“A ‘Familiaris consortio’ no seu 20º aniversário: dimensão antropológica e pastoral” (20.12.2001)

Pontifício Conselho para a Família
A “FAMILIARIS CONSORTIO” NO SEU 20º ANIVERSÁRIO – DIMENSÃO ANTROPOLÓGICA E PASTORAL”
CONCLUSÕES DO CONGRESSO TEOLÓGICO-PASTORAL

Convidados pelo Pontifício Conselho para a Família, reunimo-nos, de 21 a 24 de Novembro de 2001, na Sala Velha do Sínodo (Cidade do Vaticano), para celebrar o 20° aniversário da publicação da Exortação Apostólica pós-sinodal Familiaris consortio de Sua Santidade João Paulo II e para realçar o alcance deste documento para o futuro da pastoral familiar.

Em primeiro lugar, situamos a Exortação no contexto que explica a sua génese. Este documento de João Paulo II constitui de alguma forma a Magna Charta da doutrina e do ensinamento pastoral da Igreja no que se refere à família e ao seu serviço à vida. Ele lança uma luz sobre as novas questões que se apresentam ao futuro da família.

A Exortação Apostólica Familiaris consortio foi o fruto doutrinal e pastoral do Sínodo dos Bispos, que se reuniu em Outubro de 1980, o primeiro Sínodo do Pontificado de João Paulo II, centrado sobre “tarefas da família cristã no mundo de hoje”(1). Este Sínodo sobre a família foi realizado depois do Sínodo sobre a Evangelização,(2) que deu origem à Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi(3), e depois ao Sínodo sobre a Catequese,(4) que inspirou a Exortação Apostólica Catechesi tradendae.(5) “Este foi a continuação natural dos dois precedentes: a família cristã, de facto, é a primeira comunidade chamada a anunciar o Evangelho à pessoa humana em crescimento e a levá-la, através de uma catequese e educação progressiva, à plenitude de maturidade humana e cristã” (Familiaris consortio, 2). Estes três documentos sinodais encontraram a linfa na Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes (7 de Dezembro de 1965).

O texto das Propositiones do Sínodo sobre a família foi confiado pelo Santo Padre João Paulo II “ao Pontifício Conselho para a Família, dispondo que aprofunde o estudo a fim de valorizar cada aspecto das riquezas que contém” (Familiaris consortio, 2).

Depois da publicação da Familiaris consortio verificaram-se muitas transformações. A pastoral familiar e também a reflexão teológica sobre o matrimónio e sobre a vida foram desenvolvidas em grande medida, seguindo as orientações do Magistério da Igreja. Os movimentos de espiritualidade conjugal multiplicaram-se e diversificaram-se.

Desde os tempos do Sínodo de 1980 já eram evidentes as ameaças que pesavam sobre a família e as questões apresentadas a seu respeito. Infelizmente, essas ameaças intensificaram-se. A questão deslocou-se do problema do divórcio para o das “uniões de facto”, do problema do tratamento da infertilidade feminina para o do “embrião humano”, criado “à medida”, do problema do aborto para o das manipulações sobre os embriões humanos, do problema da pílula contraceptiva para o da pílula que é também abortiva. A legalização do aborto praticamente difundiu-se em quase todo o mundo. Chegou-se a pôr em dúvida o bem da família, contrapondo-lhe outros “modelos”, incluído o homossexual, outros “estilos de vida” baseados no não-compromisso, na não-permanência, na não-fidelidade. Foi feita pressão, chegando até ao paroxismo, à exaltação do indivíduo, dos seus interesses e do seu prazer.

