“A origem perene do ecumenismo do Concílio Vaticano II” (11.11.2004)

CONFERÊNCIA NO 40° ANIVERSÁRIO DA
PROMULGAÇÃO DO DECRETO CONCILIAR
“UNITATIS REDINTEGRATIO”
(ROCCA DI PAPA, 11-13 DE NOVEMBRO DE 2004)

INTERVENÇÃO DO CARDEAL WALTER KASPER
PRESIDENTE DO PONTIFÍCIO CONSELHO
PARA A PROMOÇÃO DA UNIDADE DOS CRISTÃOS

Quinta-feira, 11 de Novembro de 2004

No dia 21 de Novembro de 1964, o Concílio Ecuménico Vaticano II promulgava solenemente o Decreto sobre o ecumenismoUnitatis redintegratio“. Desde a sua introdução, o documento afirma que, “a Igreja foi fundada por Cristo Senhor nosso como una e única”, que a divisão se opõe à vontade do Senhor e que “escandaliza o mundo e prejudica a santíssima causa da pregação do Evangelho”. “O restabelecimento da unidade, que se deve promover entre todos os cristãos, é um dos principais intentos do Sagrado Concílio Ecuménico Vaticano II” (Unitatis redintegratio, 1).

Desde então, já transcorreram quarenta anos, durante os quais o documento teve repercussões sem precedentes, cujo impacto se alarga para muito além da Igreja Católica. Quarenta anos constituem uma medida de tempo bíblica. Assim, temos bons motivos para nos interrogarmos: qual era a finalidade do Decreto? Que efeito teve ele? A que ponto nos encontramos, hoje, com o ecumenismo? Qual é o caminho que o ecumenismo ainda deve percorrer? Ecumenismo, quo vadis?

O Concílio Vaticano II é a Magna Charta do caminho da Igreja no século XX (cf. Tertio millennio adveniente, 18). O Papa repetiu várias vezes que o caminho ecuménico é irreversível (cf. Ut unum sint, 3 e outros), e que o ecumenismo constitui uma das prioridades pastorais do seu Pontificado (cf. Ut unum sint, 99). Então, devemos perguntar-nos: quais são os princípios católicos do ecumenismo, do modo como eles foram formulados no Decreto Unitatis redintegratio?

I. A preparação do Decreto sobre o Ecumenismo

O Decreto sobre o Ecumenismo não nasceu do nada. Ele inscreve-se no contexto do movimento ecuménico que, tendo nascido no século XX, fora da Igreja Católica (cf. Unitatis redintegratio, 1 e 4), passou por uma viragem decisiva em 1948, com a criação do “Conselho Ecuménico das Igrejas”. Este movimento foi considerado, por muito tempo, com suspeita por parte da própria Igreja Católica. Todavia, a sua recepção por parte do Concílio Ecuménico Vaticano II tem raízes que já remontam à teologia católica do século XIX. Johann Adam Möhler e John Henry Newmann, em particular, devem ser citados como precursores e pioneiros.

Contudo, também a nível oficial podem enumerar-se acontecimentos que prepararam o caminho. Já antes do Concílio Vaticano II, os Sumos Pontífices encorajavam a oração pela unidade e a “Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos”. Os Papas Leão XIII e Bento XV prepararam a abertura ecuménica. E o Papa Pio XI aprovou explicitamente os “Colóquios de Malinas” (1921-1926) com os Anglicanos (1).

O Papa Pio XII deu um passo ulterior. Numa Instrução emanada em 1950, ele apoiou expressamente o movimento ecuménico, sublinhando o facto de que na origem do mesmo estava a obra do Espírito Santo. Além disso, esse Papa publicou uma série de Encíclicas inovadoras. Por conseguinte, seria erróneo ignorar esta continuidade fundamental e considerar o Concílio Vaticano II como uma ruptura radical com a Tradição e identificá-lo com o advento de uma nova Igreja.

II. Ecumenismo expressão da dinâmica escatológica da Igreja

Todavia, com o Concílio Vaticano II teve início algo de inédito: não uma Igreja nova, mas uma Igreja renovada. E o Papa João XXIII deu o impulso inicial. Ele pode ser, justamente, considerado como o pai espiritual do Decreto sobre o Ecumenismo: foi ele que desejou o Concílio Vaticano II e que definiu as finalidades do mesmo: a renovação no interior da Igreja Católica e a unidade dos cristãos.

Não tenho a intenção de traçar aqui a génese movimentada do DecretoUnitatis redintegratio” (2), com que finalmente se abandonou a visão limitada da Igreja da Contra-Reforma e pós-tridentina, e foi promovido não tanto um “modernismo”, como um regresso à tradição bíblica, patrística e alto-medieval, que permitiu uma nova a mais límpida compreensão da natureza da Igreja.

