A belíndia de Dilma

Edmar Bacha apelidou, na década de 70, o Brasil de “Belíndia”, numa fábula econômica que escreveu. Temos impostos de Bélgica e serviços de Índia; temos ao mesmo tempo, no mesmo território, duas populações, uma assemelhada à da Bélgica e outra à da Índia.

De lá para cá, isso se cristalizou; os “belgas”, contudo, ainda não se deram conta da existência dos “indianos”. A classe média tradicional, no Brasil do Século XXI, vive numa bolha fechada, à qual raramente chega alguma notícia do resto da população.

Para esta ínfima minoria, os temas que aparecem na primeira página dos jornais orientam o pensamento e as escolhas políticas; o PT esteve envolvido no Mensalão, o Código Florestal teve ou não teve vetos significativos, os royalties do petróleo foram divididos assim ou assado…

Para a imensa maioria da população, contudo, estas notícias, por mais que ocupem espaço nos telejornais, são absolutamente irrelevantes. O pensamento político da maioria da população é orientado por uma visão de mundo totalmente diferente. A relação entre o voto num candidato e a legislação e atos executivos dos próximos anos é, na melhor das hipóteses, nebulosa. Na verdade, a imensa maioria dos eleitos, para os eleitores, desaparece assim que acabam as eleições.

Sobram alguns poucos, os que aparecem na TV; mormente os ocupantes de cargos executivos. Os legisladores são fantasmas; como disse um deles, às vésperas de ser eleito com votação estrondosa, “não sei o que um deputado faz”.

E quem sabe o que faz um detentor de cargo executivo?

Paradoxalmente, a modernização do Brasil foi efetuada de maneira personalista, conduzida por um ditador que se fazia chamar de “Pai dos Pobres”. O governante paternal, algo normalmente associado à monarquia e não à república, permaneceu após a República ter sido proclamada diante de um povo pasmo e bestificado. O Presidente tem como função, no imaginário popular, ser o “pai” da grande família dos brasileiros.

Enquanto para a classe média tradicional a função do presidente é precipuamente política, na visão da maioria ele é quem “toma conta da casa”. Mas o que isto significa é um mistério; só se sabe que é algo necessário e difícil, uma nobre missão. Escapa completamente ao radar da população a divisão dos poderes e das responsabilidades, e tudo é atribuído às benfazejas mãos paternais do ocupante do Planalto, da segurança pública às estradas, do estado dos canteiros da praça à provisão de giz da escolinha.

Não, contudo, a lei. Dentro da visão personalista e tradicional da maioria da população, a lei é algo preexistente, quase um fato da natureza. O pequeno agricultor descobre que não lhe é permitido plantar uma roça de feijão quando é autuado em flagrante pelo medonho crime ambiental que cometera sem saber, mas a relação entre o que lhe foi feito e o debate sobre o Código Florestal passa-lhe despercebida.

O processo de redemocratização do Brasil, após o fim dos governos militares, ocorreu praticamente todo dentro desta “bolha” que isola as instituições políticas e que só é penetrada pela classe média tradicional. Assim como o povo assistira, estupefato, a Proclamação da República, recebeu ele José Sarney como Presidente. A primeira eleição presidencial levou ao trono, digo, ao Planalto, alguém que parecia capaz de “botar ordem na casa” após o transtorno da hiperinflação. Em pouco tempo, contudo, assistiu novamente o povo à derrubada do presidente Collor após forte campanha midiática que parecia justifica-la, numa briga de cachorro grande em que gente sensata não se metia.

A subida de FHC – ministro de Itamar e apresentado como responsável pelo fim da hiperinflação – pareceu ter trazido alguma estabilidade, extremamente bem vista pela população. Para a maioria, a estabilidade é muito mais importante que as supostas plataformas políticas, de que raramente chega a tomar conhecimento. As propostas dos partidos são na prática absolutamente desconhecidas.

Isto, somado à percepção de FHC como “generoso” pela criação de políticas assistencialistas (leia-se “dinheiro no bolso”, um presente amoroso dado diretamente pelo Pai/Presidente, na percepção de quem o recebeu), garantiu sua reeleição, e teria garantido quantas mais fosse possível. Não sendo mais possível reelege-lo, elegeu-se Lula.

Ele não foi eleito pelas suas propostas políticas, que aliás deixou de afirmar em público na sua primeira campanha bem sucedida. Ao contrário: o que lhe valeu os votos da maioria foi um discurso vago, propagandas com mulheres grávidas saltitando de branco por prados floridos, numa demonstração explícita de bom-mocismo e paternalismo tranquilo.

Tendo chegado ao governo, Lula prosseguiu com as campanhas assistencialistas de FHC, fazendo, na percepção popular, de seu mandato a continuação do de seu antecessor.

O discurso raivoso contra a “herança maldita”, o recrudescimento da guerra cultural e os sucessivos escândalos protagonizados por seus subordinados – de que, evidentemente, ele nada sabia! – não apontaram no radar da maioria, ficando restritos ao interior da bolha, no noticiário político.

Ao contrário, a percepção popular de Lula, ajudada pelas suas barbas brancas, sorriso fácil e inegável carisma, era a de um tio simpático, ainda que um pouco cafajeste. Mas tudo bem; afinal, ele tinha que lidar com políticos, essa gente desonesta que aparece a cada dois anos pedindo votos e depois se retira para alguma caverna escura. Um pouco de malandragem não faz mal a ninguém, nessas circunstâncias.