Também o aspecto da família mudou, evoluindo para uma “privatização” crescente, para uma redução às dimensões de família nuclear. Actualmente, o mais grave é a cegueira que atinge grande parte da opinião pública, fazendo com que muito frequentemente já não se reconheça na família, fundada no matrimónio, a célula fundamental da sociedade; um bem do qual já não se pode prescindir. A família, como afirma o Santo Padre na Mensagem que enviou à nossa Assembleia, está submetida a uma agressão violenta por parte de certos sectores da sociedade moderna. São apresentados cenários de “alternativas” possíveis à família, qualificada como “tradicional”. São conferidos aos casais efémeros, que não querem comprometer-se formalmente no matrimónio nem sequer civil, os direitos e as vantagens de uma verdadeira família, exonerando-os dos próprios deveres. Esta oficialização das “uniões de facto”, incluindo os casais homossexuais, que por vezes pretendem até o direito à adopção, levanta problemas muito graves, sobretudo de ordem psicológica, social e jurídica.

São estas mesmas dificuldades que nos estimulam a aprofundar a mensagem que está no centro da Familiaris consortio: a Boa Nova sobre a Família”, precisamente como provém do desígnio de Deus, “ab initio”, desde as origens. Quando é fiel a si mesma, a família cristã dá testemunho do próprio dinamismo e da esperança da qual é portadora.

Família, torna-te aquilo que és!

A Exortação Apostólica Familiaris consortio realçou a identidade da família, fundada no matrimónio. Ela é comunidade de vida e de amor conjugal. Numa fidelidade sem reservas, o homem e a mulher doam-se um ao outro e amam-se com um amor aberto à vida. A família não é o produto de uma cultura, o resultado de uma evolução, um modo de vida comunitário ligado a uma certa organização social: ela é um instituto natural, anterior a qualquer organização política ou jurídica. Tem a sua própria consistência de uma verdade que não produz, porque foi querida directamente por Deus.

“Família, torna-te aquilo que és!: com esta exclamação João Paulo II convidava as famílias do mundo inteiro a encontrarem de novo em si mesmas a própria verdade e a realizá-la no mundo. Hoje, num mundo minado pelo cepticismo, o Santo Padre encoraja as famílias a redescobrir esta verdade sobre si mesmas acrescentando, “Família, crê naquilo que és!”.(6)

“Arquitectura de Deus”, plano de Deus inviolável, a família também é “arquitectura do homem”, compromisso do homem no desígnio divino. À luz das nossas experiências, voltamos a examinar as quatro tarefas que a Familiaris consortio dá à família: a formação de uma comunidade de pessoas, o serviço à vida, a participação no desenvolvimento da sociedade, a missão evangelizadora.

A formação de uma comunidade de pessoas

Na Familiaris consortio aparece em toda a sua clareza a identidade que dá à família o fundamento da sua missão específica. Como comunidade de vida e de amor conjugal, o matrimónio, fundamento da família, é uma comunhão de pessoas. Esta abre-se com uma comunhão mais ampla, a comunhão familiar entre todos os componentes da família. Duma certa forma, podemos dizer, à luz do Mistério de Cristo, que a família, fundada no sacramento do matrimónio, constituindo-se, torna-se o símbolo humano do amor de Cristo e da Igreja (cf. Ef 5, 32).

O serviço à vida

O dom da pessoa à pessoa surge e é realizado na doação da vida à criança. A Familiaris consortio aprofunda a doutrina da Igreja que não separa o amor e o empenho recíproco dos cônjuges na missão procriadora que lhes foi confiada, que não encontra o seu lugar apropriado, a não ser no matrimónio.

A Familiaris consortio apresenta uma visão renovada da sexualidade no contexto da comunhão, alma e corpo, dos cônjuges. À luz de uma antropologia que recusa dissociar a alma do corpo, o acto sexual mostra-se como expressão do dom total da pessoa à pessoa. Por este motivo é realçado que a contracepção, obstáculo voluntariamente posto ao desabrochar da vida, fere a relação de amor verdadeiro entre os cônjuges.

