A parábola dos operários na vinha (Mateus 20,2-16)

– “Na parábola dos trabalhadores e das diversas horas de trabalho (Mateus 20,2-16), não se vê por que é proclamada a justiça do pagamento feito; principalmente não se entende por que muitos são chamados e poucos escolhidos”.

1) As parábolas constituem um gênero literário que pode ser interpretado segundo normas próprias. Dentre estas, interessa-nos particularmente a seguinte: deve-se considerar a história parabólica como um conjunto que, como conjunto, significa uma realidade superior (dogmática ou moral). Quanto aos pormenores da peça, nem todos são portadores de ensinamento religioso; alguns aí figuram cinicamente, a fim de tornar mais viva a narrativa. Sendo assim, para se fazer a exegese de uma parábola do Evangelho, é preciso, antes do mais, averiguar qual a doutrina religiosa que Jesus queria ilustrar ao narrá-la; em função desta é que se interpretarão o conjunto da história narrada e os seus traços particulares. Ora, a moralidade que o Senhor queria incutir mediante tal ou tal parábola, a é enunciada pelo próprio Mestre (cf. Mateus 13,18-23) ou se deve depreender do contexto.

2) Dito isto, abordemos a seção de Mateus que se refere aos operários angariados para a vinha:

O texto da parábola termina propriamente no v. 15 com as palavras: “Será teu olhar malvado, porque eu sou bom?” Evidentemente, já não pertence à peça literária o v. 16 assim concebido: “Por conseguinte, os últimos serão os primeiros e os primeiros os últimos, pois há muitos chamados e poucos escolhidos”. A história que precede, não dá ocasião a tais dizeres, que aparecem imprevistamente, sem concatenação nem propósito no contexto.

Com efeito, na narrativa parabólica, não é o fato de serem os últimos operários pagos antes dos primeiros que tem importância e provoca protestos, mas é o fato de receberem todos igual salário. Por isto, a sentença a respeito dos últimos que se tornam os primeiros e vice-versa, parece ter sido uma frase de Jesus que a tradição oral referia independentemente de determinado contexto e que São Mateus houve por bem consignar duas vezes: em 19,30 e 20,16. Em Lucas 13,30 e Marcos 10,31, ela ocorre em contextos assaz diferentes. Sendo assim, para se instituir a exegese da parábola dos operários, será lícito (e até mesmo necessário) abstrair de tal sentença do Mestre.

Muito menos na interpretação da parábola se levará em conta a frase anexa à anterior e concernente aos “muitos chamados e poucos escolhidos”; percebe-se sem dificuldade que estes dizeres não estão no seu lugar lógico. Alguns códices antigos do Evangelho chegam a omiti-los em Mateus 20,16 e os referem apenas uma vez, isto é, em Mateus 22,14, onde têm realmente certo nexo com a parábola do banquete anteriormente narrada. A propósito, deve-se notar que, segundo o modo semita de falar, a sentença significa: “Maior é o número de chamados, menor é o número de escolhidos”. Os semitas não tinham forma gramatical própria para indicar o grau comparativo; por isto, enunciavam a comparação justapondo simplesmente os dois termos que eles queriam confrontar entre si (cf. casos análogos em Marcos 9,43.45.47; Mateus 5,29-30; 18,6.8a; Lucas 17,2; 18,14). As palavras de Jesus significam, pois, que maior é o número dos que são chamados à fé e ao batismo nesta vida, e menor é o número dos que possuirão a vida eterna no céu (dentre os batizados haverá ao menos um réprobo, simbolizado pelo homem que não tinha veste nupcial na parábola de Mateus 22,1-14 e que, por isto, foi excluído do banquete).

