida, roupa e o descanso dos domingos e dos dias santos:

“Não é menos para estranhar o desumano e cruel abuso e corruptela muito prejudicial ao serviço de Deus e bem das almas, que muitos senhores de escravos têm introduzido: porque, aproveitando-se toda a semana dos miseráveis escravos, sem lhes darem coisa alguma para o seu sustento nem vestido com que se cubram, não lhes satisfazem esta dívida, fundada em direito natural, como lhes deixarem livres os domingos e dias santos, para que neles ganhem o sustento e vestido necessário. Donde nasce que os miseráveis servos não ouvem Missa nem guardam o preceito da Lei de Deus, que proíbe trabalhar em tais dias. Pelo que, para desterrar tão pernicioso abuso contra Deus e contra o homem, exortamos nossos súditos e lhes pedimos, pelas chagas de Cristo Nosso Senhor e Redentor; que daqui em diante acudam com o necessário aos seus escravos, para que possam observar os ditos preceitos e viver como cristãos”.

Nesta passagem é significativa a menção de abuso contra o homem (não apenas contra Deus), menção que revela a consciência de que todo ser humano, mesmo nas condições da escravatura (que era um traço inerente aos costumes daquela época), merecia respeito.

Gilberto Freyre nos ensina que uma das primeiras coisas que se fazia quando um escravo chegava da África era batizá-lo, isso demonstra a crença na alma e, portanto, da identidade essencial entre todos os homens.

b)Pela sua legislação

Sob influência da Igreja os imperadores convertidos ao cristianismo promulgaram leis tendentes a melhorar a condição do escravo. Para não citar senão alguns exemplos:

1-Constantino, proibiu que se marcassem os condenados e os escravos no rosto “onde reside a imagem da beleza divina” e declarou réus de homicídio os senhores que pelos maus tratos ocasionassem a morte dos escravos.

2-Teodósio, pôs em liberdade todos os filhos vendidos pelos pais.

3-Justiniano, promulgou uma lei, segundo a qual o rapto das escravas se devia castigar com as mesmas penas que o das mulheres livres.

As invasões dos bárbaros no século V foram nefastas para a causa dos escravos. Mas a Igreja, por meio de numerosos concílios regionais continuou a trabalhar contra a escravatura. O concílio de Auxerre, por exemplo, proibiu o trabalho dos escravos aos domingos. Os concílios do século VIII reconheceram a validez do casamento contraído, com conhecimento de causa, entre livres e escravos.

Além disso, o escravo foi admitido pela Igreja ao sacerdócio e à profissão monástica, contanto que obtivesse prévio consentimento do senhor ou carta de alforria.

No caso do Brasil, poucos decênios após o Primeiro Sínodo Diocesano do Brasil, o Papa Bento XIV, lançou a Bula lmmensa Pastorum, redigida aos Bispos do Brasil e de outras partes da América, a fim de que tentassem obter melhores condições de vida para os escravos.

O documento lembra, de início, que:

“…não devemos ter maior caridade do que nos preocuparmos em colocar nossa existência não só a favor dos cristãos, mas também da escravatura e inteiramente a favor de todos os homens.”

A seguir expõe o problema:

“Por isto recebemos certas notícias não sem gravíssima tristeza de nosso ânimo paterno, depois de tantos conselhos dados pelos mesmos Romanos Pontífices, nossos Predecessores, depois de Constituições publicadas prescrevendo que aos infiéis do melhor modo possível dever-se-ia prestar trabalho, auxílio, amparo, não descarregar injúrias, não flagelos, não ligames, não escravidão, não morte violenta, sob gravíssimas penas e censuras eclesiásticas…”

O Pontífice ainda recorda, renova e confirma as declarações dos Papas Paulo III em 1537 e Urbano VIII em 1639. O primeiro ordenou ao Arcebispo de Toledo que protegesse os índios da América e ameaçou de excomunhão, cuja absolvição ficaria reservada ao Papa, quem os subjugasse. Quanto a Urbano VIII, estipulou severas censuras canônicas para todos os que violentassem o livre arbítrio dos índios, convertidos ou não. Bento XIV chama desumanos os atos de prepotência contra os escravos e estabelece haja excomunhão latae sententiae ipso facto incurrenda (isto é, excomunhão infligida desde que cometido o delito) e outras censuras canônicas para os que maltratavam os índios. E por “maus tratos aos índios” explica o Pontífice que entende escravizar, vender, comprar, trocar, dar, separar de suas mulheres e filhos, esbulhar, levar para outros lugares, cercear de qualquer modo a livre ação, deter no cativeiro, como também, por qualquer pretexto, ajudar de qualquer forma os agentes destas iniqüidades. Exorta finalmente os Bispos a que “com diligência, zelo e caridade cumprissem a sua tarefa”.

Infelizmente, o Marquês de Pombal, por alvará de 8/5/1758, mandou executar esta Bula em todo o Brasil apenas no tocante aos indígenas. Na verdade, o teor do documento refere-se a todos os homens, incluídos os de origem africana trasladados para o Brasil.

C) Pelos seus atos

No exercício do culto, a Igreja primitiva não tinha em conta as distinções sociais.

“Entre ricos e pobres, entre escravos e livres, não há diferença alguma.” (Lactâncio)

Esta foi uma das principais razões que mais contribuíram para a libertação dos escravos.

“As reuniões da Igreja teriam bastado só por si para desterrar esta cruel instituição (a escravatura). A antigüidade se pode conservar a escravatura excluindo-a dos cultos patrióticos. Se tivessem tomado parte nos sacrifícios juntamente com os senhores, ter-se-iam levantado moralmente. A reunião da igreja era a mais perfeita lição de igualdade religiosa… Uma vez que o escravo tem a mesma religião que o senhor e que ora no mesmo templo, a escravatura está prestes a acabar.” (Renan, Marco Aurélio)

A admissão dos escravos ao sacerdócio e à vida monástica, de que falei, foi outro grande impulso para o nivelamento das classes. Sob o burel e sob o véu monásticos não há distinção entre senhores e escravos: uns e outros trabalham e oram em comum, confundidos numa igualdade perfeita.

Devemos notar, também, que a partir do século VI a Igreja, enriquecida com piedosas doações de reis e senhores, emprega grande parte dos seus bens em resgatar inúmeros prisioneiros de guerra e escravos, para lhes dar a liberdade ou, pelo menos, para lhes tornar a vida mais suave.

É bem conhecida a obra de Leão XIII e do Cardeal Lavigerie contra o tráfico negreiro no século XIX.

No nosso país, tivemos o trabalho dos jesuítas, bem conhecido, embora igualmente distorcido pela historiografia marxista.

Tal foi a obra da Igreja no passado e continua hoje em muitas partes do mundo onde o flagelo da escravidão persiste, como no Sudão.

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