A liberdade do exegeta/intérprete bíblico católico (mais passagens bíblicas que a Igreja interpretou definitivamente)

Contrariamente às falsas alegações de alguns polemistas protestantes anticatólicos com quem já me deparei, os católicos não estão, de forma alguma, obrigados a ler uma tradução da Bíblia específica. A minha preferida, particularmente, é a Revised Standard Version (RSV), que foi aprovada em uma edição católica com muitos poucos esclarecimentos (creio que seja apenas algo em torno de três passagens que foram consideradas como sendo excessivamente tendenciosas para serem aceitas por católicos). Li a Bíblia inteira (por duas vezes) quando era protestante nas versões da NASB e da King James. Gosto da Phillips, da NEB, da Williams e da Barclay para versões parafraseadas e a NKJV é bem legal também (gosto do estilo antigo da King James, mas repleta de arcaísmos). Eu editei a minha própria “versão” do Novo Testamento (tecnicamente, uma “seleção”), baseada no uso de várias traduções existentes (Bíblia King James vitoriana).

Tomando a minha (empoeirada) cópia da NAB com o Novo Testamento revisado em 1986 (Nelson, 1987), com o imprimatur (que, infelizmente, não significa mais muita coisa), cito o artigo preliminar “The Purpose of the Bible” (p. xii):

  • “Quando Pio XII emitiu sua encíclica Divino Afflante Spiritu, em 1943, a porta foi aberta para novas traduções católicas que não dependessem da Vulgata latina de São Jerônimo. Devido ao grande aumento do nosso conhecimento das línguas bíblicas antigas, traduções oficiais feitas diretamente delas foram encorajadas […]. A Revised Standard Version é a menos interpretativa de todas […]. A Bíblia Jerusalém e a New English Bible esforçam-se por uma linguagem ainda mais contemporânea […]. A New American Bible […] é a primeira tradução católica americana a ser baseada nas línguas originais ou na primeira forma do texto, em detrimento da Vulgata.”

O Venerável Papa Pio XII, na supracitada encíclica papal de 1943, escreve:

  • “Nem vá alguém pensar que o sobredito uso dos textos originais, feito segundo as regras da crítica, é contrário a quanto o concílio de Trento sabiamente decretou a respeito da Vulgata latina.Bem preparado com o conhecimento das línguas antigas e com os recursos da crítica, aplique-se o exegeta católico àquele que é o principal de todos os seus deveres: indagar e expor o sentido genuíno dos Livros Sagrados. Neste trabalho tenham os intérpretes bem presente que o seu maior cuidado deve ser distinguir claramente e precisar qual seja o sentido literal das palavras bíblicas (começo das seções 14 e 15)”

Do mesmo modo, o Vaticano II, na Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina (Dei Verbum), estabelece:

  • “É preciso que os fiéis tenham acesso patente à Sagrada Escritura. Por esta razão, a Igreja logo desde os seus começos fez sua aquela tradução grega antiquíssima do Antigo Testamento chamada dos Setenta; e sempre tem em grande apreço as outras traduções, quer orientais quer latinas, sobretudo a chamada Vulgata. Mas, visto que a palavra de Deus deve estar sempre acessível a todos, a Igreja procura com solicitude maternal que se façam traduções aptas e fiéis nas várias línguas, sobretudo a partir dos textos originais dos livros sagrados. Se porém, segundo a oportunidade e com a aprovação da autoridade da Igreja, essas traduções se fizerem em colaboração com os irmãos separados, poderão ser usadas por todos os cristãos (Capítulo VI, seção 22).”

Vemos que o texto discorre sobre a possibilidade do uso de diferentes traduções. Tampouco os católicos têm de interpretar cada versículo da Bíblia de acordo com alguma proclamação dogmática da Igreja. Esse é outro ridículo (e altamente irritante) mito que temos de ouvir a todo momento. De fato, o católico fiel e ortodoxo deve interpretar as doutrinas que ele depreende das Escrituras em concordância com a Igreja e com a Tradição, mas e daí?

Todo protestante faz exatamente a mesma coisa com a sua própria tradição denominacional. Nenhum calvinista de cinco pontos pode encontrar um versículo na Bíblia que prove a apostasia ou a perda da salvação ou algum que ensina o desejo de Deus por uma expiação ilimitada em vez de limitada (e há várias dessas passagens). Ele não pode negar a depravação total em qualquer texto ou a graça irresistível. Todos nós temos restrições dogmáticas de ortodoxia que respeitamos. O exegeta católico é limitado por muito pouco e tem praticamente toda a liberdade de investigação quanto aquela de um exegeta protestante. Um artigo da Catholic Encyclopedia, de 1910, sobre a exegese bíblica afirma:

  • (a) Textos definidos: O comentador católico deve aderir à interpretação de textos que a Igreja definiu expressa ou implicitamente. O número desses textos é pequeno, de modo que o comentador pode facilmente evitar qualquer transgressão desse princípio. Aos católicos é permitido traduzir do grego, de acordo com o mais recente conhecimento textual e arqueológico, usar diferentes traduções e até mesmo cooperar em projetos de tradução ecumênicos, como a RSV e a NEB. Podemos fazer todo tipo de coisa que os exegetas protestantes fazem e temos permissão para interpretar, livremente, quase qualquer texto por conta própria, desde que não se vá contra um dogma da Igreja (não se pode, por exemplo, afirmar que João 1,1 não ensina a deidade e divindade de Jesus).

