A assistência divina

“Eis que estou convosco até o consumar-se dos séculos”. Esta promessa que serve de feixe ao evangelho de S. Mateus, assegura a presença ativa de Jesus aos poderes de magistério e de governo.

Presença invisível — pois corporalmente Jesus está na glória — porém eficaz; presença constante, que vence o tempo. Presença que não se substitui aos pastores, mas antes vem ampará-los perenemente.

Todos os membros da hierarquia de jurisdição, quando desempenham suas funções pastorais, jamais se encontram sós. Jesus lhes está ao lado, iluminando, guiando, sustentando, a fim de que não se perca o rebanho, ou se desgarre, ou demande pastagens venenosas.

Do grande texto de S. Paulo aos Efésios (4, 11-16), colhemos que: l9 o próprio Cristo instituiu os Apóstolos, evangelistas, pastores e doutores; 2? eles edificam, sob Cristo, o Corpo Místico, dão-lhe coordenação e unidade; 3? o influxo constante da Cabeça, deriva-se aos membros por meio das “junturas de comunicação”, que são os pastores.

À providência especial que envolve a dupla função de magistério e governo (irmanada pelos antigos sob o termo “jurisdição”), denominam os teólogos de assistência.

A fim de melhor lhe aquilatar a natureza, não será ocioso contrastar poder de ordem (sacerdócio) e poder de jurisdição (magistério e governo).

O sacerdote, ao administrar os sacramentos, também não está só; todavia, ele age então como puro instrumento do Sumo Sacerdote. Precisamente por estar em continuidade quase física com Cristo — sendo atuado por Ele — o seu poder de ordem produz, de modo infalível, o efeito sobrenatural. Batizando, absolvendo, o padre não é de modo algum causa da graça que abrolha na alma do pagão ou do penitente. Há uma só causa da graça, Cristo. E’ ele quem batiza ou absolve, por seu ministro. O poder de ordem, por isso mesmo, não requer “assistência” especial; é infalível de per si. Sei que se eu pronunciar corretamente as pa¬lavras da consagração, com a devida intenção, o Corpo e o Sangue de Cristo estarão infalivelmente sobre o altar, por isso que, naquele momento, o Sumo Sacerdote repete, por meus lábios, as palavras que pronunciou durante a última Ceia.

Ao contrário, os pastores da Santa Igreja, quando ensinam ou governam, agem como verdadeiras causas, se bem que subordinadas a Cristo. O instrumento não opera por virtude própria; vem-lhe a atividade, da causa que o move; enquanto a causa subordinada age por virtude própria, embora necessite o influxo da causa principal, como condição de sua atividade (O leitor, para concretizar, poderá imaginar como exemplo de instrumento: a pena de escrever; e, como exemplo de causa subordinada: o procurador, agindo em nome do seu constituinte).

O Papa, ainda quando usa de seu poder de jurisdição o mais divino, definindo a fé, julga pessoalmente da oportunidade da definição, fá-la preceder de investigações para averiguar a crença da Igreja, escolhe a formulação que dará à verdade, etc.

Vemos assim que a Cabeça do Corpo Místico exerce sobre ele um duplo influxo. O primeiro é intrínseco, vitalizante: a comunicação de sua santidade pela graça. Serve-se então de homens ungidos com o poder de ordem, como de instrumentos pelos quais passa sua ação sobrenatural de Sumo Sacerdote. O segundo, extrínseco, ensinando e dirigindo, serve-se também de homens, mas como de causas subordinadas a quem delega algo de seu poder de Sumo Pastor, para que amestrem as inteligências e governem as vontades. Por isso mesmo, neste último caso, é indispensável uma garantia contra o erro: “a assistência”.

O Papa, os Bispos reunidos em concílio, são, como pessoas privadas, falíveis — pois são homens; — só conseguirão declarar, com absoluta autenticidade, a verdade evangélica, na medida em que Deus os amparará, os “assistirá”.

Mas como conceituar, com exação, esse auxílio? E’ um “carisma”, a saber: um socorro ou influxo especial do Espírito San¬to, que visa não já a santificação pessoal do beneficiário, mas a utilidade da comunidade cristã. Concretamente, terá por finalidade permitir à Igreja docente, de desempenhar a missão em que foi investida por seu chefe: conservar e explicar o depósito revelado, governar sabiamente o rebanho de Cristo. Tal carisma revestirá a forma ora de iluminação, ora de discernimento prudente, ora de fortaleza, ora de caridade heróica, etc.

