Mt 16,13: “Chegando Jesus à região de Cesaréia de Felipe, interrogou os seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do homem?'”
As circunstâncias onde se deu a cena aqui descrita por São Mateus devem ser complementadas com os dados fornecidos também por São Marcos (8,27) e São Lucas (9,18): Jesus e os apóstolos partiram da região de Betsaida Julia e se dirigiram para o norte pela margem oriental do rio Jordão. Deixaram para trás o lago Merom (ou Huleh) e chegaram nas imediações de Cesaréia de Filipe, a cerca de 50 km do lago de Genesaré.
Antigamente, a cidade de Cesaréia chamava-se Paneas, em honra do deus Pan, a quem era oferecido culto, desde o séc. III aC, em uma gruta próxima do lugar de uma das nascentes do rio Jordão. Quando Herodes, o Grande, recebeu esta região de Augusto, construiu ali um templo de mármore, junto ao Paneion ou gruta sagrada, consagrado ao culto do Imperador. Após a morte de Herodes, toda esta região, pertencente à Galaunítide, passou a ser governada pelo tetrarca Filipe que, segundo o testemunho de Flávio Josefo (Ant. XVIII,2,1), embelezou e desenvolveu muito a cidade, dando-lhe o nome de “Cesaréia”, para bajular o imperador, e acrescentando-lhe ainda seu próprio nome, para distingüi-la de uma outra Cesaréia localizada na Palestina, junto à costa do mar Mediterrâneo. De tal cidade não restam mais hoje além de ruínas e uma pobre aldeia, chamada Banias, recordando o antigo nome de Paneas. Quase toda a população daquelas regiões era pagã.
A pergunta dirigida por Jesus a seus discípulos ocorre, segundo São Mateus, no caminho; segundo São Lucas, Jesus estava orando juntamente com eles. Segundo São Mateus, tinham chegado à região da Cesaréia; estavam, pois, caminhando próximos da cidade quando, em certo momento em que Jesus estava orando com seus apóstolos, dirigiu-lhes a pergunta. Esta oração de Cristo – que São Lucas só aponta quando se segue algum acontecimento importante – nos revela a importância que o próprio Jesus dava àquele diálogo com os apóstolos, especialmente com São Pedro. É claro que o que se pretendia com esta pergunta era reafirmar a fé de seus apóstolos na sua dignidade messiânica e divina, bem como oferecer-lhes o primeiro esboço da fundação de seu novo reino: a Igreja.
“O Filho do homem” é o modo como chama a si mesmo, como constata-se em outras ocasiões.
Mt 16,14: “Responderam-lhe: ‘Uns dizem: João Batista; outros: Elias; e outros: Jeremias, ou um dos profetas.'”
Uns – como Herodes e talvez alguns outros – acreditavam que Jesus era [João] Batista ressuscitado; outros, baseados na profecia de Malaquias (4,5), acreditavam que era Elias, que deveria vir antes do Messias para preparar a sua chegada; outros diziam que era Jeremias (como se narra no segundo livro dos Macabeus (2,1-12), este profeta havia escondido, no tempo do desterro, o tabernáculo, a arca e o altar do incenso de maneira que muitos diziam que ele voltaria antes da chegada do Messias para descobrir o local onde se encontravam estes tesouros escondidos); por fim, alguns se contentavam em dizer que Jesus era um de tantos profetas.
Certamente, os mesmos evangelistas nos indica que alguns chegaram a questionar se Jesus seria efetivamente o Filho de Davi (12,13), bem como quiseram proclamá-lo rei (Jo 6,14); porém, ao que parece, estes movimentos foram passageiros, pois não deixaram marcas na opinião das pessoas. O povo em geral, como se vê por este testemunho dos apóstolos, não acreditava que Jesus fosse o Messias; esperava, segundo as falsas concepções ensinadas dos doutores [da Lei], um messias temporal, glorioso e triunfante sobre os seus inimigos políticos; assim, viam que a vida e a doutrina de Jesus não possuíam esse ideal que fôra formado.
Mt 16,15-16: “Perguntou-lhes ele: ‘E vós, quem dizeis que eu sou?’. Simão Pedro respondeu: ‘Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.'”
A pergunta de Cristo é agora mais comprometedora. É dirigida aos mesmos apóstolos para saber o que eles pensam a seu respeito. Ninguém responde, apenas São Pedro… A resposta nos outros evangelhos sinóticos é mais simples: “Tu és o Messias” (Mc 8,29), “Tu és o Messias de Deus” (Lc 9,20). É certo que em São Marcos e em São Lucas somente se expressa a messiandade de Jesus, porém, em São Mateus, temos duas afirmações: “Tu és o Cristo [=Messias], o Filho do Deus vivo”. Esta fórmula poderia ser equivalente à dos outros [dois] evangelistas, de maneira que inclua em si somente a messiandade, expressada por dois termos equivalentes? Ou, além da messiandade, devemos ver expressa também a filiação natural de Cristo?
