A anestesia da parturiente não contraria a condenação divina no Gênesis?

– “A realização moderna do parto sem dor parece contradizer à condenação que a Sagrada Escritura profere sobre a mulher em consequência do pecado. Como julgar a moralidade dessa inovação da Medicina?”

1. Os médicos, desde a época anterior a Cristo, têm-se esforçado por aliviar as dores, que acometem a mulher no parto. Os cristãos na Antiguidade, movidos pelo mesmo intuito, além de empregar meios de higiene e medicina, recorriam também a orações a Maria Santíssima e a Santa Ana, aplicavam à parturiente relíquias ou objetos bentos (o “cinto da Virgem”, o “Agnus Dei” etc.).

No século XIX a Medicina se aperfeiçoou neste setor, utilizando anestésicos diversos. Aos 19 de janeiro de 1847, James Yung Simpson realizou em Edinburgo (Escócia) o primeiro parto “indolor”, anestesiando a paciente com éter; aplicou também o clorofórmio. A primeira menina que nasceu durante narcose de clorofórmio foi chamada “Anestesia”.

Logo, porém, se fizeram ouvir contra o médico escocês pastores protestantes, julgando ilícito o procedimento, pois lhes parecia burlar a sentença de Gênesis 3,16: “Em medo hás de dar à luz os teus filhos”. Simpson defendeu-se apelando para uma nova interpretação do termo hebraico “etzev” (dor), assim como para o exemplo do Criador que, conforme o modo de dizer do Gênesis, antes de extrair uma costela de Adão, enviou a este um sono profundo (cf. Gen 2,21). Por seu lado, as mulheres de Edinburgo apoiavam fortemente a Simpson, alegando que “literalmente os homens se deviam comprometer a só comer pão molhado com o suor de sua testa”, caso não lhes quisessem conceder um alívio no parto.

As discussões foram reduzidas a silêncio quando a rainha Vitória da Inglaterra, estando para dar à luz o seu sétimo filho, o príncipe Leopoldo, pediu ao médico John Snow que a narcotizasse no parto. As razões citadas por Simpson foram, a seguir, tidas por autênticas; começou-se a falar da anestesia e do parto “à la reine”.

Na Rússia semelhante discussão médico-religiosa se levantou em 1860, quando Klokvotsch aplicou a uma parturiente uma máscara de protóxido de azoto…

Não obstante, os médicos continuaram seus estudos. Em 1933 o sábio inglês Grantly Dick Read propôs novo método, que se servia prevalentemente de recursos psicofísicos: é o “parto sem medo”. Read, afirmando ser o temor a principal causa da dor no parto, elaborou amplo programa de educação psíquica da gestante e de exercícios de relaxamento muscular. Depois da guerra de 1939-1945, os médicos russos, baseando-se nos trabalhos de Pavlov, propuseram, por sua vez, o “método psicoprofilático”, o qual nos pontos essenciais coincide com o de Read: ambos visam abolir a dor pela educação psicoterápica; diferem um do outro, porém, pela ideologia ou filosofia a que se prendem: o método inglês, mais antigo, está associado a uma concepção espiritualista da alma; ao passo que o método russo, a uma psicologia materialista.

Logo depois que os russos apresentaram ao mundo seu processo psicoprofilático, os católicos se mostraram hesitantes sobre a liceidade do mesmo; havia quem duvidasse, fosse por causa da sentença do Gênesis (contra a qual a Medicina parecia insurgir-se), fosse por causa das teses ateias que a imprensa comunista divulgava junto com as conclusões dos médicos.

2. Em meio às dúvidas, o Santo Padre Pio XII houve por bem esclarecer os fiéis em duas famosas alocuções:

a) Aos 29 de setembro de 1949, Sua Santidade, dirigindo-se aos médicos católicos reunidos em Roma no seu IV Congresso Internacional, exaltava os bons serviços prestados pelos médicos à humanidade, realçando entre outros o seguinte:

– “Como ginecologista, o médico se esforça por diminuir as dores do parto, sem contudo pôr em perigo a saúde da mãe ou da criança, e sem se expor a mudar os sentimentos de ternura materna para com o recém-nascido”.

Como se vê, o Santo Padre, aprovando as experiências de parto sem dor, impunha-lhes apenas duas restrições. A primeira é clara: exclui métodos que de certo modo constituam um atentado à vida humana; a segunda rejeita processos de hipnotização ou anestesia que possam diminuir o amor da mãe ao filho: este amor pertence à dignidade humana; mutilá-lo ou diminuí-lo pela Medicina seria contrariar à natureza, a obra santa do Criador.

b) Aos 8 de janeiro de 1956, o Santo Padre se pronunciou mais uma vez sobre o assunto, tendo em vista diretamente o método propagado pelos médicos russos. Dizia em síntese:

1º) Em si mesmo, o método psicoprofilático nada tem de reprovável sob o ponto de vista moral. A influência exercida para fazer desaparecer o medo infundado, a ajuda concedida para que a parturiente colabore com a natureza, tomando consciência mais profunda da grandeza da maternidade, são valores positivos, plenamente conformes com o plano do Criador. Se consegue-se eliminar a dor do parto, diminui-se ao mesmo tempo o perigo de se cometerem deturpações no uso dos direitos matrimoniais.