O Concílio pôde assumir o movimento ecuménico, porque entendia a Igreja como um movimento, ou seja, como o povo de Deus a caminho (cf. Lumen gentium, 2, 8-9 e 48-51; Unitatis redintegratio, 2 e outros). Por outras palavras, o Concílio Ecuménico Vaticano II voltou a valorizar a dimensão escatológica da Igreja, demonstrando que a Igreja não é uma realidade estática, mas dinâmica, é o povo de Deus em peregrinação entre o “aqui” e o “não ainda”. O Concílio Vaticano II integrou o movimento ecuménico nesta dinâmica escatológica. Assim entendido, o ecumenismo é o caminho da Igreja (cf. Ut unum sint, 7). Não é um acréscimo, nem um apêndice, mas constitui uma parte integrante da vida orgânica da Igreja e da sua actividade pastoral (cf. Ut unum sint, 20).

Nesta perspectiva escatológica, o movimento ecuménico está estritamente vinculado ao movimento missionário. O ecumenismo e a missão são como dois gémeos (3).

A missão é um fenómeno escatológico, graças ao qual a Igreja assume o património cultural dos povos e purifica-o, enriquecendo-se assim também a si mesma e alcançando a plenitude da sua catolicidade (cf. Ad gentes, 1-2, 9 e outros).

Do mesmo modo, no movimento ecuménico a Igreja participa num intercâmbio de dons com as Igrejas separadas (cf. Ut unum sint, 28 e 57), enriquece-as e, ao mesmo tempo, torna próprios os seus dons, leva-os à plenitude da sua catolicidade e, agindo assim, realiza plenamente a sua própria catolicidade (cf. Unitatis redintegratio, 4). A missão e o ecumenismo são as duas formas do caminho escatológico e da dinâmica escatológica da Igreja.

O Concílio não foi tão ingénuo, a ponto de ignorar o perigo que podia comportar a integração do movimento ecuménico na dinâmica escatológica da Igreja. Esta dinâmica como se pôde verificar com frequência na história da Igreja poderia ser erroneamente interpretada como um movimento progressista, segundo o qual a herança das antigas tradições é entendida como obsoleta e rejeitada em nome de uma concepção, por assim dizer, progressista, da fé. Quando isto acontece, existe um perigo concreto de relativismo e de indiferentismo, de um “ecumenismo barato”, que acaba por se tornar supérfluo. Deste modo, o movimento ecuménico tornou-se por vezes alvo de movimentos críticos em relação à Igreja e foi instrumentalizado contra ela.

O laxismo dogmático leva a ignorar a essência da dimensão escatológica da Igreja. Efectivamente, o eschaton não se refere a uma realidade futura, que se situa fora a história. Com Jesus Cristo e com a efusão do Espírito Santo, ele entrou definitivamente na história e está presente no seio da Igreja. A própria Igreja é um fenómeno escatológico; a unidade, que é a sua característica essencial, não constitui portanto uma meta que se situa num futuro longínquo e, menos ainda, é uma meta escatológica; a Igreja é já “Una Sancta Ecclesia” (cf. Unitatis redintegratio, 4; Ut unum sint, 11-14). O caminho ecuménico não é uma viagem rumo ao desconhecido. A Igreja será na história aquilo que é, o que sempre foi e o que sempre será. Ela está a caminho, para realizar plena e concretamente esta sua natureza na vida.

Os princípios católicos do ecumenismo, enunciados pelo Concílio Vaticano II e mais tarde pelo Papa João Paulo II, são clara e inequivocadamente opostos a um irenismo e a um relativismo que tendem a banalizar tudo (cf. Unitatis redintegratio, 5, 11 e 24; Ut unum sint, 18, 36 e 79). O movimento ecuménico não renuncia a nada daquilo que até agora foi precioso e importante para a Igreja e na sua história; ele permanece fiel à verdade que na história é reconhecida e definida como tal, e nada lhe acrescenta de novo. O movimento ecuménico e a finalidade que ele mesmo se propõe, ou seja, a plena unidade dos discípulos de Cristo, permanecem inscritos no sulco da Tradição.

Mas a Tradição, no espírito dos dois grandes precursores do Concílio Vaticano II, Johann Adam Möhler e John Henry Newmann, não é uma entidade petrificada, mas é uma tradição viva. Trata-se de um acontecimento no Espírito Santo, que orienta a Igreja para a verdade total, em conformidade com a promessa do Senhor (cf. Jo 16, 13), revelando-nos incessantemente o Evangelho, que nos é transmitido de uma vez por todas, e fazendo-nos progredir na compreensão da verdade revelada de uma vez por todas (cf. Dei Verbum, 8; DS, 3020). Segundo o Bispo mártir Ireneu de Lião, é o Espírito de Deus que conserva jovem e vigoroso o património apostólico, que nos é transmitido de uma vez por todas(4).

