Durante muitas noites, em certa janela do Cosme Velho, ardeu uma lâmpada que foi, por muito tempo para amigos e discípulos o sinal de uma presença, luz maior de inteligência, amizade e calor humano. Quem espiasse pelas grades da janela, rente a rua, avistava o fino perfil de um velho, quase cego, que debruçado sobre a mesa simples enchia metodicamente, com letra regular, resmas de almaço. Nos momentos mais difíceis dessa vida ? e deste país ? em horas de risco e incerteza, ali esteve sempre esse homem, na sua vigília. Na saleta, entre o grande crucifixo e o retrato de São Tomás Morus, cercado das imagens de amigos vivos e mortos, esse homem doente, alquebrado, por vezes agonizante, conduzia sem vacilar uma luta desigual contra os erros do seu tempo e as forças desencadeadas do mundo. Naquele espaço celular, mas que confinava com as fronteiras do bem e do mal, uma consciência vigilante, abrasada num intenso amor, combatia o bom combate que só deverá cessar no fim dos tempos.
Decorrido um ano da morte de Gustavo Corção ? um ano, um século? ? fez-se o silêncio sobre a figura e a obra do grande pensador católico. Trata-se indiscutivelmente de um morto incômodo como todo aquele que nos recorda compromissos e nos indica obrigações, com a mesma solicitude com que nos abria a porta para a ajuda e o conselho. A calúnia e a difamação que armaram uma ciranda em torno dele até pouco antes de expirar, dão-se agora as mãos para aposentá-lo na imensa academia dos esquecidos.
Não importa que esse homem de exemplar pobreza tivesse espalhado, a mancheias, em aulas, cursos e conferências, os dotes extraordinários de seu saber. Mais que isso, tivesse prodigalizado sua sabedoria em lições, artigos, palestras: que tivesse deixado páginas de extraordinária profundidade e beleza: que juntasse a isso capacidade inventiva, altura científica e competência técnica ? que tivesse sido, em suma, uma flor de civilização neste país.
Em terra de minoria católica onde a inteligência trilhou todos os descaminhos e prostituiu-se, vezes sem conta, aos senhores do mundo, esse pregador sem púlpito e doutor sem diploma pregou e ensinou a verdade pela pena, pela palavra, pelo exemplo.
Raro, na história da inteligência em nosso país, um homem reuniu tais e tamanhos dons: a precisão minuciosa do cientista, o rigor do raciocínio matemático, as graças do escritor. Espécie rara, pertencia a mágicos e lógicos, montava equipamentos eletrônicos enquanto compunha ensaios definitivos. Enxadrista exímio, absorvia-se no convívio dos santos e na contemplação do Corpo Místico.
Quando um artigo memorável de Alceu Amoroso Lima revelou ao país esse inédito escritor de 50 anos, surpreenderam-se os que até então só o tinham visto debruçado sobre fios e oscilômetros. O primeiro livro: A Descoberta do Outro espécie de pilgrim?s progress, ao sabor de nosso tempo, era, sob as espécies da ficção, a descrição de um roteiro espiritual. O "outro", para surpresa geral dos existencialistas, não era apenas o próximo, o homem de carne e osso. Era Cristo mesmo, Deus encarnado, pai, irmão e amigo. Aos poucos se desenhava um perfil de escritor singular ? técnico que escarmentava o tecnicismo, cientista que subordinava a ciência a uma verdade maior, pensador que mergulhava na teologia, como na humildade e na obediência, as raízes profundas de sua interpretação do homem e do mundo.
De todos os grandes encontros de sua vida, em carne ou em livro, o mais importante foi sem dúvida o conhecimento de Santo Tomás, que leu e meditou até o fim, bússola permanente no mar de infidelidades e vacilações que nos cerca. O que o levou ao Tomismo ? ele cientista, manipulador de números e aparelhos ? foi a fidelidade ao objeto, a uma realidade negada pelos idealismos.
Poderia ter tecido com o próprio fio de sua vida inúmeros romances. Preferiu dedicar-se ao ensino da filosofia e da teologia e, nos últimos anos, dizia preferir a mestra à ancila.
De repente ? foi nos idos de 60 ? começou a preocupar-se com os rumos da civilização, sua decomposição a partir do Renascimento, e traçou essa topografia sinistra em Dois Amores e Duas Cidades, balizando-a pelos fachos do messianismo revolucionário.
De sua mocidade ficara a amarga lembrança de uma experiência comunista e a desconfiança das salvações sociais. Via sem ilusões o problema econômico e as falsas esperanças do marxismo "A hediondez da economia capitalista" ? escrevia em 1947 ? "reside no fato da desumanização do trabalhador para proveito de seus empreiteiros. Ora, a primeira reivindicação enérgica e generosa que aparece na história tem uma esquisita contradição que o mundo irá pagar muito caro. Refiro-me ao marxismo. O seu ponto de partida, apesar de todos os aspectos científicos de que se reveste, é de natureza moral". E depois de analisar a apropriação do lucro do trabalho pelo capitalista segundo a doutrina marxista, diz: "Ora, o remédio que o mesmo doutrinador proporá para corrigir tamanha injustiça é rigorosamente amoral. Liquida-se com a justiça para se acabar com a injustiça; desumaniza-se a sociedade inteira para corrigir o desumano tratamento que se dá ao trabalhador; tecnicaliza-se rigorosamente a economia para curar essa viciadíssima economia capitalista que tecnicaliza a mão-de-obra e dela tira tudo o que pode". (As Fronteiras da Técnica, Agir. 1947, págs. 79-81)
Quem o conhecesse, portanto, não se poderia surpreender com a posição que assumiu nos anos 60 contra a subversão e a corrupção. Como o país, radicalizou-se nessa luta. Mais que o problema político, no entanto, absorvia-o a preocupação com sua casa, a infiltração modernista e marxista na Igreja, a nova traição dos clérigos. Denunciou-se com a cólera, a paixão e a veemência que punha em todos os seus atos. Tornou-se mais duro em suas posições. Fernando Carneiro, meio a sério, meio a riso, disse que Corção era um dos poucos temperamentos espanhóis do Brasil. Estranho, por isso, ao nosso pendor para o conformismo, o arreglo e a conciliação.
Nas arquitraves leves e cerradas desse espírito, a chave de abóbada que tudo prendia e sustinha era um apaixonado sentimento de fidelidade. Como Jackson de Figueiredo, em outra época e com outros recursos, dedicou sua vida à defesa da Igreja, cujo centro via na Paixão de Cristo Crucificado. Foi essa a constante dulcinéia desse quixote que a levou ardente, em seu coração, até expirar, no catre em que dormia, no dia que a Igreja venera o sangue de Nosso Senhor.
Das noites na casa do Cosme Velho ficou, na memória dos amigos, a imagem do velho moço, as mãos descarnadas torturando o castão da bengala, as lições de sabedoria, as descobertas imprevistas, os lampejos verbais. Mais que tudo isso, essa luz de fidelidade que mantinha acesa, nos olhos amortecidos, um brilho de infância.
Gustavo Corção em seu escritório no Cosme Velho
Corção trabalhando em seu escritório