“Nosso Senhor nos dará a sua paz quando nos humilharmos e nos dispusermos a viver mansamente na guerra”
1 É preciso em tudo e por toda parte viver pacificamente
É preciso em tudo e por toda parte viver pacificamente. Se nos vem algum sofrimento interior ou exterior, é preciso que o recebamos tranquilamente. Se alguma alegria, é preciso também recebê-la tranquilamente, sem regozijos exagerados. Se é preciso evitar o mal, que o evitemos tranquilamente, sem nos perturbarmos; porque de outro, ao fugirmos, poderíamos cair e dar ao inimigo a oportunidade de nos matar. Se é preciso fazer alguma boa ação, necessário é também que se faça sossegadamente; senão cometeríamos muitas faltas, apressando-nos. Até a própria penitência é preciso que a façamos sossegadamente. Eis que a minha amaríssima amargura está em paz, dizia o Penitente.
Façamos três coisas e teremos a paz: tenhamos uma intenção bem pura de querer em todas as coisas a honra de Deus e a Sua glória, façamos o pouco que pudermos para esse fim, conforme o parecer do nosso pai espiritual, e deixemos a Deus o mais. Quem tem a Deus por objeto de suas intenções e faz o que pode, por que se há de atormentar? Por que há de se perturbar? Que tem a temer? Não, não, Deus não é tão terrível para os que Ele ama; contenta-se com pouco, porque sabe muito bem que não temos muito. E haveis de saber, que Nosso Senhor é por toda parte o Senhor absoluto, tudo conserva em paz. Verdade é, todavia, que antes de estabelecer a paz em algum lugar, ateia aí a guerra, separando o coração e a alma das suas mais caras, familiares e ordinárias feições, como são o excessivo amor de si mesmo, a confiança em si mesmo, a complacência em si mesmo e quejandas afeições.
Ora, quando Nosso Senhor nos separa paixões tão mimosas e favoritas, parece esfolar ao vivo o coração e sente-se com isso grande amargura; quase que não se pode a gente impedir de debater-se de toda a alma, porque é sensível essa separação. Mas todo esse debater-se do espírito não é, no entanto, falta de paz, quando, por fim, vergados ao peso dessa aflição, nem por isso deixamos de ter a nossa vontade resignada na de Nosso Senhor e a mantemos aí, cravada nesse divino beneplácito, e tampouco deixamos os nossos encargos e o exercício deles, executando-os animosamente. A fonte para a paz interior é Cristo, e é necessária a renúncia para se manter a pureza de intenção que só procura a honra e a glória de Deus.
2 O Desprezo das Críticas e das Calúnias
Do orgulho procede ainda a perturbação que nos causam as críticas e as calúnias. As críticas? Quando concebemos prudentemente um projeto, e de mais a mais, confiamos a Deus a sua efetivação, não nos impressionemos com os juízos, mais ou menos favoráveias, que possam fazer ao nosso respeito. Nada se faz neste mundo que não seja contradito pelos espíritos mesquinhos e descontentes, e de todas as coisas, por melhores que sejam, tiram-se inconvenientes, quando se quer espicaçar. Vão falar? Que dirão? Tudo isso nada é para os que só vêem o mundo para desprezá-lo, e só olham o tempo para visar à eternidade. As calúnias? Não nos preocupemos com as suas mordeduras. O melhor remédio para esse mal é a dissimulação. Em tais ocasiões, a dissimulação cura mais mal em uma hora que o ressentimento em um ano. E é ainda o desprezo. Sobretudo, não recorrais aos processos para reparar o prejuízo feito à vossa reputação, pois este só serviria para multiplicar o mal, em vez de sufocá-lo. Nunca uma mulher que tem o verdadeiro fundamento da honra pode perdê-la; ninguém acredita nessas difamações ignóbeis nem nesses concionistas: tem-nos na conta de malvados. O melhor meio para reparar as ruínas que fazem é desprezar as suas línguas que são os seus instrumentos, e responder-lhes com uma santa modéstia e compaixão.
