A aceitação do cânon amplo da Septuaginta na Palestina do século I

Não é incomum ouvirmos o seguinte argumento protestante:

“A Septuaginta e os livros “apócrifos” nunca foram aceitos ou usados pelos judeus na Judéia do primeiro século”.

No entanto, partes da Septuaginta foram encontradas na Judéia, entre os manuscritos do Mar Morto, sendo anteriores ao ano 70 d.C.. Alguns exemplares foram encontrados na caverna 4 (119LXXLev.; 120papLXXLev.; 121 LXXNum.; 122LXXDeut.). Há também um texto não identificado da Septuaginta grega, encontrado na caverna 9 (Q9).

Em acréscimo a esses fragmentos, existe um fragmento de papiro, escrito em grego, encontrado na caverna 7 (LXXExod.). A caverna 7 produziu ainda muitos pequenos fragmentos em grego (da Septuaginta), cujas identificações permanecem em discussão ou sem classificação. O dr. Emanuel Tov sugere as seguintes identificações para alguns destes fragmentos gregos do primeiro século antes de Cristo:

– 7Q4. Números 14,23-24;

– 7Q5. Êxodo 36,10-11; Números 22,38;

– 7Q6. 1 Salmo 34,28; Provérbios 7,12-13;

– 7Q6. 2 Isaías 18,2

– 7Q8. Zacarias 8,8; Isaías 1,29-30; Salmo 18,14-15; Daniel 2,43; Eclesiastes 6,3.

No meio destas porções da Septuaginta, foram encontrados manuscritos parciais contendo alguns termos dos livros “apócrifos”:

4Q478 [Tobias], 4Q383 e 7QLXXEpJer. [Epístola de Jeremias], para citar apenas alguns.

É importante notar que nas cavernas de Qumran (de onde provêm os “manuscritos do Mar Morto”), foi encontrada uma cópia do livro do “Eclesiástico” na língua hebraica [manuscrito 2QSir.], bem como um fragmento de “A História de Suzana” (correspondente ao capítulo 13 do livro de Daniel), também em hebraico [manuscrito 4Q551]. Já na caverna 4 de Qumran, foram encontrados fragmentos do livro “apócrifo” de Tobias, nas línguas aramaica [manuscrito 4Q196-9] e hebraica [manuscrito 4Q200].

Deve-se observar, também, que as cavernas de Qumran não são o único lugar na Judéia em que se encontraram livros “apócrifos”. Outro exemplo é a cópia do livro do “Eclesiástico” (ou “A Sabedoria do Filho de Sirá”), em hebraico, encontrada nas ruínas de Massada. Este fragmento manuscrito data do início do século I a.C..

Alguns, porém, poderão argumentar que:

“Os ebionitas (ou seita de Qumran) eram um grupo estranho, que nunca veio a fazer parte do ramo principal do judaísmo”

Mas se lermos o Novo Testamento, verificaremos que naquele tempo não existia nenhum “ramo principal do judaísmo”, como, ao contrário, existe hoje. Nesse sentido, explica o pesquisador protestante dr. Martin Abegg:

“Tanto no judaísmo moderno quanto no cristianismo, uma “seita” é, geralmente, um ramo de um tronco religioso maior e é freqüentemente vista com excêntrica ou desviada nas suas crenças. Mas os pesquisadores e leigos deveriam recordar que durante todo o período de existência de Qumran, os fariseus e os saduceus eram “seitas”, assim como eram os essênios! Foi apenas a partir do século II d.C. que passou a se formar um tipo de judaísmo – aquele dos fariseus, dos rabis – que veio a se tornar padrão para o povo judeu como um todo.

Tais matérias são de menor importância se comparadas com os manuscritos bíblicos. Primeiro, porque todos os pesquisadores concordam que nenhum dos textos bíblicos (tais como Gênese ou Isaías) foi composto em Qumran; ao contrário, todos eles se originaram antes do período de Qumran. Também é aceito que muitos ou a maioria desses manuscritos foram trazidos de fora para Qumran e, depois, aí reproduzidos. Isto significa que o valor da maioria dos manuscritos bíblicos enganam, não em estabelecer precisamente onde foram escritos ou copiados, mas especificamente quanto ao estudo das formas textuais que encerram” [The Dead Sea Scrolls Bible (=A Bíblia nos Manuscritos do Mar Morto), (C) 1999, pg. XVI]

Encontramos um bom exemplo do uso da Septuaginta (a qual contém os “apócrifos”) entre os judeus da Judéia quando lemos os capítulos 6 e 7 dos Atos dos Apóstolos. Aí lemos que Santo Estêvão, cheio do Espírito Santo (At. 6,10), foi levado ao Sinédrio pela multidão (At. 6,12); Estêvão, então, se dirigiu aos judeus e contou-lhes como Jacó trouxe seus 75 descendentes para o Egito:

Atos 7,14-15: “Então José mandou buscar Jacó, seu pai, e toda sua parentela, em número de setenta e cinco pessoas. Desceu Jacó para o Egito e aí morreu, ele e também nossos pais”.