Neste sentido, o movimento ecuménico constitui um fenómeno carismático e uma “operação do Espírito Santo”. Com efeito, a Igreja não tem somente uma dimensão institucional, mas como o próprio Concílio sublinhou também uma dimensão carismática (cf. Lumen gentium, 4, 7, 12 e 49; Apostolicam actuositatem, 3; Ad gentes, 4 e 29). O ecumenismo é, por conseguinte, um novo início, suscitado e orientado pelo Espírito de Deus (cf. Unitatis redintegratio, 1 e 4). O Espírito Santo, alma da Igreja (cf. Lumen gentium, 7), proporciona a unidade e a diversidade dos dons e dos ministérios (cf. Lumen gentium, 7; Unitatis redintegratio, 2). Portanto, o Concílio pôde afirmar que o ecumenismo espiritual é o coração do ecumenismo. Ecumenismo espiritual significa conversão interior, renovação do espírito, santificação pessoal da vida, caridade, abnegação, humildade e paciência, mas inclusivamente renovação e reforma da Igreja. E, sobretudo, a oração é o coração do movimento ecuménico (cf. Unitatis redintegratio, 5-8; Ut unum sint, 15-16 e 21-27).

Neste movimento espiritual, o movimento ecuménico não desarraiga a Tradição. Pelo contrário, propõe uma compreensão nova e mais profunda da mesma, que nos foi transmitida de uma vez por todas; é graças a ele que abre caminho o novo Pentecostes, preanunciado pelo Papa João XXIII no seu discurso de inauguração do Concílio; através dele, prepara-se uma nova fisionomia histórica da Igreja, não uma nova Igreja, mas uma Igreja espiritualmente renovada e enriquecida. Com a missão, o ecumenismo é o caminho da Igreja no século XXI e no terceiro milénio.

III. “Subsistit in” expressão de uma eclesiologia historicamente concreta

A dinâmica escatológica e pneumatológica necessitava de uma elucidação conceitual. Este esclarecimento foi oferecido pelo Concílio Vaticano II, na Constituição sobre a Igreja, mediante a fórmula muito discutida do “subsistit in”: a Igreja de Jesus Cristo subsiste na Igreja Católica (cf. Lumen gentium, 8). O redactor principal da Constituição sobre a Igreja, G. Philips, foi bastante clarividente, a ponto de prever que ainda correria muita tinta a propósito do significado do “subsistit in”(5). Com efeito, este fluxo de tinta continua a correr e provavelmente ainda correrá, antes de esclarecer as questões levantadas.

Durante o Concílio, o “subsistit in” substituiu o precedente “est”(6). Ele contém in nuce todo o problema ecuménico (7). O “est” afirmava que a Igreja de Jesus Cristo “é” a Igreja Católica. Esta estrita identificação da Igreja de Jesus Cristo com a Igreja Católica estava presente, por exemplo, nas Cartas EncíclicasMystici corporis (1943) eHumani generis (1950) (8). Todavia, a própriaMystici corporis reconhece a existência de pessoas que, embora não sejam baptizadas, pertencem à Igreja Católica pelo seu próprio desejo (cf. DS, 3921). Por este motivo, já em 1949 o Papa Pio XII tinha condenado uma interpretação exclusiva do axioma “Extra Ecclesiam nulla salus”(9).

O Concílio pôde dar um importante passo em frente, graças ao “subsistit in”. Desejou-se justificar o facto de que, fora da Igreja Católica, não existem apenas indivíduos cristãos, mas também “elementos da Igreja” (10), e inclusivamente Igrejas e Comunidades eclesiais que, embora não estejam em plena comunhão, pertencem por direito à única Igreja e são, para os seus membros, instrumentos de salvação (cf. Lumen gentium, 8 e 15; Unitatis redintegratio, 3; Ut unum sint, 10-14). Por conseguinte, o Concílio Ecuménico Vaticano II sabe que fora da Igreja Católica existem formas de santidade que podem chegar até ao martírio (cf. Lumen gentium, 14; Unitatis redintegratio, 4; Ut unum sint, 12 e 83). Consequentemente, a questão da salvação dos não-católicos já não é resolvida a nível individual, a partir do desejo subjectivo de um indivíduo, como é indicado pela EncíclicaMystici corporis, mas sim a nível institucional e de modo eclesiológico objectivo.

Na intenção da Comissão Teológica do Concílio, a noção do “subsistit in” significa que a Igreja de Jesus Cristo tem o seu “lugar concreto” na Igreja Católica; é na Igreja Católica que se encontra a Igreja de Cristo e é ali que ela se acha concretamente (11). Não se trata de uma entidade puramente platónica ou de uma realidade meramente futura; ela existe de maneira concreta na história e encontra-se de modo concreto no seio da Igreja Católica (12).