3 O Desapego dos Bens deste Mundo:
Vosso coração, deve ser assim, aberto só para o céu e impenetrável às riquezas e coisas caducas; se possuis delas, tende o vosso coração isento de suas afeições; que ele fique sempre por cima, e que em meio às riquezas seja sem riquezas e senhor das riquezas. Não, não ponhais esse espírito celeste dentro dos bens terrestres; fazei que lhes seja ele sempre superior, sobre eles, não neles. Devemos é certo, ter cuidado com os bens que estão em nossa posse, um cuidado ao mesmo tempo diligente e tranquilo. As posses que temos não são nossas: Deus no-las deu para a cultivarmos e quer que as tornemos frutuosas e úteis, e lhe fazemos, portanto, agradável serviço cuidando delas. Mas deve ser um cuidado maior e mais sólido que os mundanos têm dos seus bens, porque eles só se atarefam deles por amor de si mesmos, e nós devemos trabalhar pelo amor de Deus: ora, como o amor de si mesmo é um amor violento, turbulento, sôfrego, também o cuidado inspirado nele é cheio de agitação, de amargura e inquietação; e como o amor de Deus é doce, sossegado e tranquilo, também o cuidado que Dele procede, embora seja pelos bens deste mundo, é amável, doce e gracioso”.
Mas como reconhecer que o nosso coração não está comprometido com as riquezas? Pela maneira pela qual aceitamos ser privados delas. Quando vos sobrevierem inconvenientes que vos empobreçam, de muito ou de pouco, como fazem as tempestades, os incêndios, as inundações, as esterilidades, os roubos, os processos, é a ocasião verdadeira de praticar a pobreza, recebendo com doçura essas diminuições de faculdades, e acomodando-se paciente e constantemente a esse empobrecimento. Esaú se apresenta ao seu pai com as mãos todas de pêlo, e Jacó faz outro tanto; mas como estava nas mãos de Jacó não se agarrava à sua pele, mas às suas luvas, podiam retirar-lhe o pêlo sem o machucar ou esfolar: ao contrário, porque o pêlo que estava nas mãos de Esaú estava preso na pele, que ele tinha toda peluda por sua natureza, quem lhe quisesse arrancar o seu pelo lhe causaria muita dor: ele teria gritado bastante, ter-se-ia esquentado bastante na sua defesa. Quando temos uma afeição demasiado viva aos nossos meios, se a tempestade, se o ladrão, se o rábula nos arranca alguma parte deles, que lamentações, que perturbação, que impaciências isso nos causa! Mas quando os nossos bens se prendem só ao cuidado que Deus quer que tenhamos deles e não ao nosso coração, se no-los arrancam, não perderemos por isso o senso e a serenidade. E a diferença entre os animais e os homens quanto às suas roupas: porque a vestimenta dos animais está pegada à sua carne, e a dos homens lhe está apenas aplicada, de modo que a possam pôr e tirar quando querem”.
São Francisco de Sales se conformava pacientemente com os empobrecimentos que lhe sobrevinham. Citaremos só um exemplo: A princesa Cristina de França lhe havia ofertado um anel ornado de um diamante de grande valor. Ora, andando a cavalo pelas altas montanhas dos Alpes, ele tirou a luva e deixou escapar o anel do seu dedo. Só na primeira parada é que ele notou que não tinha mais o seu anel. Longe de se inquietar, bendisse a Deus por isso, e por dois motivos, dizia ele: “o primeiro, por não ter motivo algum de se comprazer numa jóia tão preciosa ou de se lhe apegar com excessiva afeição; a segunda, porque a Providência talvez fizesse com ele a fortuna de algum pobre que o encontrasse, e que poderia viver folgadamente o resto dos seus dias, no que estaria mais bem empregado que para ele”. É que tivera sempre o cuidado de conservar o coração desapegado das riquezas. Os proventos do seu bispado estavam longe de serem consideráveis, e ele escrevia à madre de Chantal; aos 28 de fevereiro de 1620: “Confesso, e é a verdade, que não estou lá muito ricamente acomodado de bens; mas estou sem necessidade, e não tenho nem ocasião nem inclinação alguma de fazer nada de indigno da minha condição e profissão para deles me prover. Tateio-me no coração para ver se a velhice me leva ao humor avarento; e vejo, ao contrário, que ela me liberta do meu cuidado, e me faz negligenciar de todo o meu coração e de toda a minha alma qualquer mesquinhez, previdência mundana e desconfiança de precisar”.
Como, com tamanho desapego, poderia o Santo Bispo deixar de desfrutar a doçura da paz?
São Francisco de Sales, Rogai por nós!
Adaptação do livro: As fontes da Alegria – SALES, São Francisco. A Paz Interior – A Luta Contra as Tendências Depravadas da nossa Natureza – Tradução: Cônego F. Vidal. Edições Loyola São Paulo -1978. pgs.191 -222