Ao contrário, este obstáculo não existe nos métodos naturais, que são respeitadores do corpo e abertos à vida. Tomámos conhecimento dos progressos realizados nos últimos anos neste campo. O valor altamente científico dos métodos naturais (7)é cada vez mais reconhecido. Por outro lado, eles podem resolver também os problemas de infecundidade. Além disso, estes métodos constituem uma pedagogia para um amor respeitador da peculiaridade feminina; e chamam a um diálogo verdadeiro no casal. Estes métodos são vários e é preciso considerá-los cada vez mais complementares. Os métodos naturais são preciosos, quando justos e graves motivos exigem que os nascimentos sejam distanciados. Mas o seu uso não se poderia justificar moralmente, quando se recorresse a eles com uma mentalidade hedonista, de recusa da vida.

A educação prossegue a obra da procriação

Aberta à vida, esta missão de paternidade e maternidade responsável inclui a missão educativa, a formação integral dos filhos. Assumir a responsabilidade da vinda ao mundo de um novo ser humano significa empenhar-se em educá-lo. A Familiaris consortio (cf. nn. 38, 39, 40) apresenta esta educação como “participação” dos pais “na obra criadora de Deus” (n. 38), como um verdadeiro “ministério” da Igreja.

É na família que as crianças recebem dos pais os princípios básicos à volta dos quais se vai organizando a sua personalidade. No exemplo que recebem dos seus pais, as crianças modelam a própria atitude perante a vida e as suas exigências. Nas suas relações de irmãos e irmãs são iniciados do melhor modo possível na vida social.

A família, mais do que qualquer outra instituição, pode assumir da melhor forma possível a educação sexual dos filhos.(8) No clima de confiança e de verdade que existe entre pais e filhos, esta formação pode ser garantida da melhor forma possível, com delicadeza, e sempre em função do que a criança pode compreender, no seu actual nível de maturação.

A comunidade educativa deve ter, de maneira geral, a preocupação de trabalhar em sintonia com os pais. Isto é particularmente verdadeiro e importante neste âmbito sensível e delicado da educação sexual, no qual uma educação sexual escolar inoportuna pode causar graves danos.

A família, célula fundamental da sociedade

O documento Familiaris consortio realçava o papel que a família desempenha no desenvolviemtno da sociedade (cf. nn. 42-48). Isto hoje é particularmente claro. Quando serve a vida, quando forma os cidadãos de amanhã, quando lhes comunica os valores humanos que são fundamentais para a nação, quando introduz os filhos na sociedade, a família desempenha um papel fundamental: ela é património comum da humanidade. A razão natural assim como a Revelação divina contêm esta verdade. Como dizia o Concílio Vaticano II, a família constitui “a primeira e vital célula da sociedade”(9).

Por conseguinte, a família tem uma dimensão de bem comum universal. Ela constitui a primeira comunidade humana e humaniza a sociedade. Ela tem direitos e deveres. É neste campo que, a pedido da mesma Exortação Apostólica Familiaris consortio,(10) a Carta dos Direitos da Família, publicada pela Santa Sé em 1983, como complemento da Exortação Apostólica, ocupa um lugar eminente e constitui um precioso instrumento de diálogo.(11)

Este tema da participação da família na vida e no desenvolvimento da sociedade foi abundantemente desenvolvido nos ensinamentos do Papa João Paulo II.

O Papa realçou em várias ocasiões o valor social e histórico da família, frente aos movimentos culturais que não lhe são favoráveis. Não há um tema relacionado com a Igreja que ocupe tanto os parlamentos, hoje, como o tema da família e da vida. Encontram-se em toda a parte projectos em debate a este propósito que, por outro lado, nem sempre vão da melhor forma. A Igreja não considera esta luta pelos direitos da família na sociedade como um seu domínio privado, mas empenhou-se sempre neste desafio. Assumiu as suas responsabilidades perante a humanidade.