2º) Quanto à condenação proferida por Gênesis 3,16, considere-se que Deus, punindo os homens após o primeiro pecado, não os quis impedir de investigar e utilizar todas as riquezas da criação (cf. Gênesis 1,28), a fim de tornar mais suportável a vida neste mundo, e menos penosos o trabalho e a enfermidade. Em particular, pois, o Senhor, castigando Eva, não quis proibir às mulheres o uso de meios que tornem o parto mais fácil, como, ao punir Adão, não quis vedar aos varões o uso de máquinas que dispensem a muitos de suar nos campos. Como quer que seja, a maternidade, desde o primeiro instante da gestação até a última fase da educação da prole, sempre deu e dará muito que sofrer à mulher. Ora é este sofrimento, próprio e característico da mulher, que o Gênesis aponta a Eva como castigo do pecado; castigo, porém, que, após a Redenção por Cristo, vem a ser simultaneamente o meio de salvação e santificação da mulher desde que aceito em união com os sofrimentos do Redentor (cf. 1Timóteo 2,15).

3º) O fato de se aprovar o método psicoprofilático dos médicos russos não implica aprovação da ideologia materialista desses estudiosos. Os russos materialistas podem ter feito uma bela descoberta científica em Medicina; os resultados por eles obtidos não dependem da filosofia soviética, pois o cientista inglês Read, dotado de outras ideias filosóficas, chegou a semelhantes conclusões. A aceitação do teorema de Pitágoras ou das observações do médico Hipócrates não significam aceitação da cultura geral pagã destes dois homens de ciência, como o reconhecimento das descobertas de Pasteur e das leis da hereditariedade de Mendel não acarreta a profissão do Cristianismo. A veracidade das descobertas de laboratório ou de ciências empíricas é julgada por critérios diferentes dos da Filosofia.

Eis os pontos da alocução do Santo Padre que interessava realçar neste exame.

Não obstante a última advertência de Sua Santidade, um jornal comunista de França, “Les nouvelles de Bordeaux et du Sud-Ouest”, aos 19 de janeiro de 1956, onze dias após a declaração do Pontífice, assim se referia ao método psicoprofilático:

– “Esta descoberta liga-se a um conjunto moral e filosófico, à concepção soviética do homem e da vida (…) de maneira que a concepção e a técnica soviéticas da vida do homem explicam e justificam o parto sem dor. E o Papa aprova-as. Aprova o efeito. Poderá ele continuar a maldizer as causas? Sem as causas científicas, ideológicas e políticas, o efeito não poderia ser obtido”.

Tais afirmações são reconhecidamente exageradas e tendenciosas.

3. Apesar da propaganda desenvolvida em torno do parto sem dor, não se pode dizer que este seja uma conquista definitiva da ciência. Um relatório apresentado pelo Dr. Rodrigues Lima à I Conferência Brasileira sobre o Parto sem dor (São Paulo, 6 e 7 de julho de 1956) chegou à conclusão de que o método psicoprofilático suprime a dor em 25% apenas das parturientes; está longe, portanto, de ter eficácia absoluta e definitiva! De outro lado, não há argumento, nem empíricos nem filosóficos, que nos obriguem a admitir – como admitem não poucos discípulos da escola russa – que o parto é por si mesmo indolor, como qualquer outra das funções da natureza. A natureza, ocasionando o parto doloroso, não estaria em contradição consigo mesma; a dor associada ao parto tem seu significado positivo e valioso: concorre para salientar a importância do ato e obriga a que se tomem medidas necessárias protetoras da mãe e do filho. De resto, falso seria dizer que outrora a parturição era indolor, como hoje o é entre os selvagens e os animais; os documentos históricos e a experiência refutam tal tese. Não se pode negar, porém, que parte mais ou menos notável da dor provém de preconceitos, os quais podem ser removidos pela psicoterapia.

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BIBLIOGRAFIA

– PAPA PIO XII (segundo discurso acima citado, em tradução portuguesa na “Revista Eclesiástica Brasileira” Nº 16, 1956, pp.225-233).
– A. PAZZINI. “Il medico di fronte alla Morale”. Brescia, 1951, pp.77-86.
– S. NAVARRO, “Problemas medico-morales”. Madrid, 1954, pp.437-454.
– A. WOLF NETTO, “Críticas ao Método psicoprofilático do Parto sem dor”, na “Revista Eclesiástica Brasileira”, vol.cit.

 

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 2:1957 – mai/1957.

 

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