Após estas considerações, já estão dissipadas algumas dificuldades de interpretação da parábola dos operários. À última frase – “Eu sou bom” – é que se atribuirá importância preponderante na exegese. Além disto, dever-se-á atender aos episódios que precedem a parábola: em Mateus 19,16-26, por ocasião da história do jovem rico apegado aos seus haveres, Jesus incutira a necessidade da renúncia absoluta para que alguém O possa seguir; em resposta, Pedro, como que satisfeito consigo mesmo, lembrara que ele e seus condiscípulos tudo haviam abandonado; o Mestre propôs então a recompensa máxima tanto para Pedro como para os que lhe imitassem o exemplo (19,27-29). Depois destes episódios, os ouvintes de Jesus poderiam talvez crer que o Senhor viera a este mundo pregar o puro estoicismo, isto é, a necessidade de esforço ascético baseado tão somente na energia natural do homem, abstração feita da graça sobrenatural. Esta impressão equivaleria a desvirtuar totalmente a mensagem do Redentor. Foi justamente para corrigi-la que Jesus se pôs a contar a “desconcertante” parábola dos operários e do seu salário. Nesta, dois traços são dominantes:

1) Tudo que era de justiça foi cumprido pelo patrão: pagou um dinheiro àqueles que, por contrato, tinham direito a isto;

2) Além da justiça, e sem lesar a esta, manifestou-se a bondade, dom gratuito: àqueles com quem não tinha feito contrato nenhum, o patrão quis dar mais do que o que propriamente lhes tocaria.

E — note-se bem — as partes da bondade gratuita foram muito mais copiosas do que as da estrita justiça. Apenas com uma turma, isto é, com os operários da primeira hora, o patrão usou de justiça estrita; com quatro outras turmas usou de pura bondade.

É justamente este predomínio “escandaloso” da Bondade (Misericórdia) sobre a Justiça que a parábola quer acentuar, inculcando que Deus trata de tal modo todo indivíduo humano (o tratamento aplicado à coletividade dos operários na parábola é, na realidade cotidiana, aplicado a cada individuo, cristão ou pagão, em particular); a Bondade de Deus antecipa e ultrapassa os direitos do homem; é ela quem a este dá a capacidade de merecer, e é ela quem recompensa as suas próprias obras no homem. Em outros termos: os esforços da alma virtuosa não são algo de absoluto, como poderiam crer os discípulos, mas são suscitados e sustentados pela graça de Deus. Anteriormente a esta, o homem não tem titulo de justiça que ele possa fazer valer perante Deus. Isto não quer dizer que os fiéis se devam desinteressar dos esforços pela sua santificação. Jesus e São Paulo inculcam repetidamente o dever que toca a todos, de lutar energicamente pela sua salvação (cf. Lucas 13,23-24; Mateus 7,13-14; 1Coríntios 9,24-27; Filipenses 3,7-14). Exerçam, portanto, o máximo zelo de que são capazes. Saibam, porém, que seu esforço nunca lhes poderá ser motivo de vã glória, pois é Deus quem lhes dá a graça de se esforçarem; e, a graça, Ele a dá a todos indistintamente, desejando que todos sejam salvos (cf. 1Timóteo 2,4).

Portanto, a frase final da parábola “Eu sou bom!” (ou “Deus é bom!”, pois o patrão representa a Deus, na narrativa) é a palavra-chave da interpretação. As reclamações dos operários ou (sem metáfora) das crianças que não entendem os procedimentos de Deus (sempre Bom), se devem não à pretensa injustiça de Deus, mas à mesquinhez do homem (o “olhar malvado” do versículo 15 significa “o modo de ver errôneo”); acontece não raro que, justamente quando Deus mais bondade exerce, o homem menos compreende e mais tende a corrigir a Deus.

Costumam-se fazer da parábola algumas aplicações particulares. Estas serão lícitas na medida em que se derivarem da lição acima exposta. Assim, diz-se que Jesus se quis referir à vocação dos judeus (operários da primeira hora) e gentios (operários posteriores) ao Reino de Deus. Esta aplicação tem cabimento enquanto na vocação de judeus e gentios se manifesta a liberalidade de Deus para com uns (pagãos), sem derrogar à justiça para com outros (judeus). Quanto às horas sucessivas em que os operários são chamados à vinha, não se poderia dizer que significam as idades do mundo, nem as idades em que um indivíduo possa ser chamado à fé; as diversas horas são mencionadas apenas para ilustrar quanto Deus ultrapassa os estritos direitos (ou méritos) do homem.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 1 – jan/1958
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