Nestas relações da família com a sociedade vão-se inserindo as problemáticas “políticas de população”. É verdade que a população do mundo aumentou. Contudo, não é em virtude de uma elevada fecundidade, mas graças à diminuição da mortalidade e ao aumento inédito da esperança de vida. As últimas estatísticas da população mundial, publicadas pela Divisão da População da ONU, mostram que a “explosão demográfica” é um mito. Por conseguinte, é em nome deste mito que algumas instituições internacionais, apoiadas por determinadas Organizações não governamentais, se sentiram autorizadas a impôr “políticas demográficas”, moralmente inaceitáveis, a numerosos países pobres, com o pretexto de remediar a sua pobreza. Mas, cientificamente, não se pode estabelecer uma correlação entre a situação demográfica de uma população e a pobreza que a aflige.

A família, “Igreja doméstica”

A Exortação fortaleceu-nos na convicção de que a família cristã é “uma Igreja em miniatura”, a “Igreja doméstica” (Ecclesia domestica) (cf. Familiaris consortio, 49).

A proclamação do Evangelho da Família realiza-se na Igreja. Foi aqui que a família o recebeu. Esta proclamação significa crescimento na fé, enriquecimento na catequese, encorajamento para uma vida posta sob o sinal do dom de si e da solidariedade vivida.

Mas há também um anúncio do Evangelho aos não-cristãos, aos não-crentes, e a família cristã está chamada, também nisto, a um grande empenho missionário. Tudo isto passa em primeiro lugar pelo testemunho de vida que os lares cristãos alegres, confortadores, acolhedores e abertos, dão em seu redor, irradiando o espírito do Evangelho.

É a grande mensagem da Familiaris consortio, o seu envio em missão de qualquer maneira, para a pastoral familiar.

A Pastoral Familiar

Esta pastoral desenvolveu-se a passos de gigante. Como disse João Paulo II ao nosso Congresso, “depois da publicação da Familiaris consortio, o interesse pela família na Igreja acentuou-se, e são numerosas as Dioceses e as paróquias nas quais a pastoral familiar se tornou objectivo prioritário”(12);. Vimos realizar-se esta pastoral da família através dos testemunhos que nos foram apresentados, durante o nosso Congresso. Quantos testemunhos, provenientes de todos os continentes, nos mostram como tantos lares cristãos são animados pelo amor à verdade sobre a família. Dão testemunho com entusiasmo da Boa Nova que os anima. Manifestam à sua volta o verdadeiro rosto da família. Como diz o Santo Padre: “Na sua humildade e simplicidade, o testemunho de vida doméstica pode tornar-se um veículo de evangelização de primeira ordem”(13).

A pastoral da família pôs no primeiro plano das suas preocupações a ajuda aos jovens casais, por vezes atormentados por dúvidas sobre a sua capacidade de viver a fidelidade conjugal por toda a vida. Ela também tomou uma consciência cada vez mais profunda da ajuda pastoral aos divorciados que voltaram a casar. Os critérios dados a este propósito na Familiaris consortio são claros e devem ser respeitados. A Igreja não tem o poder de modificar o que está ancorado nos ensinamentos do Senhor. Mas os divorciados que voltaram a casar civilmente não devem sentir-se fora da Igreja, excluídos. Como diz o Santo Padre: “a Igreja, com efeito, instituída para conduzir à salvação todos os homens e sobretudo os baptizados, não pode abandonar aqueles que unidos já pelo vínculo matrimonial sacramental procuraram passar a novas núpcias. Por isso, esforçar-se-á infatigavelmente por oferecer-lhes os meios de salvação”. Todos ajudem “os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto baptizados, participar na sua vida” (Familiaris consortio, 84). Esta Boa Nova da Família foi ilustrada de maneira maravilhosa, já por três vezes, nos Encontros Mundiais do Santo Padre com as Famílias, em Roma em 1994, por ocasião do Ano Internacional da Família, no Rio de Janeiro em 1997, e depois novamente em Roma, no Ano 2000, por ocasião do Jubileu das Famílias. Convidamos as famílias do mundo inteiro para o próximo encontro mundial, que terá lugar em Manila, nas Filipinas, em Janeiro de 2003.