A maior parte dos racionalistas e alguns poucos católicos crêem que os dois títulos dados por São Pedro a Cristo encerram o mesmo conceito: a messiandade. Ao contrário, os Santos Padres em geral, particularmente [São João] Crisóstomo, São Jerônimo, São Leão Magno e a esmagadora maioria dos comentaristas católicos, tanto antigos como modernos, sustenta que na confissão de São Pedro se encerram sua messiandade e sua divindade. Efetivamente, o título “Filho de Deus” não é em São Mateus, nem nos outros evangelistas, sinônimo de “Messias”. Ao contrário, percebemos que é usado para expressar uma dignidade transcedente, equiparável à do Pai (11,25s), estando acima das coisas mais santas (o templo, o sábado…), bem como dos homens mais dignos e privilegiados, e dos próprios anjos!
O mesmo contexto nos leva a essa mesma conclusão. Jesus atribui essa confissão tão explícita de Pedro a uma revelação particular de seu Pai celestial. Por outro lado, até mesmo os inimigos de Cristo entenderam que por seu modo de falar se fazia filho de Deus e, por isso, quiseram condená-lo à morte por blasfêmia (Jo 5,18). Novamente o reprovam como blasfemo em outra ocasião porque, sendo homem, se faz como Deus (Jo 10,33). Finalmente, é julgado como blasfemo, réu de morte por dizer-se Cristo, o Filho de Deus; é a mesma fórmula empregada por São Pedro em sua confissão. Portanto, se foi isso o que os inimigos de Jesus entenderam ao interpretarem suas palavras, presume-se que os seus apóstolos – que conviviam com ele desde os primórdios de sua vida pública e que presenciaram tantos milagres – entenderam muito melhor o que Jesus queria dizer quando chamava a si mesmo de “o Filho”.
Naturalmente, esta fé, por auxílio interno da graça ou pela revelação do Pai, foi sedimentando-se na alma dos apóstolos à medida que iam escutando os ensinamentos do Mestre e presenciando o poder absoluto que mostrava sobre todas as coisas, inclusive sobre os demônios.
Mt 16,17: “Respondeu-lhe Jesus: ‘Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, pois não foi carne e sangue quem to revelou, mas meu Pai que está nos céus.'”
Jesus cumprimenta São Pedro por esta decidida confissão e, para acentuar mais as palavras que seguem, lhe chama por seu nome próprio, Simão, filho de Jonas [=Barjonas], para aludir à troca de nome que havia prometido em seu primeiro contato (Jo 1,42). Porém, o adverte que aquela confissão não se devia ao seu próprio esforço, “à carne e ao sangue” (=expressão bíblica para designar a natureza humana, mortal ou ao homem, frágil por sua natureza, impotente para compreender as coisas divinas), mas à graça concedida pelo Pai, “já que ninguém conhece o Filho senão o Pai” (11,27).
Não é necessário admitir que precisamente naquele momento recebera São Pedro esta revelação, mas sim – como acabamos de insinuar – que poderia ser fruto de todo o ministério de Cristo, que prepara o ânimo do apóstolo para receber aquela graça.
Mt 16,18: “‘E também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.'”
Às palavras de gratidão pela confissão de seu discípulo, Jesus acrescentará, com expressões solenes, o cumprimento da promessa feita durante a primeira vez que se encontraram. Na língua aramaica em que Cristo pronunciou estas palavras, não há qualquer diferença entre o nome próprio “Pedro” e o [nome] comum “pedra”. Ambos se espressam com a mesma palavra, “kephas”, e têm o mesmo significado, “rocha”. É como se dissesse: “Tu és Rocha e sobre esta rocha edificarei a minha Igreja”. Esta metáfora de rocha e fundamento deve ter sido sugerida pelo local onde era possível contemplar aquele templo de mármore pagão, construído sobre rocha duríssima.
A palavra “Igreja” não é encontrada nos demais evangelhos; somente é empregada por São Mateus aqui e, pouco adiante, em 18,17. Na versão grega do Antigo Testamento, chamada de Septuaginta, significa a congregação dos judeus, enquanto formavam o povo de Deus. Cristo quis significar com este nome a congregação daqueles que formam o verdadeiro povo de Deus, isto é, que formam o reino messiânico, abraçando por fé a sua doutrina.
As expressões metafóricas de Cristo tinham um significado fácil de se compreender. Ele é o arquiteto. O edifício que edifica é a Igreja. A base ou fundamento firme e estável, que dará consistência e duração ao edifício é Pedro (cf. 7,24). E, como se trata de um edifício não físico e material, mas sim moral, isto é, de uma sociedade formada por todos os fiéis, sendo portanto necessária uma autoridade suprema, a que todos obedeçam, para dar estabilidade e firmeza a esta sociedade, é simplesmente prometida a São Pedro a autoridade suprema sobre a Igreja, ou, o que dá no mesmo, o primado de jurisdição. As metáforas [das “portas”, das “chaves do reino” etc.] que seguem, põem em maior relevo este pensamento.