À ampliação das políticas assistencialistas de FHC, com nome mudado e paternidade assumida (“o Lula me deu um dinheiro e eu comprei este celular com dois chipes!”), somou-se o providencial crescimento da economia mundial, proporcionalmente menor no Brasil, mas ainda assim perceptível. A facilitação do acesso aos símbolos (vazios, mas nem por isto desprovidos de valor simbólico) de pertença à classe média tradicional – diploma, carro, telefone e computador – fizeram com que surgisse uma “nova classe média”, endividada até a medula, mas postando no Orkut as fotos que tirou com o celular.

Ao mesmo tempo, o lumpesinato foi confirmado em sua situação, sendo permanentemente agraciado com presentes monetários cuja continuidade depende da desistência de entrar para o mercado de trabalho: paga-se para que não se trabalhe.

Esta situação aumentou ainda mais a dependência psicológica da figura paterna representada por Lula.

A altíssima tributação de tudo o que se compra, mesmo o necessário à subsistência, tampouco é percebida. É ignorado pela maioria da população que do preço da cerveja e do feijão uma parte considerável- quando não majoritária – vai para o Estado. O que o Lula dá vem do Lula, não dos impostos; para quem recebe salário o imposto é retido na fonte, fazendo com que, psicologicamente, ele não seja percebido como tendo sido cobrado. Os impostos e tributos em cascata, embutidos no preço pago pelos víveres, luz e transportes, não são registrados pela consciência. Para todos os efeitos, para a maioria da população, os impostos não existem.

Existem, sim, o celular, a possibilidade de se tornar “doutor” cursando uma faculdade de que se há de sair tão analfabeto quanto se entrou e o carrinho pago em 50 prestações “do tamanho do seu bolso”. Existe apenas a apropriação dos símbolos da classe média tradicional, fazendo as vezes de ascensão social.

Ao contrário da classe média tradicional, no entanto, a nova classe média não adentra a bolha. O noticiário político continua desinteressante, e os escândalos sucessivos só servem para comprovar que “política é uma sujeirada medonha”.

E é este o cenário onde, com desenvoltura ímpar, Lula elegeu seu poste.

Após o primeiro mandato ele foi reeleito, e novamente o seria se a legislação lhe permitisse concorrer novamente. Não fosse a impossibilidade legal, aliás, devido à dupla arma da continuidade e do seu sucesso na exploração do paternalismo, não seria muito difícil estabelecer uma dinastia cefalopódica, passando um cetro projetado por Niemeyer a algum filho seu ao morrer. Era-lhe, porém, vedada uma terceira reeleição; fez-se necessário colocar no Planalto alguém que pudesse segurar o lugar para sua volta gloriosa em 2014.

Quem quer que ele propusesse como candidato só não levaria o prêmio se algo grande ocorresse, e nada aconteceu. Vieram a público algumas roubalheiras, como sempre, mas isso só tem efeito dentro da bolha.

Mais ainda: numa repetição irônica da eleição de “um operário” que só foi eleito quando deixou de ser o metalúrgico raivoso que fundara o PT e se tornou um tiozinho amável, foi eleita “uma mulher” por sua feminilidade a tornar supostamente menos propensa a voos próprios. Dilma foi eleita porque iria tomar conta da cadeira até o dono voltar, numa mentalidade sumamente patriarcal. Nem matriarca ela seria; seus votos se deveram ao pedido do Lula de se confiar o cuidado de sua cadeira de patriarca à gerente de confiança, à solteirona dedicada a ele e sem ambições próprias.

Para Lula, qualquer resultado da administração Dilma seria positivo. Se bem sucedida, ela só teria feito o que ele mandou; se mal sucedida, ele seria necessário para botar ordem na casa, como um pai que volta duma viagem.

Para os habitantes da bolha, causa espécie que depois do mensalão e do desagrado geral dos atores políticos em relação ao modo como a presidente lidou, e lida, com os problemas administrativos – do Código Florestal aos royalties do petróleo, passando pelo Estatuto do Desarmamento, pelas termelétricas e hidrelétricas, pela telefonia e acesso à internet, etc. – a aprovação de seu governo seja ainda majoritária. Dentro da bolha, os que aderem ao PT chegam ao ponto de perceber esta aprovação como um sinal de que o “Partido da Imprensa Golpista” não teria conseguido minar a confiança da população na revolução petista. José Dirceu e Genoíno seriam, vistos de dentro da bolha com óculos vermelhinhos em forma de estrela, praticamente heróis populares.

Fora dela, contudo, o que é percebido pela maioria é simplesmente a continuação de FHC e Lula, com políticas assistencialistas, conquista de símbolos de pertença à classe média tradicional e manutenção financeira do lumpesinato.

Resta saber se a conjuntura econômica com viés de queda que aponta no horizonte permitirá a manutenção desta continuidade, mais ainda por o escândalo do mensalão ter provavelmente aumentado tremendamente os custos da manutenção de uma base de apoio parlamentar. Se a continuidade persistir, o próximo presidente será Lula ou Dilma; depende apenas de quem o PT venha a escolher. Se não persistir, provavelmente terá que ser Lula a voltar para botar ordem na casa, a não ser que a miopia dos habitantes da bolha os impeça de perceber a realidade fora dela.

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