Resoluções

No final da nossa reflexão sobre a situação actual da família e da pastoral familiar no mundo, após vinte anos da publicação da Exortação Familiaris consortio, desejamos formular algumas resoluções.

1. A comunidade familiar deve ser considerada na unidade dos seus membros e não de maneira separada, no respeito da sua identidade, como bem precioso para a sociedade e para a Igreja.(14)

Convidamos sentidamente as pessoas que se preparam para o matrimónio a reflectir, com a ajuda dos pastores e dos leigos que as acompanham, acerca do seu projecto de vida. É oportuno encorajar os futuros casais a descobrir as riquezas do amor que encerram em si, para que compreendam claramente as dimensões de totalidade, fidelidade e castidade conjugal. Este aprofundamento deve levá-los a realizar bem o carácter definitivo do próprio empenho recíproco.

2. Encorajamos os pastores a apresentar claramente aos fiéis que se preparam para o matrimónio os ensinamentos da Igreja em matéria de moral conjugal como é exposto na Encíclica Humanae vitae e na Exortação Familiaris consortio, e retomado pela Carta às Famílias. Este ensinamento deve constituir o objecto de um intercâmbio com os futuros cônjuges. Deve levá-los a manifestar claramente a abertura do futuro casal ao acolhimento da vida.

3. Exortamos os pais cristãos a assumir seriamente a sua missão de educadores dos filhos, para uma catequese integral. Devem dar-se conta de que se trata de uma educação através da qual devem transmitir aos filhos o património humano e espiritual que eles próprios receberam. Preocupar-se-ão por manter uma atmosfera cristã de liberdade, de respeito recíproco, e de rigor moral no seu lar. Com a oração quotidiana em família e com as primeiras explicações simples dadas pelos pais aos filhos, saberão iniciá-los progressivamente nas verdades da fé.

4. Os pais devem saber e sentir que são responsáveis pela educação sexual dos filhos.(15) Esta responsabilidade permanece, mesmo quando a educação sexual é feita através das outras comunidades educativas. É, em primeiro lugar, mediante o testemunho do seu amor conjugal e do seu respeito recíproco que saberão convidar os filhos a descobrir a beleza do amor responsável, no âmbito da verdade e da formação para a autêntica liberdade. Muito cedo, os pais terão a preocupação de educar os filhos nos valores humanos de generosidade, da doação de si, do respeito pelo próximo, do domínio de si e da temperança.(16) Saberão responder sem subterfúgios às perguntas que os filhos farão em matéria de sexualidade. As respostas deverão ser claras, simples, adequadas àquilo que a criança é capaz de compreender e assimilar. Sempre dispostos à escuta, os pais saberão ser os confidentes dos filhos, e cada um dos pais terá a este propósoto um papel específico.

5. Dirigimo-nos aos políticos e aos legisladores, exortando-os a defender os valores da família no âmbito das instituições locais, regionais e nos Parlamentos.(17) Que a voz das famílias de todo o mundo, garantia do futuro das nações, se faça ouvir. As próprias famílias saibam organizar-se a nível político para fazer reconhecer a sua importância real perante as minorias que militam contra a família e contra a vida. Seja instaurado um verdadeiro diálogo em todas as nações sobre as questões fundamentais do direito das famílias, da educação familiar, e do contributo que o Estado deve oferecer a esta educação familiar.