Mas os manuscritos hebraicos nos dizem que Jacó trouxe 70 descendentes para o Egito (cf. Gên. 46,26-27; o texto hebraico também recorda “70” em Deut. 10,22 e Ex. 1,5). Ora, o Sinédrio judaico e os sacerdotes bem sabiam que Deut. 4,2; 12,32; Sal. 12,6-7 e Prov. 30,6 proíbem que se acrescente ou retire algo da Palavra de Deus. Com efeito, por que o Sinédrio e os sacerdotes não se escandalizaram com a afirmativa feita por Estêvão, de que Jacó trouxera 75 descendentes? Por que não o acusaram de “perverter a Escritura”? Quando lemos esses versículos, notamos que os judeus pareciam nem mesmo piscar. Em ponto algum desta passagem encontramos qualquer sugestão de que a raiva nutrida pelos judeus contra Estêvão havia se originado de uma possível “perversão das Escrituras”. Ao contrário, eles mataram Estêvão porque foram por este confrontados com a pessoa do Senhor Jesus ? que era realmente o Cristo, e, ao contrário de ser por eles recebido, foi assassinado do mesmo modo que seus predecessores, os profetas (At. 7,51-53)!

A explicação para a discrepância numérica na história de Jacó narrada por Estêvão é simples: ele está citando Gênese (46,26-27) a partir da versão grega da Septuaginta, a qual possui cinco nomes a mais (total de 75 nomes) que o texto massorético hebraico. Os cinco nomes que faltam no texto hebraico foram preservados na Septuaginta, em Gên. 46,20, onde Makir, filho de Manassés, e Makir, filho de Galaad (=Gilead, no hebraico), são apontados, posteriormente, como os dois filhos de Efraim, Taam (=Tahan, no hebraico) e Sutalaam (Shuthelah, no hebraico) e seu filho Edon (Eran, no hebraico).

O Sinédrio certamente teria contestado a afirmação de Estêvão se a Septuaginta não fosse usada ou aceita pelos judeus da Judéia. Com efeito, o fato de a Septuaginta ter sido encontrada entre os manuscritos do Mar Morto bem demonstra que esse era o caso.

Sendo, pois, uma realidade que ambas as versões (a Septuaginta e a hebraica) eram de uso comum na Judéia do primeiro século, o Sinédrio não se surpreendeu ou se escandalizou com a declaração de Estêvão. Afinal, o fato de serem 70 ou 75 o número de descendentes de Jacó não se revelava doutrina importante para os judeus e, ao que parece, também havia muitos judeus no outro lado da questão.

Eis alguns dos papiros e manuscritos primitivos da Septuaginta:

Século II a.C.:

1. 4QLXXDeut [#819] (rolo em pergaminho, Deut. 11)(“couro”); 2. PRyl 458 [#957 = vh057] (rolo em papiro, Deut. 23-28).

Séculos II/I a.C.

3. 7QLXXEx [#805 = vh038] (rolo em papiro, Ex. 28); 4. 4QLXXLeva [#801 = vh049] (rolo em pergaminho, Lev. 26) (“couro”); 5. 7QLXX EpJer [#804 = vh312] (rolo em papiro, EpJer/Bar6); 6. 7Q4, 7Q8, 7Q12 (rolo em pergaminho, Epístola de Enoque = “1Enoque” 103).

Século I a.C.

7. 4Q127 (rolo em papiro, paráfrase grega de Êxodo?); 8. PFouad266a [#942] (rolo em papiro, Gên.); 9. 4QLXXLevb [#802 = vh046] (rolo em papiro, Lev. 2-5); 10. PFouad 266b [#848 = vh56] (rolo em papiro, Deut. 17-33); 11. PFouad 266c [#847 = vh56] (fins do séc. I a.C., rolo em papiro, Deut. 10-33).

Entre as Eras a.C. e d.C

12. 4QLXXNu [#803 = vh051] (rolo em pergaminho, Núm. 3-4).

Século I d.C.

13. POxy 3522 [#??] (rolo em papiro, Jó grego 42).

Séculos I/II d.C.

14. POxy 4443 [#??] (rolo em papiro, Ester grego, Est. 8-9); 15. PBodl 5 [#2082] (código em pergaminho, Salmo grego, Sal. 48-49).

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