A “Noite de São Bartolomeu”

– “Qual o papel dos católicos na famosa noite de São Bartolomeu (24 de agosto de 1572)?” (Miro – Rio de Janeiro-RJ).

Para se entender o episódio, torna-se oportuno reconstituir brevemente a situação religiosa da França em meados do séc. XVI:

1. A França, país católico desde Clóvis (496), era, após a irrupção do Luteranismo (1517), um objetivo muito visado pela revolução religiosa; dentre os cem milhões de habitantes da Europa, contava vinte milhões, que viviam em prosperidade industrial e comercial, justificando o adágio medieval: “A França é o forno onde se coze o pão do Ocidente”.

As ideias dissolutórias do humanismo paganizante e do Protestantismo encontraram acolhimento ambíguo entre os franceses, cujo governo e cujo povo estavam profundamente arraigados na fé católica. Contudo, o Calvinismo, instigado por um francês (João Calvino) estabelecido em Genebra (Suíça), ia penetrando no reino; recrutava seus melhores partidários entre os nobres da corte, sofrendo, porém, represálias por parte do governo.

Em meados do séc. XVI, a aristocracia, em vista das tendências centralizadoras de Francisco I (1515-1547) e Henrique II (1547-1559), se julgava vítima do poder régio, que ainda era o representante da causa católica; queixumes também se difundiam motivados pela inflação monetária, de sorte que muitos entreviam na introdução da reforma protestante na França a ocasião de se emancipar da autoridade régia e resolver a crise financeira mediante a secularização dos bens da Igreja.

Foram-se, assim, formando duas facções assaz fortes entre os nobres: a calvinista ou huguenote (nome provavelmente derivado de “eidgenosse”, companheiro de juramento), chefiada pelos irmãos Chatillon ou Montmorency (dentre os quais sobressaía o almirante Gaspar de Coligny) e pelos Bourbon (dos quais Luís de Condé era o principal vulto); e a católica, encabeçada pelos irmãos Francisco e Carlos de Guise. Note-se bem que um e outro destes partidos, embora professassem a defesa de ideias religiosas, estavam profundamente imbuídos de ambições políticas, aspirando ambos a tomar a orientação suprema do reino.

2. Em 1560, subiu ao trono o rei Carlos IX, com nove anos de idade, ficando sob a regência da rainha-mãe Catarina de Médicis. Esta, oriunda de família florentina católica, só tinha um ideal: dominar na política, impor-se a todos por sua energia e autoridade; não gostava, por conseguinte, de “fanatismo religioso”. Sendo assim, em sua regência não se empenhou nem por católicos nem por calvinistas, procurando, ao contrário, fazer política de neutralização; favorecia ora a estes, ora àqueles, a fim de que nenhum dos dois partidos tomasse a supremacia e a rainha mais facilmente dominasse. Sabe-se outrossim que era extraordinariamente perspicaz e hábil, chegando a servir-se de um grupo de donzelas para seduzir os nobres que ela queria atrair ao seu partido.

Sob os governos de Catarina e de Carlos IX (1560-1574), foi ganhando prestígio o almirante Gaspar de Coligny, homem de bem, mas calvinista ardoroso. Em 1571, o rei Carlos IX (declarado maior em 1563, mas dominado por Catarina até 1570), chamou-o ao seu conselho; imaturo e influenciável como era, o monarca dava a Coligny o titulo de “Pai”.

Desde 1562, as duas facções — calvinista e católica — estavam em guerrilhas (o que bem se entende, pois fins políticos moviam os partidários). Em 1570, os beligerantes assinavam a “Paz de São Germano”, favorável aos huguenotes. O acordo devia ser selado pelo casamento da filha de Catarina — Margarida de Valois — com Henrique de Navarra, chefe do partido calvinista. O matrimônio, porém, dependia de uma dispensa papal, que São Pio V não queria dar. Não obstante, em abril de 1572 os interessados se decidiram ao casamento. O partido calvinista e a figura de Coligny pareciam triunfar.