6. É necessário colocar a situação contemporânea da família e da vida numa “visão integral do homem e da sua vocação” (Humanae vitae, 7); (Familiaris consortio, 32), numa antropologia autêntica. As actuais e complexas problemáticas, que se referem à ética da vida humana, sentem o efeito de um obscurecimento do vínculo estreitíssimo, querido pelo próprio Deus, entre a família e a procriação. Isto deve-se a um preconceito positivista e cientista, no qual se rompe a íntima unidade antropológica entre a família e o serviço à vida, como se a procriação fosse um problema que diz respeito apenas aos cientistas nos seus laboratórios. A procriação aparece fragmentada numa casuística complexa, com o risco da perda de uma compreensão integral da pessoa, da família e da vida. Pedimos ao Pontifício Conselho para a Família que esta questão seja objecto de um estudo especial e que seja posto mais em evidência que a família fundada no matrimónio é, no projecto de Deus Criador, o sujeito da procriação.

7. A abertura do amor conjugal à vida é um aspecto urgente que deve ser descoberto. A mentalidade contraceptiva, denunciada há 20 anos pela Familiaris consortio, atinge ainda hoje, deploravelmente, muitas das nossas comunidades. É necessário aumentar os esforços de presença e de acção efectiva favorável à família e à vida: na sociedade (leis e políticas familiares), na cultura (pensamento, literatura, meios de comunicação social), e sobretudo, nas comunidades cristãs (renovação do espírito de abertura à vida).

8. Um dos principais frutos da Familiaris consortio é a renovação da pastoral familiar a nível das Conferências Episcopais, das Dioceses, das Paróquias, e dos Movimentos Apostólicos em toda a Igreja. Neste sentido, o progresso, nestes últimos 20 anos, foi bastante considerável.

9. Apesar de tudo o que foi realizado, ainda resta muito a fazer. São ainda muitas as Dioceses nas quais a pastoral familiar carece de estruturas adequadas. Os pastores manifestam muitas vezes a urgência da formação de agentes pastorais. Neste sentido, o trabalho dos Institutos de Estudo sobre o Matrimónio e a Família e dos Centros de Procriação Responsável é de extraordinária validade. Pedimos que lhes seja prestada maior atenção, para que, em profunda sintonia com o Magistério da Igreja e com uma boa inserção na realidade intelectual, científica, social, política e jurídica dos nossos países, se desenvolva adequadamente a sua função formativa de agentes eficazes de pastoral familiar.

10. Hoje mais do que nunca, apresenta-se o grave problema das famílias refugiadas, que recebem asilo em abrigos improvisados, ou em campos de refugiados mal equipados, muitas vezes não têm o mais necessário, e sem tutela perante as autoridades que as recebem. Elas podem ver-se submetidas a pressões no âmbito da chamada saúde reprodutiva, que inclui o recurso ao aborto, à esterilização ou à contracepção de “emergência”. Foi publicado recentemente um documento (18)pela Santa Sé sobre este assunto, que convida as Igrejas locais a preocuparem-se por estas famílias, a fazer respeitar os seus direitos e a garantir-lhes a ajuda e a defesa em caso de necessidade.

11. As paróquias devem ser lugar privilegiado da pastoral familiar no conjunto da pastoral da Igreja. Os cursos de preparação para o matrimónio e as catequeses familiares são importantes meios educativos que, muitas vezes, são insuficientemente usados. É muito importante fortalecer a colaboração dos casais e das pessoas, bem preparadas, provenientes das paróquias e dos movimentos apostólicos. Neste sentido, recomendamos sobretudo aos Bispos, aos Párocos e aos responsáveis das organizações católicos, que se fortaleça o espírito de solidariedade e de complementariedade, em benefício de uma eficaz pastoral familiar.

12. Centros de Orientação Familiar estão a demonstrar-se de grande utilidade como ponto de referência para a pastoral familiar. Entendidos como unidades locais basilares de ajuda às famílias nos vários campos: social, jurídico, ético, pastoral, da procriação responsável, etc., são um apoio precioso à pastoral familair.

Conclusão

Olhemos para o futuro com determinação e com esperança.