Entendido deste modo, o “subsistit in” adquire a instância essencial do “est”. Todavia, não descreve mais o modo segundo o qual a Igreja Católica se compreende a si mesma em termos de “splendid isolation”, mas reconhece a presença activa da única Igreja de Jesus Cristo também nas outras Igrejas e Comunidades eclesiais (cf. Ut unum sint, 11), embora as mesmas ainda não se encontrem em plena comunhão com ela. Ao formular a sua identidade, a Igreja Católica estabelece um relacionamento dialógico com estas Igrejas e Comunidades eclesiais.

Por conseguinte, o “subsistit in” é erroneamente interpretado, quando se faz dele o fundamento de um pluralismo e de um relativismo eclesiológico, afirmando que a única Igreja de Jesus Cristo subsiste em numerosas Igrejas e que a Igreja Católica é simplesmente uma Igreja ao lado das demais. Semelhantes teorias de pluralismo eclesiológico contradizem a compreensão da própria identidade que a Igreja Católica como de resto também as Igrejas ortodoxas sempre teve ao longo da sua Tradição, compreensão esta que o próprio Concílio Ecuménico Vaticano II desejou fazer sua. A Igreja Católica reivindica para si mesma, tanto no presente como no passado, o direito de ser a verdadeira Igreja de Jesus Cristo, em que se encontra toda a plenitude dos instrumentos de salvação (cf. Unitatis redintegratio, 3; Ut unum sint, 14), mas agora adquire consciência disto de maneira dialógica, tendo em consideração também as outras Igrejas e Comunidades eclesiais. O Concílio Vaticano II não afirma uma doutrina nova, mas justifica uma atitude renovada, renuncia ao triunfalismo e formula a tradicional compreensão da sua própria identidade de forma realista, historicamente concreta e, poder-se-ia dizer, até mesmo humilde. O Concílio sabe que a Igreja está a caminho ao longo da história, para realizar concretamente na história aquilo que é (“est”) a sua natureza mais profunda.

Esta visão humilde e realista encontra-se principalmente no n. 8 da Lumen gentium, onde o Concílio, com o “subsistit in“, reconhece não só elementos da Igreja fora da sua estrutura visível, mas também membros e estuturas de pecado na própria Igreja (13). O povo de Deus conta também pecadores nas suas fileiras, com a consequência de que a natureza espiritual da Igreja não se manifesta de modo clarividente aos irmãos separados e ao mundo; a Igreja tem a sua parte de responsabilidade nas divisões existentes e assim o crescimento do Reino de Deus é adiado (cf. Unitatis redintegratio, 3-4). Por outro lado, as Comunidades separadas às vezes desenvolveram melhor alguns aspectos da verdade revelada, de tal forma que na situação de divisão a Igreja Católica não consegue desenvolver plena e concretamente a sua própria catolicidade (cf. Unitatis redintegratio, 4; Ut unum sint, 14). Por isso, a Igreja tem necessidade de purificação e de renovação, enquanto deve percorrer incessantemente o caminho da penitência (cf. Lumen gentium, 8; Unitatis redintegratio, 3-4 e 6-7; Ut unum sint, 34-35 e83-84).
Esta visão autocrítica e penitente constitui o fundamento do caminho do movimento ecuménico (cf. Unitatis redintegratio, 5-12). Ela compreende a conversão e a renovação, sem as quais não pode existir o ecumenismo nem o diálogo que, mais do que um intercâmbio de ideias, é uma permuta de dons.

Nesta perspectiva escatológica e espiritual, a finalidade do ecumenismo não pode ser concebida como um simples regresso dos outros ao seio da Igreja Católica. A finalidade da plena unidade só pode ser alcançada através do compromisso animado pelo Espírito de Deus e a conversão à única Cabeça da Igreja, Jesus Cristo. Na medida em que estivermos unidos a Cristo, estaremos também congregados uns aos outros e realizaremos concretamente e em toda a plenitude a catolicidade que é própria da Igreja. Este objectivo foi definido teologicamente pelo Concílio Vaticano II como unidade-communio.