* * *

ADENDO: PASSAGENS DA ESCRITURA QUE FORAM INTERPRETADAS DEFINITIVAMENTE PELA IGREJA [texto do Catholic Answers]

Muitas pessoas pensam que a Igreja tem uma postura oficial sobre cada sentença contida na Bíblia. Na verdade, apenas um punhado de passagens foi interpretado definitivamente. A Igreja interpreta muitas passagens da Escritura a fim de orientar o seu ensino. Outras passagens são usadas como ponto de partida e como suporte para ensinos doutrinários ou morais, mas apenas essas poucas foram “definidas” no sentido estrito da palavra. Mesmo nesses poucos casos, a Igreja está apenas defendendo a doutrina e a moral tradicionais.

É importante perceber que os parâmetros estabelecidos pelas definições são todos negativos, isto é, eles apontam o que não pode ser negado sobre o significado da passagem, mas não limitam o quanto mais que pode ser dito sobre ela. Em outras palavras, a Igreja condena as negações de uma interpretação específica do texto sem condenar significados subjacentes, mas não contraditórios a ela.

Todas as passagens que se seguem foram interpretadas definitivamente pela Igreja no Concílio de Trento, pois cada uma delas tem a ver com a justificação ou com os Sacramentos, matérias que dividiram católicos e protestantes.

1. João 3,5: “Respondeu Jesus: ‘Em verdade, em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus.”.

  • A Igreja condenou a negação de que as palavras de Jesus significam que a água real (natural) deve ser usada para um batismo válido. Na época, os anabatistas argumentavam que o batismo nas águas era desnecessário porque a menção da água era meramente uma metáfora. Outros significados simbólicos, em adição ao sentido literal da água real, talvez possam ser encontrados no texto, mas nenhum é aceitável se negar a necessidade da substância da água no batismo.

2. Lucas 22,19; e
3. 1Coríntios 11,24: “e, depois de ter dado graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu corpo, que é entregue por vós; fazei isto em memória de mim”.

  • A Igreja condenou a interpretação destas passagens que negava que Jesus, ao ordenar aos seus Apóstolos “fazei isto em memória de mim”, depois de instituir a Eucaristia, conferiu-lhes a ordenação sacerdotal assim como aos seus sucessores, capacitando-os a oferecer o Seu Corpo e o Seu Sangue. Podem-se depreender mais coisas dessa ordenança, mas elas não podem negar ou contradizer outras interpretações.

4. João 20,22-23: “Depois dessas palavras, soprou sobre eles dizendo-lhes: ‘Recebei o Espírito Santo, Àqueles a quem perdoardes os pecados, lhes serão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, lhes serão retidos”; e
5. Mateus 18,18: “Em verdade vos digo: tudo o que ligardes sobre a terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes sobre a terra será também desligado no céu”.

  • A Igreja condenou a negação de que nessas duas passagens Jesus conferiu um poder exclusivamente aos Apóstolos, autorizando-os, bem como aos seus sucessores, no ofício sacerdotal, a perdoar pecados em nome de Deus e condenou a proposta de que todos pudessem perdoar pecados nesse sentido.

6. Romanos 5,12: “Por isso, como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim a morte passou a todo o gênero humano, porque todos pecaram…”

  • A Igreja condenou a negação do pecado original, ao qual toda a humanidade está sujeita e ao qual o batismo remete-nos, citando essa passagem a ser compreendida nesse sentido.

7. Tiago 5,14: “Está alguém enfermo? Chame os sacerdotes da Igreja, e estes façam oração sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor”.

  • Interpretando definitivamente essas passagens, a Igreja condenou a negação de que o Sacramento da Unção dos Enfermos foi instituído por Cristo e promulgado pelos Apóstolos contra aqueles que o consideravam uma invenção tardia da Igreja.

Além disso, o decreto do Vaticano I sobre Cristo estabelecendo Pedro como chefe da Igreja — que cita Mateus 16,16 e João 1,42 — é uma doutrina definida, muito embora a frase sobre o uso e interpretação da Escritura citada seja mais implícita que explícita, comparando-a com as passagens das Escrituras acima.

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