A autoridade e a polícia

A trágica situação de desordem institucional, refletida na incontestável corrupção dos aparatos policiais e judiciários nacionais, é em meu entender devida a um problema que assola a sociedade como um todo: a crise da autoridade.

O reconhecimento da autoridade desapareceu, para todos os efeitos. As leis não são seguidas, as autoridades não são obedecidas, e a própria existência natural de uma hierarquia é negada por muitos. Vejo isso diariamente em meus alunos de colégio: adolescentes que não têm a mais vaga noção de que haja uma coisa chamada autoridade, de que haja hierarquia, respeito necessário, etc. Sou obedecido, mas não por ser professor; obedecem-me por ser carismático e saber apelar para seus sentimentos. A “desmitificação” de todos os heróis pátrios é a regra; a exaltação da mediocridade é a norma.

Com isso, a autoridade governamental passa a ser uma piada de mau gosto. Ela é negada, na prática, tanto pelos que desobedecem às leis quanto pelos próprios legisladores, juízes e executivos, que legislam sabendo que suas leis não terão maior efeito. Agora mesmo o governador do Estado do Rio de Janeiro promulgou uma lei, evidentemente inválida, estabelecendo um salário mínimo estadual. O Supremo Tribunal – entre uma e outra decisão sobre o cachorro que mordeu o homem e o homem que mordeu o cachorro – decidiu pela inconstitucionalidade da lei em questão. O governador limitou-se a dizer que vai promulgar a mesma lei novamente, mudando um pouco a redação.

Isto ocorre porque ele está consciente de não ter autoridade, ou ao menos de sua autoridade não ser respeitada por ninguém pelo simples fato de ser autoridade. Sua legitimidade não é reconhecida. A única maneira de fazer vigorar uma lei é pela força; sem que a lei seja imposta pela força, ela é simplesmente ignorada.

Entra aí a questão da polícia corrupta. Em uma sociedade menos desordenada, a função da polícia seria impedir a ação da aberração, daquele louco que não respeita a regra por todos aceita. A polícia, em teoria, deveria lidar apenas com criminosos que todos reconhecem como tal.

Em nossa sociedade enlouquecida, com suas leis incogruentes e mutuamente excludentes pululando em fúria de vermes tanatófagos a cada arroto legislativo dos governantes, a polícia ganha porém um poder inaudito: somos todos criminosos, somos todos sujeitos à prisão.

São tantas as leis, que é impossível fazer sentido o adágio judiciário de que a ignorância da lei não desculpa não cumpri-la. Ninguém, nem mesmo um juiz, conhece todas as leis. Ninguém, nem mesmo os policiais encarregados de fazer cumpri-las, sabe o que as leis proíbem e permitem.

Assim, qualquer um, literalmente qualquer um, é presa fácil para um mau policial.

Lembro-me de uma vez em que descia para o Rio de Janeiro, com o carro carregado de flores para a festa de Natal. Era Véspera de Natal.

Fui então parado por um guarda rodoviário. Mostrei-lhe meus documentos e os documentos do carro – estava tudo em ordem. Mostrei-lhe também, sem que isso me fosse solicitado, o porte de arma (que, mal que bem, prova que não tenho antecedentes criminais) e a arma, desmuniciada e dentro de uma caixa fechada, que carregava para não deixá-la no sítio. Exibi-lhe o funcionamento perfeito das luzes do carro, o estado adequado dos pneus, a existência e perfeita conservação de macaco, triângulo, extintor, etc.

De nada adiantou. Ele, em busca evidentemente de dinheiro, declarou que as rodas do carro eram do modelo errado, e o carro só poderia sair dali se eu trocasse as cinco… ou se desse um dinheirinho para ele. Fui assim roubado em trinta cruzeiros, literalmente vítima de assalto.

Hoje não daria este dinheiro; ando sempre com um monte de terços no porta-luvas, e costumo dar um a guardas que pedem dinheiro, dizendo que em sua profissão, enfrentando diariamente bandidos perigosos, ele precisa de muita oração e proteção divina.

A situação, porém, é sintomática: o guarda está com a faca e o queijo na mão. A tal legislação sobre rodas, que até hoje desconheço se é verdadeira ou não, deu a ele o poder de apreender meu carro na véspera de Natal, mesmo estando com todos os certificados e penduricalhos requeridos para a vistoria.

O mesmo ocorre com os pequenos e médios empresários; a fiscalização sempre tem condições de exigir algum absurdo (“o extintor de incêndio deve estar a um metro e dois centímetros do chão, não a um metro exatamente!”), alguma aberração legal que ou é cumprida ou o estabelecimento é multado, ou até fechado.

Isto ocorre porque a autoridade não é reconhecida. Não sendo reconhecida, não há absolutamente nada – nem mesmo o bom-senso mais elementar – que possa impedir que um legislador insano penalize com prisão inafiançável o arrancar da casca de uma árvore para fazer um chá (caso real), ou outro contra-senso absurdo qualquer. Ora, se a lei é “para inglês ver”, por que cargas d’água preocupar-se se ela faz sentido? Se a lei é “para inglês ver”, por que preocupar-se com o pobre coitado que será preso porque o guarda tinha algum interesse em vê-lo preso e a lei absurda veio bem a calhar, que terá que amargar anos de cadeia enquanto seu caso arrasta-se de instância judicial em instância judicial, até ir tomar o tempo precioso de um ministro do Supremo Tribunal Federal?

Faltando o reconhecimento da autoridade, sobra a arbitrariedade policial, sobra poder nas mãos do que teoricamente agiriam em prol do cidadão comum e contra a aberração criminosa.

Somando-se isso aos baixíssimos salários que normalmente são pagos aos policiais, temos uma situação difícil. Há certamente uma minoria que entra para uma força policial na esperança e no afã de agir em benefício da sociedade, eliminando de seu convívio a aberração criminosa. A maioria, porém, é composta infelizmente por pessoas de poucos escrúpulos, que percebem o poder desproporcional que lhes é dado por um distintivo policial. Aos primeiros é dificílimo manter-se na honestidade: é necessário fazer “bicos” e mais “bicos” (que agora estão sendo legalizados no Rio – o policial passa a ter o “direito” de trabalhar como segurança particular para poder comer honestamente), é necessário calar-se diante de abusos e fechar os olhos à corrupção. Aos segundos é dado o paraíso na terra: a extorsão ilimitada de tudo e de todos (quem não está infringindo uma lei sem o saber, como eu – talvez – no caso das tais rodas ilegais?), virtual certeza de impunidade, poder praticamente sem limites. Estes andam de carro do ano, com salários de quatrocentos reais por mês. Estes dominam a polícia, esta arma de coerção contra o cidadão comum em um país onde inexiste a autoridade legítima.

E durma-se com um barulho desses.

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