IV. O ecumenismo sob o sinal da eclesiologia de comunhão

A ideia fundamental do Concílio Vaticano II, e de modo particular o Decreto sobre o Ecumenismo, resume-se numa única palavra: communio (14). Este termo é importante para compreender correctamente a problemática dos “elementa Ecclesiae“. Tal expressão sugere uma dimensão quantitativa, quase materialista, como se se pudessem quantificar, contar estes elementos, verificando se o seu número está completo. Esta “eclesiologia dos elementos” já foi criticada durante os debates conciliares e, sobretudo, depois do Concílio Vaticano II (15). Contudo, aUnitatis redintegratio não se esgotou nisto. O Decreto sobre o Ecumenismo considera as Igrejas e as Comunidades eclesiais separadas não tanto como entidades que conservaram um resíduo de elementos, de consistência diversificada em conformidade com os casos, mas sim como entidades integrais, que lançam luz sobre estes elementos no interior da sua concepção eclesiológica global.
Isto acontece graças ao conceito de communio. Com esta noção, presente na Bíblia e utilizada também pela Igreja primitiva, o Concílio Vaticano II define o mistério mais profundo da Igreja que é, à imagem da communio trinitária, como um ícone da Santíssima Trindade (cf. Lumen gentium, 4; Unitatis redintegratio, 2). Originariamente, a communio e a communio sanctorum não designavam a comunidade dos cristãos entre si, mas a participação (participatio) nos bens da salvação, nos sancta, ou seja, nos sacramenta.

Em tudo isto, o baptismo é fundamental. Ele é o sacramento da fé, através do qual os baptizados pertencem ao único corpo de Cristo, que é a Igreja. Por conseguinte, os cristãos não católicos não se encontram fora da única Igreja mas, pelo contrário, já lhe pertencem de maneira fundamental (cf. Lumen gentium, 11 e 14; Unitatis redintegratio, 22). Tendo como base o único baptismo comum, o ecumenismo vai muito além da mera benevolência e da simples amizade; não se trata de uma forma de diplomacia eclesial, mas possui um fundamento ontológico e uma profundidade ontológica; é um evento do Espírito.

Evidentemente, o baptismo é apenas o ponto de partida e o fundamento (cf. Unitatis redintegratio, 22). A incorporação na Igreja alcança a sua plenitude com a Eucaristia, que é manancial, fulcro e ápice da vida cristã e eclesial (cf. Lumen gentium, 11 e 26; Presbyterorum ordinis, 5; Ad gentes, 39). Assim, a eclesiologia eucarística já encontra o seu fundamento na Constitutição litúrgica e na Constituição sobre a Igreja (cf. Sacrosanctum concilium, 47; Lumen gentium, 3, 7, 11, 23 e 26).

AUnitatis redintegratio” afirma que, na Eucaristia, “a unidade da Igreja é significada e realizada” (Unitatis redintegratio, 2). Em seguida, a propósito das Igrejas ortodoxas, afirma: “Pela celebração da Eucaristia do Senhor em cada uma destas Igrejas, a Igreja de Cristo é edificada e cresce, e pela concelebração se manifesta a sua comunhão” (Unitatis redintegratio, 15). Onde quer que a Eucaristia seja celebrada, ali se encontra a Igreja. Como em breve será evidenciado, este axioma é de importância essencial para compreender as Igrejas Orientais e a distinção entre estas últimas e as Comunidades eclesiais protestantes.

Aquilo que acabámos de dizer significa que cada Igreja particular que celebra a Eucaristia é Igreja no pleno sentido deste termo, mas não é a Igreja inteira (cf. Lumen gentium, 26 e 28). Dado que só existem um Cristo e uma Eucaristia, cada Igreja que celebra a Eucaristia vive num relacionamento de comunhão com todas as outras Igrejas. A única Igreja existe em todas as Igrejas particulares e a partir destas (cf. Lumen gentium, 23), e vice-versa, as Igrejas particulares existem na única Igreja e a partir desta (cf. Communionis notio, 9).

Transferindo este conceito de unidade para o problema ecuménico, a unidade ecuménica para a qual todos nós tendemos significa algo mais do que uma rede de Igrejas confessionais que, entrando em comunhão de Eucaristia e de púlpito, se reconhecem reciprocamente. A compreensão católica do ecumenismo pressupõe aquilo que já existe, ou seja, a unidade na Igreja Católica e a comunhão parcial com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais, para chegar, partindo desta comunhão incompleta, à plena comunhão (cf. Ut unum sint, 14), que compreende a unidade na fé, nos sacramentos e no ministério eclesiástico (cf. Lumen gentium, 14; Unitatis redintegratio, 2-3).

A unidade no sentido da communio plena não significa uniformidade, mas unidade na diversidade e diversidade na unidade. No interior da única Igreja há lugar para uma diversidade legítima de mentalidade, de usos, de ritos, de regras canónicas, de teologias e de espiritualidades (cf. Lumen gentium, 13; Unitatis redintegratio, 4 e 16-17). Podemos também dizer que a essência da unidade, concebida como communio, é a catolicidade no seu significado originário, que não é confessional mas qualitativo; ela indica a realização de todos os dons que as Igrejas particulares e confessionais podem oferecer.