Certos teólogos atribuem à “assistência” uma virtude puramente negativa: não pactuar com o erro. Outros, mais avisados, adscrevem-lhe também um efeito positivo: iluminar, fazer des-cobrir a verdade evangélica, ajudar a traduzi-la fielmente, etc.

O sumo grau da “assistência” é a garantia absoluta dada ao Papa, falando “ex cathedra”; ao Concílio geral, definindo em união ao Papa. Embora seja de índole positiva, não deve ser concebida à guisa de nova revelação; nada descobre de verdadeiramente desconhecido; faz apenas ver e expressar, com fidelidade, o que já se encontrava — quiçá implicitamente — no depósito revelado. O Magistério eclesiástico, já foi dito, não passa de mensageiro, arauto, da revelação. “Embaixador” de Cristo, diz S. Pau¬lo (2 Cor 5, 20).

Definiu o Concílio do Vaticano que a assistência infalível se estende ao ensinamento das verdades a crer, como da moral a praticar (cf. Denz. 1839). Sem esse carisma logo se deturparia a Revelação, e a Igreja descambaria na completa anarquia de crenças e de costumes. Prova-o, sobejamente, a história do protestantismo.

Se o Senhor prometeu, como prometeu, que estaria sempre com a sua Esposa, e que as forças infernais não prevaleceriam contra ela, é absolutamente necessário que seja amparada, por Deus, a fragilidade humana.

Todavia, a Igreja não se limita a conservar e explicar a doutrina revelada sobre a fé e os costumes. Deve ainda guiar praticamente a seus filhos, nas diversas conjunturas da vida, para que evitem o erro e o mal, abracem a verdade e o bem. Donde a longa série de leis, regulamentos, disposições, preceitos, conselhos, de que falamos. Variará o grau de “assistência” do Espírito Santo, segundo o alcance dessas iniciativas.

Em certos casos de importância extrema, as decisões serão propriamente infalíveis. Por exemplo: é de todo impossível que a Igreja latina se tenha enganado quando “por graves e justas causas” decidiu distribuir a sagrada comunhão sob uma só espécie (cf. Denz. 935).

Possível é o erro, em compensação, no que se refere a decisões menos importantes e gerais. Porém, ainda aqui devemos crer que a “assistência” divina não falta. As diretivas eclesiásticas serão acertadas, o mais das vezes. Já aludimos a certa “infalibilidade global”, entendendo por aí que o governo da Igreja é de tal forma dirigido pelo Espírito Santo que, em conjunto, leva ao estabelecimento do Reino de Deus sobre a terra, em que pesem os muitos enganos ou deficiências pessoais deste ou daquele hierarca.

A crença na “assistência” do Espírito Santo, confere a nossa obediência de fiéis, um caráter religioso. Obedecendo aos pastores, obedecemos ao Espírito que os constitui Bispos, para governarem a Igreja de Deus (At 20, 28).

Mas podem errar? — Seja. Em última análise, Deus saberá tirar o bem do mal. De qualquer forma foi Deus servido permitir aquele erro. Se o Superior enganou-se, entrava nos desígnios de Deus que ele se enganasse, pois Deus age sobre os acontecimentos através de instrumentos humanos, logo falíveis. Deus liga a sua ação no mundo, naquele momento dado, à decisão’ deste superior particular. Logo essa decisão nos traz a vontade de Deus, sempre boa. Daí, a serenidade perfeita do cristão fervoroso, em presença de certas medidas legislativas ou disciplinares, que se lhe afiguram menos acertadas. Quando Pio XI, por exemplo, repudiou os erros da. Action française, não fazia uso do carisma da infalibilidade. Numerosos franceses, embora julgassem a iniciativa pontifical menos feliz, obedeceram entretanto ao Pai comum, por espírito de fé e docilidade filial. Consolavam-se, pensando que a Providência saberia, de qualquer maneira, salvaguardar os interesses supremos da sua pátria.

De pouco valeria, houvesse Cristo confiado a sua Igreja dogma profundo e sublime moral, se ela malograsse na aplicação cotidiana desse dogma e dessa moral; se não conseguisse praticamente afastar seus filhos do mal e encaminhá-los ao bem.

Fonte: PENIDO, Pe. Dr. Maurílio Teixeira-Leite. O Mistério da Igreja. Petrópolis: Ed. Vozes, 1956. Pg 306-309.

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