A questão Harry Potter

Com a recente estréia do filme de Harry Potter, baseado no primeiro livro da série que está sendo escrita pela inglesa J. K. Rowling, renovou-se a questão que provocou discussões frementes quando do lançamento dos livros: será que as aventuras do pequeno mago Harry Potter seriam apenas livros infantis inocentes, ou perigosos incentivos ao ocultismo?

A pergunta realmente faz sentido. O personagem título da série é um menino feiticeiro, que estuda em um colégio para bruxos e aprende artes ocultas. Seria este apenas uma espécie de “panorama de fundo” sobre o qual se desenvolve uma história inocente, ou a feitiçaria seria apresentada de maneira tão atraente que seria difícil dominar o interesse pelo oculto? A maior parte das críticas a Harry Potter versava simplesmente sobre esta questão, bastante óbvia. Ao sabermos da história de um menino feiticeiro, a primeira impressão é que realmente o ponto fulcral da questão da adequação da leitura destas aventuras seria a apresentação da feitiçaria e do ocultismo que estaria presente nelas.

Os críticos oriundos de meios influenciados pelo protestantismo puritano americano, com sua tendência ao maniqueísmo, tendem a negar valor a qualquer obra que apresente elementos mágicos e fabulosos. As tendências a negar os tons e cinza, vendo tudo como absolutamente preto ou absolutamente branco, e a condenar o conjunto de uma obra pela mera presença de elementos fabulosos fazem com que estes críticos neguem qualquer valor não só às histórias de Harry Potter como aos magistrais livros de J. R. Tolkien e C. S. Lewis, com suas ambientações fabulosas e seus personagens versados em artes mágicas. Influenciados por tais noções, muitos destes críticos deram foros de verdade a uma “entrevista” apócrifa com a editora, publicada em revista eletrônica satírica, em que ela supostamente proferiria as maiores blasfêmias e afirmaria com todas as letras a malignidade de seus livros.

Por outro lado, os defensores de Harry Potter salientam os elementos positivos dos livros: a luta do bem contra o mal, a condenação da inveja, a ausência de apelos sensuais, etc., considerando a ambientação “mágica” como apenas um elemento pitoresco que atrai e mantém o interesse das crianças.

Mantive-me alheio aos primeiros debates, por ocasião do lançamento dos livros, por uma razão bastante simples: não os havia lido. Quando agora, porém, renovaram-se os ânimos bélicos de lado a lado, decidi lê-los para poder emitir uma opinião abalizada. Esta ausência do primeiro debate, porém, acabou por ser-me de valia; pude, sem entrar na questão, ler vários comentários diferentes, entrevistas com a escritora, etc., ajudando-me a formar uma noção geral do que encontraria depois ao ler os livros. Algo que muito me impressionou foi a declaração da escritora de que seu objetivo era levar, gradual e imperceptivelmente, os seus pequenos leitores a abraçar o prazer de ler. Para este fim, cada livro da série de sete (já foram publicados quatro, em tradução primorosa de Lia Wyler) seria maior do que o outro, de forma a que os leitores começassem com um livro curto e fossem levados a lerem livros cada vez maiores.

Já li os dois primeiros livros por inteiro. A história do primeiro é bastante simples: o pequeno Harry Potter, único sobrevivente de um ataque de um feiticeiro mau a seus pais bruxos, é deixado com um ano de idade na porta da casa de seus tios, que são “trouxas” (termo usado nos livros para referir-se aos não-bruxos). Eles o criam de maneira cruel, e não revelam a ele que seus pais eram bruxos. Harry Potter é, neste momento, uma versão masculina e infantil de Cinderela. Às vésperas de seu undécimo aniversário, surge então seu “príncipe encantado”: ele é convidado, por cartas que chegam aos montes a todo e qualquer lugar onde seus tios o levem, a matricular-se na escola para bruxos Hogwarts (“verrugas de porco”), espécie de versão mágica de um internato inglês. Levado por um empregado da escola para comprar seu material (caldeirões, uma varinha de condão, etc.), ele faz seus primeiros contatos com o mundo da bruxaria, e descobre ser um personagem famoso. O fato de haver sobrevivido ao ataque do temível vilão Valdemort, que matara seus pais, o tornara famoso e admirado por todos os bruxos e bruxas.

Na escola, ele faz amigos e descobre que um professor estaria procurando roubar a pedra filosofal (guardada, entre outras coisas, por um cão de três cabeças como o que guardava a entrada do Inferno na mitologia grega), que traria de volta os poderes de Valdemort, transformado em uma espécie de fantasma quando fracassara em matá-lo. Com a ajuda de seus amigos, Harry Potter frustra os planos do vilão, na verdade outro professor. O diretor a escola, então, diz a ele que foi salvo da morte no primeiro ataque do vilão pelo amor de sua mãe, que morrera no lugar dele, e este mesmo amor possibilitara que ele resistisse aos ataques do professor-“cavalo”-de-Valdemort.