Catarina, porém, inquietava-se com a situação; não podia permitir que Coligny tivesse mais ascendência sobre Carlos IX do que ela…

Finalmente, as núpcias planejadas realizaram-se aos 18 de agosto de 1572, com a afluência de milhares de calvinistas e católicos a Paris, os quais, juntamente com o rei, se entregaram a festejos ruidosos, prazeres fúteis, enquanto a rainha-mãe se fechava em si, revestida de seus trajos de viúva enlutada, com seu colarinho branco a pôr em realce uma fisionomia severa, sem beleza, lívida como a cera.

A ocasião era propícia para se desferir um golpe forte contra os huguenotes. Catarina soube entrar em acordo com Henrique, filho de Francisco de Guise, nobre jovem de 22 anos de idade e audacioso, que desejava fazer carreira, movendo a política contra os calvinistas. Devidamente apoiada, a rainha-mãe, aos 22 de agosto de 1572, mandou cometer em plena rua um atentado armado contra Coligny. O almirante, porém, escapou com vida, sabendo de onde provinha a ordem de assassínio. Como se depreende, a situação se tornou muito tensa; os huguenotes ameaçaram revoltar-se contra o rei, caso este não lhes fizesse justiça. Catarina, por conseguinte, tinha a temer não somente por seu prestigio político, mas por sua própria vida; humanamente falando, só se salvaria recorrendo a outro crime, ou seja, eliminando definitivamente Coligny e seus partidários então residentes em Paris. Foi o que ela empreendeu. No dia 23 de agosto, à noitinha, passou duas horas em colóquio com o rei Carlos IX, seu filho, que contava apenas 22 anos de idade; usando ora de ternura, ora de acento imperioso, tentava persuadi-lo de que sua coroa estava em perigo; por fim, o monarca, vencido pelas instâncias da rainha-mãe e de ministros, autorizou um golpe contra os huguenotes.

Francisco de Guise assumiu a direção da manobra ou chacina, que teve inicio sem demora, nas primeiras horas de 24 de agosto, festa de São Bartolomeu. Coligny foi logo assassinado em sua residência; despertado imprevistamente e atônito, o povo parisiense, meio-inconsciente do que se dava, associou-se ao morticínio dos huguenotes; muitos julgavam que se tratava de reprimir uma revolução…

Na tarde de 24 de agosto, o rei quis mandar suspender a carnificina, que continuava; mas em vão; estendera-se pelas províncias da França, sendo que em algumas destas os magistrados católicos e os bispos conseguiram deter a onda de furor, impedindo o morticínio. Na verdade, este só cessou aos 27 de agosto.

Temendo então represálias por parte dos governos estrangeiros, Catarina dirigiu a estes uma carta circular em que apresentava a carnificina como medida tomada “não por ódio aos huguenotes, mas para remover uma conspiração de alta traição do almirante e de seus cúmplices”. Igualmente ambíguos foram os relatos transmitidos ao Papa Gregório XIII: entre outras, uma carta de Luís de Bourbon, duque de Montpensier, ao Pontífice, datada de 26 de agosto (e ainda hoje conservada), informava que o almirante Coligny quisera exterminar o rei Carlos IX, Catarina e os grandes senhores católicos, a fim de fazer subir ao trono de França um príncipe que impusesse o Calvinismo a toda a nação; mas – acrescentava – a conspiração fora descoberta em boa hora, e a intenção do rei era a de restaurar a religião católica em seu prestígio tradicional.

Estas comunicações ocultavam ao Santo Padre o verdadeiro significado dos acontecimentos; Gregório XIII julgou simplesmente que a França acabara de se libertar do perigo calvinista e que doravante se agregaria francamente às nações católicas da Europa. Por isto, mandou cantar um “Te Deum” na igreja de Santa Maria Maior em Roma, e fez cunhar uma medalha comemorativa do comunicado oficial dado pelo Parlamento ao povo: conspiração calvinista debelada; por isto, civis e eclesiásticos, a pedido da corte, se reuniram em solene cerimônia de ação de graças aos 28 de agosto. De resto, cronistas antigos referem como o regozijo de Gregório XIII foi mesclado de amargura: um gentil-homem que privava com o Pontífice, narra que o Papa derramou lágrimas ao receber a notícia do morticínio; interrogado então por um Cardeal sobre o motivo por que tanto se afligia em vista da derrota dos inimigos do Senhor, respondeu:

– “Lamento a ação do rei, ilícita e proibida por Deus” (cf. Brantôme, 1614, Mémoires III, Ley de 1722, 171).