Olhemos para o futuro com determinação, porque, membros da Igreja de Cristo, empenhados em diversos níveis na pastoral familiar desta Igreja, sentimo-nos responsáveis, perante Deus e perante os homens, pela saúde das famílias, da sua vitalidade, do seu equilíbrio, do seu futuro. Esta responsabilidade não pode limitar-se unicamente aos aspectos privados, domésticos ou espirituais da família, os seus valores, o seu papel vital na sociedade, devem fazer ouvir a sua voz nas assembleias locais, regionais, nos Parlamentos das nações, nas Organizações internacionais, onde quer que se decida o futuro da família. A Carta dos Direitos da Família representa, deste pondo de vista, um precioso instrumento de referência e de diálogo. A pastoral familiar não seria fiel a si mesma e à sua missão, se não promovesse o empenho também no campo político para fazer valer os direitos da família. Este é um serviço prestado a toda a humanidade.

Olhemos para o futuro com esperança, porque o Senhor da família e da vida já actua. Ele anima as famílias de todo o mundo, e dá-lhes as energias necessárias para permanecerem fiéis à sua vocação e à sua missão. As famílias de todas as nações, testemunhas do amor e da fidelidade, constituem a luz que ilumina um mundo repleto de perplexidades, de dúvidas e de perigos. Peçamos ao Senhor para que ajude as famílias a permanecerem fiéis àquilo que são, para o bem comum de todos os homens e para o porvir da humanidade.

Cidade do Vaticano, 20 de Dezembro de 2001.

_________
NOTAS:
(1) V Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, “De familiae christianae muneribus in mundo huius temporis”, 26/9/1980 – 25/10/1980. * (2) III Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, “De evangelizatione in mundo huius temporis”, Outubro de 1974. * (3) Paulo VI, Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, 8/12/1975. * (4) IV Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, “De catechesi hoc nostro tempore tradenda praesertim pueris atque iuvenibus”, Outubro de 1977. * (5) João Paulo II, Exortação Apostólica Catechesi tradendae, 17/10/1979. * (6) João Paulo II, Discurso durante o Encontro com as famílias, 22/10/2001, n. 3; (L’Osservatore Romano, ed. port. de 27/10/2001, pág. 3). * (7) AA.VV. por A. Lopez Trujillo e E. Sgreccia), Métodos naturais para a regulação da fertilidade: a alternativa autêntica. Actas do Congresso organizado pelo Pontifício Conselho para a Família, Roma, 9-11 de Dezembro de 1992, Vida e pensamento, Milão 1994. * (8) Cf. Pontifício Conselho para a Família, Sexualidade humana: verdade e significado. Orientações educativas na família, 8 de Dezembro de 1995. * (9) Concílio Vaticano II, Declaração Apostolicam actuositatem, 11. * (10) Cf. Familiaris consortio, 46. * (11) Santa Sé, Carta dos Direitos da Família, apresentada pela Santa Sé a todas as pessoas, instituições e autoridades interessadas na missão da família no mundo de hoje, 22/10/1983. * (12) João Paulo II, Mensagem por ocasião do Congresso realizado pelo Pontifício Conselho para a Família no vigésimo aniversário da “Familiaris consortio”, 21/11/2001, n. 4; ed port. de 1/12/2001, pág. 4) * (13) Ibid. * (14) Pontifício Conselho para a Família, Família e Direitos do homem, 1999, n. 16. * (15) Pontifício Conselho para a Família, Sexualidade humana: verdade e significado. Orientações educativas na família, 8 de Dezembro de 1995. * (16) Familiaris consortio, 37; Evangelium vitae, 92. * (17) Cf. Carta dos Direitos da Família, apresentada pela Santa Sé a todas as pessoas, instituições e autoridades interessadas na missão da família no mundo de hoje, 22 de Outubro de 1983. * (18) Pontifício Conselho para a Pastoral no Campo da Saúde, Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, Pontifício Conselho para a Família; A Saúde Reprodutiva dos refugiados. Uma nota para as Conferências Episcopais, Cidade do Vaticano, 14 de Setembro de 2001.

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