Por conseguinte, a contribuição daUnitatis redintegratio” para a solução do problema ecuménico não é a “eclesiologia dos elementos”, mas sim a distinção entre a comunhão plena e a comunhão não plena (cf. Unitatis redintegratio, 3)(16). Desta distinção deriva o facto de que o ecumenismo não tem em vista criar associações, mas realizar uma communio, que não significa absorção recíproca nem fusão (17). Esta formulação do problema ecuménico é a contribuição teológica mais importante que o Concílio Vaticano II ofereceu para a questão ecuménica.

V. Oriente e Ocidente duas formas do mesmo movimento ecuménico

A integração da teologia ecuménica na eclesiologia da communio permite distinguir dois tipos de divisão da Igreja: a separação entre Oriente e Ocidente, e as divisões no interior da Igreja do Ocidente, a partir do século XVI. Entre as duas, a diferença não é exclusivamente geográfica ou temporal; trata-se de cismas de natureza diversificada. Enquanto com a ruptura entre o Oriente e o Ocidente a estrutura eclesial, que se tinha desenvolvido fundamentalmente a partir do século II, permaneceu intacta, com as Comunidades derivadas da Reforma encontramo-nos diante de outro modelo eclesial (18).

O cisma do Oriente envolve tanto as antigas Igrejas do Oriente, que se separaram da Igreja imperial nos séculos V-VI, como o cisma entre Roma e os Patriarcados orientais, cuja data simbólica foi fixada no ano de 1054.

Sem dúvida, o Concílio Vaticano II não reduz as diferenças a simples factores políticos e culturais. Desde o início, o Oriente e o Ocidente acolheram de maneiras diferentes o mesmo Evangelho e desenvolveram várias formas de liturgia, de espiritualidade, de teologia e de direito canónico. Todavia, eles concordam naquilo que diz respeito à estrutura fundamental, tanto eucarístico-sacramental como episcopal. Os diálogos nacionais e internacionais começados no período pós-conciliar confirmaram esta profunda comunhão na fé, nos sacramentos e na estrutura episcopal.

Portanto, o Concílio Vaticano II fala dos relacionamentos entre as Igrejas particulares como entre Igrejas irmãs (cf. Unitatis redintegratio, 14). Esta formulação, ainda bastante indefinida no Decreto sobre o Ecumenismo, foi retomada e desenvolvida no intercâmbio de mensagens entre o Papa Paulo VI e o Patriarca Ecuménico Atenágoras, o chamado “Tomos agapis” (19).

O restabelecimento da plena comunhão pressupõe uma consideração atenta dos vários factores da divisão (cf. Unitatis redintegratio, 14) e o reconhecimento das diferenças legítimas (cf. ibid., 15-17). O Concílio constata que, a propósito das diferenças, se trata com frequência mais de elementos complementares do que de divergências opostas (cf. ibid., 17) (20). Portanto, ele declara que “todo este património espiritual e litúrgico, disciplinar e teológico, nas suas diversas tradições, pertence à plena catolicidade e apostolicidade da Igreja” (Unitatis redintegratio, 17) (21). Por conseguinte, para restabelecer a unidade é necessário não impor outro peso, a não ser o que é necessário (cf. Act 15, 28; Unitatis redintegratio, 18).

O verdadeiro problema nos relacionamentos entre o Oriente e o Ocidente é a questão do ministério petrino (cf. Ut unum sint, 88). O Papa João Paulo II convidou a um diálogo fraterno sobre o exercício futuro deste ministério (cf. ibid., 95). Não é possível expor aqui as complexas questões históricas ligadas a este problema, nem as possibilidades actuais de uma reinterpretação e de uma nova apresentação dos dogmas promulgados pelo Concílio Vaticano I. Recordemos apenas o facto de que um Congresso organizado no mês de Maio de 2003, pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos com as Igrejas ortodoxas, levou a uma abertura de ambas as partes (22). Formulamos votos a fim de que o diálogo teológico internacional possa ser retomado prontamente, para se dedicar sobretudo ao estudo deste tema.

O cisma do Ocidente, que teve a sua origem na Reforma do século XVI, é de uma outra natureza. Como o Decreto sobre o Ecumenismo reconhece claramente, trata-se de um fenómeno complexo e diferenciado, de carácter tanto histórico como doutrinal. Também às Comunidades que nasceram da Reforma estamos ligados por numerosos e importantes elementos da verdadeira Igreja, entre os quais sobretudo o anúncio da Palavra de Deus e o baptismo. Em numerosos documentos de diálogo pós-conciliares, esta comunhão é ampliada e aprofundada (23).

