Em uma noite escura
De amor em vivas ânsias inflamada
Oh! Ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
?stando já minha casa sossegada.
Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! Ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
?stando já minha casa sossegada.
Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa alguma,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.
Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em lugar onde ninguém aparecia.
Oh! noite, que me guiaste,
Oh! noite, amável mais do que a alvorada
Oh! noite, que juntaste
Amado com amada,
Amada no amado transformada!
Em meu peito florido
Que, inteiro, para ele só guardava,
Quedou-se adormecido,
E eu, terna o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.
Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.
Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.
De todos os poemas de São João da Cruz, este me é o mais caro. Cada vez que o leio, descubro novas coisas; cada vez que o leio, sinto uma santa inveja de amor tão ardente por Cristo Jesus.
Não pretendo, nestas considerações, esgotar todas as leituras possíveis. Nem isto seria possível.
Aos carmelitas, peço, desde já, mil desculpas se minha interpretação não for sequer infimamente digna. Ajudem-nos com seus comentários.
Na tradição cristã, Cristo é apresentado como o Amado, viril e forte, que corteja a sua amada (a Igreja fundada sobre Pedro, por quem Ele se entregou; e, por extensão, cada fiel por Ele conquistado), dando a Sua vida por ela. A Cruz é vista como o leito nupcial, onde estes amantes se encontram, e no qual o Amado gera, na Amada, uma vida nova. Neste sentido vemos, no final do poema, que o primeiro a adormecer (a morrer na Cruz) é o Amado (quedou-se adormecido), para, somente depois, adormecer também a amada (com o significativo gesto de inclinar a cabeça de Jo 19, 30), sobre o peito do amado.
Assim, o misticismo católico (do qual, talvez, São João da Cruz seja o mais alto exponente) sempre aponta a Cruz como sendo o caminho mais curto e delicioso para o Homem encontrar o criador. O cristão que não carrega sua cruz, que não a aceita, não se encontra com Cristo, não entra numa relação de amor com Ele, e não tem gerada, dentro de si, a nova vida que nos conduz ao céu.
Neste poema, a Cruz é substituída pela expressão “noite escura”. Todos nós já tivemos “noitas escuras” em nossas vidas. São aqueles momentos de agudo sofrimento, nos quais nossas seguranças mesquinhas (dinheiro, prazeres, comodidade, afetividade, etc.) nada nos dizem; nos quais nossas forças e nossa inteligência nada podem. Noites tenebrosas, de lágrimas e de desespero. Noites em que clamamos e nas quais o Senhor se mantém em silêncio.
Para o mundo, para os não-cristãos, estas “noites escuras” são a mais solene prova de que Deus não existe. Ou, se existe, de que não os ama. Por isto, todos fogem dela. Preferem dormir a enfrentá-la (?stando já minha casa sossegada), pois, dormindo, têm a ilusão de que a mesma passará mais rapidamente.
O Cristão, no entanto, pode enfrentá-la. Se todas as luzes do mundo se apagaram, se todas as nossas seguranças e todas as nossas forças nada podem, é o momento propício para que nos abandonemos em Deus. O cristão, ainda que com medo, vai ao encontro desta noite (saí sem ser notada; na escuridão segura; na escuridão velada), pois sabe que é através desta noite escura que brilhará a luz de Deus. Sobe, ainda que dolorosamente, nas cruzes que surgem em suas vidas. A escada secreta de que nos fala o poema é símbolo da Cruz. É a escada de Jacó, que liga o céu e a terra, e pela qual todos devemos subir se quisermos entrar no paraíso.
Mas a luz de Deus, para aqueles que se aventuram em enfrentar a “noite escura”, brilha mais do que a luz do mundo (nem eu olhava coisa alguma,/Sem outra luz nem guia/Além da que no coração me ardia./ Essa luz me guiava, Com mais clareza que a do meio-dia). A “noite escura” é o momento ideal para que o cristão perceba que a luz do mundo são trevas; e que, as trevas em Deus, são luzes potentes que nos conduzem a Ele (Essa luz me guiava, /Com mais clareza que a do meio-dia/ Aonde me esperava/ Quem eu bem conhecia, Em lugar onde ninguém aparecia.) E ninguém aparece neste lugar porque todos fogem da Cruz. A Cruz é o único lugar onde somente Cristo nos espera, pois todos os outros deuses, todos os outros ídolos do mundo nela não têm espaço.
Subindo na Cruz, entrando pela noite escura, o cristão é conduzido a Cristo. Encontra-se com seu Amado; encontra-se com a razão de sua vida e, finalmente, percebe que a Cruz, que a noite escura, que o sofrimento pelo qual passou foi um grandíssimo dom de Deus. Por esta cruz, morreu o homem velho; atravessada a noite escura, rompeu o cristão com os laços que o prendiam ao pecado e àqueles que renegam a Cristo.
Que maravilha é ouvir um testemunho neste sentido! Quantas vezes já não ouvi cristãos que, após esta vivência, afirmam que não trocariam os sofrimentos passados pela comodidade do mundo. Que não pediriam para Deus uma história diferente. Cristãos que podem afirmar, com toda a convicção :
Oh! noite, que me guiaste,
Oh! noite, amável mais do que a alvorada
Oh! noite, que juntaste
Amado com amada,
Amada no amado transformada!
Afinal, tornou-se um com Cristo. Entrou na comunhão da Trindade Santíssima. Pode desprezar, finalmente, os prazeres do mundo e almejar as coisas do alto. Como disse São Paulo, não se encontra mais dividido (Esquecida, quedei-me, O rosto reclinado sobre o Amado; Deixei-me, Largando meu cuidado Por entre as açucenas olvidado.)
Afinal “tudo cessou.” Só lhe importa o precioso tesouro do Amor de infinito de Cristo.
Que o Senhor nos ajude, e nos conceda inúmeras “noites escuras” durante a nossa peregrinação terrestre.