As “portas” na Sagrada Escritura significam, às vezes, uma fortaleza ou também uma cidade defendida por muralhas (cf. Gên 21,17; 24,60 etc.). Em geral, nas literaturas orientais, é sinônimo do supremo poder em alguma cidade ou estado. O “inferno” ou “sheol” era propriamente a morada dos mortos, que se concebia como uma prisão dotada de fortíssimas portas (cf. Is 38,10); depois, passou a significar o local onde se encontram os repróbos juntamente com os demônios, ou, o que dá no mesmo, o reino do diabo. Conseqüentemente, as “portas do inferno” é uma circunlocução poética que, às vezes, significa o reino ou o poder da morte, e outras vezes – como aqui – o poder infernal. O reino de Satanás estará sempre em luta contra o reino de Cristo – a Igreja – porém nunca o vencerá. É prometida à Igreja, assim, a indefectibilidade. E, como se trata de uma sociedade essencialmente doutrinal, sua indefectibilidade carrega consigo a infalibilidade, já que errar quando se pretende ensinar em nome de Deus equivale a ser derrotado pelo espírito da mentira.
Mt 16,19: “‘Eu te darei as chaves do reino dos céus; tudo o que ligares na terra, será ligado nos céus; e tudo o que desligares na terra, será desligado nos céus.'”
As “chaves do reino”: as chaves, entre os antigos, eram símbolo de poder. A quem se entregavam as chaves de uma cidade, se lhe dava o poder de governá-la.
Das a São Pedro as chaves do reino dos céus, isto é, da Igreja, é conferir-lhe o supremo poder de governá-la. “O que ligares”: entre os doutores da Lei, “desligar” era o mesmo que livrar alguém de uma obrigação ou de declarar lícita alguma coisa; “atar”, portanto, significaria o contrário. Estes termos jurídicos eram aplicados no terreno disciplinar para condenar alguém à expulsão da sinagoga (excomunhão) ou absolvê-lo; e também para decisões de ordem doutrinal, com o sentido de proibir ou permitir. Pedro, como administrador da casa de Deus, exercitará o poder disciplinar de admitir ou excluirr da Igreja e de tomar as decisões oportunas em matéria de doutrina dogmática ou moral, decisões que serão ratificadas por Deus no céu.
Estas promessas são feitas não apenas à pessoa de Pedro, mas também aos seus sucessores, já que a Igreja deverá durar até o fim do mundo [28,20].
APÊNDICE: A AUTENTICIDADE DE MT 16,13-20
A interpretação que acabamos de expor desta importante seção é a única aceitável sob qualquer aspecto que se considere.
As antigas interpretações protestantes hoje estão condenadas ao esquecimento – e com razão – pois violentam as palavras do texto e se fundam em preconceitos dogmáticos sobre a Igreja Católica. Porém, já que a interpretação católica se impõe a todo espírito que com serenidade analise o texto, os racionalistas e protestantes de nossos dias tentam encontrar outra maneira de combater a doutrina ensinada nestes versículos: dizem que se trata de uma interpolação feita mais tarde no texto evangélico.
Alguns afirmam que os versículos 17-19 foram interpolados no evangelho pela Igreja romano ao final do séc. II, ou já entre os anos 110-120, ou também no tempo de Adriano (117-138). Harnack crê que foram interpoladas apenas as palavras “e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”, de forma que o texto original diria: “e as portas do inferno não te vencerão”; assim, por tais palavras, era prometida a imortalidade a Pedro. Estas afirmações estão contra todos os códices e versões antiquíssimas dos autores mais antigos da cristandade, que unânimemente lêem o texto como sempre o leu a Igreja. Finalmente, o fortíssimo colorido semítico que possuem estes versículos descaracterizam uma origem romana, como afirmam estes críticos.
Outros autores não têm dificuldades em admitir que efetivamente estas palavras foram escritas por São Mateus, porém, afirmam que não foram ditas por Cristo. Na verdade, elas refletiriam o conceito de que a Igreja primitiva de Jerusalém se formou a partir de São Pedro, bem como sua relação com ela. Com efeito, Pedro – que foi o primeiro a ver Cristo ressuscitado (1Cor 15,5) e o primeiro a pregar a ressurreição (At 2,14ss) – teria, desde o princípio, um lugar privilegiado na mente dos primeiros cristãos, sendo considerado chefe de toda a comunidade. Esta concepção teria sido formada por São Mateus, colocando na boca de Cristo as palavras dirigidas a São Pedro nestes versículos.
Ora, esta teoria, como se vê, torna duvidosa a probidade e a fidelidade histórica de São Mateus, e se baseia em princípios apriorísticos e em hipóteses arbitrárias como é, principalmente, supor sem qualquer motivo uma evolução dos atos e palavras de Cristo ao final de alguns anos, quando ainda viviam testemunhas oculares dos acontecimentos. Supõe ainda, falsamente, que a origem e o progresso da religião e doutrina cristã estava ao arbítrio da fantasia popular e, finalmente, desconsiderando o verdadeiro conceito e valor da tradição apostólica.
Estudo baseado em Mt 16,13-20; v.tb. Mc 8,27-30; Lc 9,18-22