Todavia, existem inclusivamente “bastantes divergências, não só de índole histórica, sociológica, psicológica e cultural, mas sobretudo de interpretação da verdade revelada” (Unitatis redintegratio, 19). Em conformidade com o Concílio, em parte estas divergências dizem respeito à doutrina de Jesus Cristo e da redenção, mas sobretudo à Sagrada Escritura, no seu relacionamento com a Igreja, com o magistério autêntico, com a Igreja, com os seus ministros e com o papel de Maria na obra de redenção (cf. ibid., 20-21; Ut unum sint, 66), e em parte também às questões morais (cf. Unitatis redintegratio, 23). Recentemente, estas últimas passaram a ocupar o primeiro plano e levantaram problemas tanto no interior das Comunidades eclesiais reformadas como nos relacionamentos entre estas e a Igreja Católica.

Diversamente daquilo que acontece na situação do cisma do Oriente, com as Comunidades nascidas da Reforma, encontramo-nos na presença não apenas de divergências doutrinais, mas também de uma outra estrutura fundamental e de um outro tipo de Igreja. Embora com características diversas e, muitas vezes, notáveis nas suas posições, os reformadores concebem a Igreja como creatura verbi, sobretudo a partir da Palavra de Deus(24), e não da Eucaristia.

A diferença acentua-se, quando se trata da questão da Eucaristia. Como afirma o Concílio Vaticano II, as Comunidades eclesiais que nasceram da Reforma, “pela falta do Sacramento da Ordem, não conservaram a genuína e íntegra substância do Mistério eucarístico” (Unitatis redintegratio, 22).

No sentido da eclesiologia eucarística, a distinção entre as Igrejas e as Comunidades eclesiais deriva desta falta da substância eucarística. A declaração “Dominus Iesus” (cf. n. 16) ressaltou ulteriormente esta distinção a nível de conceitos e, assim fazendo, levantou críticas ásperas da parte dos cristãos protestantes. Seria impossível formular de modo mais compreensível quanto se desejava expressar; todavia, naquilo que se refere ao seu conteúdo efectivo, não se podem ignorar as divergências existentes no modo de conceber a Igreja. Os protestantes não querem ser Igreja, no sentido como a Igreja Católica se compreende a si mesma; eles representam um outro género de Igreja e, por este motivo, segundo o critério de identidade católico, não são uma Igreja em sentido próprio.

Em virtude das diferenças existentes, o Concílio Vaticano II exorta os fiéis a absterem-se de qualquer leviandade ou zelo imprudentes. “A sua acção ecuménica não pode ser senão plena e sinceramente católica, quer dizer, fiel à verdade que recebemos dos Apóstolos e dos Padres, e concorde com a fé que a Igreja Católica sempre tem professado” (Unitatis redintegratio, 24). Contudo, o Concílio chama a atenção também para as polémicas. É significativo que o termo “diálogo” seja repetido como uma ladainha, no final das várias secções desta parte do Decreto (cf. ibid., 19 e 21-23). Isto expressa, uma vez mais, o novo espírito com que o mesmo Concílio deseja superar as diferenças.

VI. Quanta est nobis via?

O Decreto constituiu um início. Não obstante, teve repercussões vastas e importantes, tanto no interior da Igreja Católica como a nível ecuménico em geral, e mudou profundamente a situação do ecumenismo ao longo dos últimos quarenta anos(25).

Sem dúvida, aUnitatis redintegratio” deixou também algumas questões a resolver, enfrentou críticas e conheceu ulteriores desenvolvimentos. Contudo, os problemas encontrados não devem levar-nos a esquecer os ricos frutos que produziu. O Decreto sobre o Ecumenismo deu início a um processo irrevocável e irreversível, ao qual não existe uma alternativa realista. O Decreto sobre o Ecumenismo indica-nos o caminho a seguir no século XXI. A vontade do Senhor consiste em empreendermos este caminho com prudência, mas também com coragem, paciência e sobretudo esperança inabalável.

Em última análise, o ecumenismo é uma aventura do Espírito. Por isso, concluo citando as palavras com que se encerra também aUnitatis redintegratio“: “”A esperança não engana, porque o amor de Deus é largamente difundido nos nossos corações por meio do Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 5)” (n. 24).


Notas

1) No que se refere aos antecedentes do movimento ecuménico na Igreja Católica, cf. H. Petri, “Die römischkatholische Kirche und die Ökumene“, em: Handbuch der Ökumenik, vol. 2, Paderborn 1986, pp. 95-135.

2) Cf. W. Becker, em: LThK Vat. II, vol. 2 (1967), pp. II-39; L. Jaeger, Das Konzildekret über den Ökumenismus, Paderborn 1968, pp. 15-78; Storia del Concilio Vaticano II, por G. Alberigo, vol. 3, Bolonha 1998, pp. 277-365; vol. 4, Bolonha 1999, pp. 436-446.