O episódio é confirmado por um relato do embaixador da Espanha, Zuniga, que aos 22 de setembro de 1572 dizia ter sido o Papa acometido de espanto (“se espantava”) ao tomar conhecimento das ocorrências da noite de São Bartolomeu (cf, Kervyn de Lettenhove, Relations III, 14, n. 4).

3. Na base destes dados, procuremos agora formular um juízo sobre a atitude dos católicos no morticínio de S. Bartolomeu.

Os dois seguintes pontos parecem esclarecer suficientemente a questão:

a) a carnificina não foi, como se divulgou na literatura e no teatro (cf. as peças “Charles IX” de Chénier, “Huguenots” de Scribe), o produto de um movimento anticalvinista oficialmente dirigido pelo Papa e as potências católicas. Não! Catarina do Médicis, órgão de ação no caso, não era pessoa de compromissos e táticas premeditadas; nunca seguiu um plano de atuação determinado, pois queria apenas dominar, obedecendo, antes do mais, às normas do oportunismo e do maquiavelismo; no momento em que ela o julgou conveniente, mandou matar seus adversários. A Santa Sé não foi consultada no empreendimento; nem se compreende que o fosse, pois as relações entre a corte de França e Roma eram pouco amistosas, dada a questão do matrimônio de Margarida de Valois, princesa católica, com Henrique de Navarra, chefe calvinista, matrimônio que os Papas São Pio V (1566-1572) e Gregório XIII (1572-1585), não queriam autorizar.

O Soberano Pontífice só tomou conhecimento dos fatos — e conhecimento deturpado por falsa versão — quando já estavam consumados, ou seja, aos 2 e 5 de setembro, por meio de cartas oficiosas e oficiais provenientes da França; foi por não estar suficientemente inteirado do que se dera, que Gregório XIII mandou proceder a manifestações de júbilo, julgando tratar-se da extirpação do perigo de heresia na França, perigo que se tomara famoso após os estragos e tormentos que acarretara para os católicos da Holanda (cf. o caso dos mártires de Gorkum, Akmaar, Ruremonde, ocorrido no mesmo ano de 1572).

b) Quanto à atitude pessoal de Catarina de Médicis, deve-se dizer que não foi inspirada por amor ao Catolicismo, mas por interesses pessoais. A rainha-mãe era tão pouco zelosa da conservação da fé católica que escrevera ao Papa Pio IV (1559-1565) uma carta em que lhe propunha reduzir a religião a alguns preceitos rudimentares, isto é, ao Decálogo, “a fim de permitir a união de todos os cristãos”! Sua tática entre huguenotes e católicos era a de compensar as vitórias de uns mediante as dos outros.

Também a família de Guise, associada a Catarina, era primariamente movida por ambições políticas, que se dissimulavam talvez sob a aparência de zelo religioso. Muito significativos, aliás, são os fatos seguintes: uma das primeiras medidas de Carlos IX após a noite de São Bartolomeu foi a de assegurar, por inspiração da própria Catarina, a proteção da França à metrópole calvinista, Genebra, que se julgava ameaçada pela Savóia e a Espanha. Uma vez desferido o golpe, a rainha-mãe procurou manter suas antigas relações de amizade com Elisabete da Inglaterra e os príncipes luteranos da Alemanha. Estas atitudes bem mostram que o governo de França não era “fanático” pelo Catolicismo nem agia propriamente por inspiração religiosa, mas, sim, por razões de ordem política.

Consciente disso, o estudioso sincero não associa o triste episódio da noite de São Bartolomeu com a autoridade da Igreja ou com o amor dos católicos à sua santa religião. Esta no caso só foi evocada a titulo abusivo, ou seja, para fornecer aparente justificativa à política pouco louvável de um governo maquiavélico.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 1 – jan/1958
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