3) J. Le Guillou, Mission et unité. Les exigeances de la communion, Paris 1959; Y. Congar, Diversité et communion, Paris 1982, pp. 239-240. Também o Papa João Paulo II sublinhou este vínculo na sua Carta Encíclica sobre a missão, Redemptoris Missio (1990), nn. 36 e 50.

4) Santo Ireneu de Lião, “Adversus haereses” III, 24, 1, em: Sources chrétiennes, n. 21, Paris 1974, pág. 472.

5) G. Philips, L’Eglise et son mystère aux deuxième Concile du Vatican, vol. 1, Paris 1967, pág. 119.

6) Vista de conjunto, em: Synopsis historica, sob a responsabilidade de G. Alberigo-F.Magistretti, Bolonha 1975, pp. 38, 439-440 e 506-507.

7) G. Philips, L’Eglise et son mystère… op. cit., ibidem.

8) AAS 35 (1943), pág. 199; AAS 42 (1950), pág. 571.

9) “Carta da Santa Sé ao Arcebispo de Boston, nos Estados Unidos da América” (1949), em: DS, 3866-3873.

10) Em última análise, este conceito remonta a G. Calvino. Contudo, enquanto para Calvino este termo se referia a tristes resíduos da verdadeira Igreja, no debate ecuménico ele é entendido em sentido positivo, dinâmico e orientado para o futuro. Aparece pela primeira vez com Yves Congar, como continuação da posição antidonatista de Santo Agostinho (cf. A. Nichols, Yves Congar, Londres 1986, pp. 101-106). Com a Declaração de Toronto, no Canadá (1950), esta expressão começou a fazer parte da linguagem do Conselho Ecuménico das Igrejas.

11) Synopsis historiae, pág. 439; G. Philips, L’Eglise et son mystère… op. cit., pág. 119; A. Grillmeier, LThK Vat. II, vol. 1, 1966, pág. 175; L. Jaeger, Das Konzildekret… op. cit., pp. 214-217.

12) Cf. a Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé, “Mysterium Ecclesiae” (1973), n. 1; e ainda a Declaração da mesma Congregação, “Dominus Iesus” (2000), n. 17.

13) A respeito da noção de “estruturas de pecado”, cf. a Carta Apostólica do Papa João Paulo II, “Reconciliatio et paenitentia” (1984), n. 16; cf. também Ut Unum Sint, 34.

14) A este propósito, cf. o Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985 (II Cap. 1). O Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos abordou este tema de modo pormenorizado, durante a sua Assembleia Plenária de 2001. Cf. o pronunciamento do Cardeal Walter Kasper: “Communio. The Guiding Concept of Catholic Ecumenical Theology. The Present and the Future Situation of the Ecumenical Movement“, em: Information Service n. 109, 2000/I-II, pp. 11-20.

15) Cf. sobretudo H. Mühlen, Una mystica persona, Munique-Paderborn 1968, pp. 496-502 e 504-513.

16) Esta distinção ainda não é indicada claramente na terminologia dos textos conciliares. No n. 3 da Unitatis redintegratio fala-se de “plena communio” e de “quaedam communio, etsi non perfecta”.

17) João Paulo II, Carta Encíclica “Slavorum apostoli” (1985), n. 27.

18) J. Ratzinger, “Die ökumenische Situation Orthodoxie, Katholizismus und Reformation, em: Theologische Prinzipienlehre, Munique 1982, pp. 203-208.

19) Ibid., pp. 386-392 (n. 176). Esta expressão foi retomada na Declaração Conjunta do Papa João Paulo II e do Patriarca Ecuménico Bartolomeu (1995).

20) O “Catecismo da Igreja Católica” (n. 248) inclui também a questão do filioque entre os problemas que indicam uma diferença complementar, e não contraditória.

21) Esta ideia encontra-se de novo no n. 1. do Decreto “Orientalium Ecclesiarum“, e no n. 1 da Carta Encíclica “Orientale lumen” (1995).

22) Cf. E. Kasper (ed.), Il ministero petrino. Cattolici e ortodossi in dialogo, Roma 2004.

23) Citamos sobretudo os documentos de Lima, “Baptismo, Eucaristia e Ministero” (1982), os documentos da ARCIC com a Comunhão Anglicana, os documentos de convergência com os luteranos (“A ceia do Senhor”, “O ministério espiritual da Igreja”, etc.) e, de forma particular, a “Declaração conjunta sobre a doutrina da justificação” (1999).

24) M. Luther, De captivitate Babylonica Ecclesiae praeludium (1520): WA 560s.

25) Cf. Il Concilio Vaticano II. Ricezione e attualità alla luce del Giubileo, ed. R. Fisichella, Roma 2000, pp. 335-415, com a colaboração de E. Fortino, J. Wicks, F. Ocáriz, Y. Spiteris e V. Pfnür.

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