A história parece-se com muitas outras; há um toque de Cinderela, um pouco de Apanhador no Campo de Centeio, um pouco, em suma, de cada clássico infanto-juvenil. Impressionou-me, porém, um aspecto: a progressividade, a mesma técnica que levou a escritora a aumentar o tamanho dos livros. No princípio, Harry é um menino normal o suficiente para que qualquer criança ou pré-adolescente se identifique com ele. À medida que avançamos no livro, porém, percebemos um lento e progressivo crescendo de situações de tensão em que escolhas morais devem ser feitas. Estas escolhas, porém, não trazem angústia, não trazem dúvidas para o personagem. Ele mente para safar-se de uma situação perigosa no fim do primeiro livro, e o diretor da escola depois o congratula por sua boa atuação. A moral de Harry Potter não é negativa, é inexistente, pragmática, situacional.

No segundo livro, Harry é libertado da casa de seus tios “trouxas”, onde passava férias de pesadelo, por seus amigos da escola, que roubaram um carro enfeitiçado pertencente ao pai deles, encarregado pelo Ministério da Magia de impedir o enfeitiçamento de carros e outros utensílios de “trouxas”. Aparentemente, nenhum de seus colegas havia escrito para ele. Na verdade, um elfo escravo havia surrupiado toda a correspondência para que ele não voltasse à escola. Sua volta é realmente difícil. Ele e seus amigos não conseguem alcançar o trem encantado que os levaria, e vão, contrariamente às ordens recebidas, voando no carro encantado. Na escola, então, surge uma crise: animais de estimação e alunos são misteriosamente atacados e postos em coma. Harry é tido como suspeito, por ter o dom raro de conversar com serpentes. Um novo professor, verdadeiro poço de vaidades, substitui o professor maligno que havia sido derrotado por Harry no livro anterior.

Com a ajuda de seus amigos, e passando por circunstâncias especialmente asquerosas (como um banquete de fantasmas em que é servida carne podre fervilhando de vermes) e desobedecendo a todas as normas da escola (entre outras coisas, eles roubam utensílios mágicos e se fazem passar por outros alunos, drogando-os e tomando suas aparências), Harry consegue descobrir a Câmara Secreta que dá nome ao livro, onde está escondido um monstro dominado por uma versão mais jovem de seu inimigo. O professor vaidoso revela-se uma fraude, e Harry consegue vencer o monstro.

O ambiente de feiticeiros evidentemente provoca atração em mentes juvenis, mas não é tão mau quanto o pintam. Impressiona, porém, a familiaridade (inicialmente “engraçada”, passando a algo assustadora) com a feiúra e a crueldade gratuita e a amoralidade reinante nos ambientes do livro; detalhes como pacotes de doces “de todos os sabores” (que incluem cera de ouvido, vômito, etc. no fim do primeiro livro, enquanto no começo são, na pior das hipóteses, sabor couve-de-bruxelas…), mentirinhas “inocentes” a que cada vez mais facilmente se recorre, terrores e feiúras sempre crescentes… Tudo isso causou-me forte impressão. Esta progressividade, este crescendo de amoralidade e feiúra parece ser feito sob medida para que o leitor se veja um pouco como na situação de um sapo (personagem ubíquo na história, aliás; chocolates em forma de sapo são comuns no livro) na panela: se jogarmos um sapo em uma panela de água fervendo ele pula fora, mas se a água for fria e progressivamente for esquentada até a fervura ele morre cozido sem perceber.

Comentei esta impressão com um amigo, que já leu os quatro livros, e ele disse que eu tinha razão. Correndo à estante, ele tomou o terceiro volume e me mostrou um detalhe, que por ora eu não saberia contextualizar melhor: Harry Potter, neste volume, faz um juramento solene de “não fazer nada de bom”.

Não posso, porém, julgar os livros subseqüentes; ainda não os li. Sei, porém, que uma criança ou pré-adolescente provavelmente ficará muito entusiasmado ao ler o primeiro volume (divertido e bem escrito, despertando real interesse e curiosidade em saber o que vem a seguir), e quererá ler o segundo. O primeiro passa de uma amoralidade em que não há dilemas morais a resolver a uma amoralidade em que a mentira é uma saída perfeitamente aceitável em uma situação difícil. O segundo apresenta um progressivo mergulho em situações de feiúra e terror, além de um recurso sempre crescente a meios amorais (mentiras, fingimentos, etc.), parecendo considerar como premissa evidente que os fins justificam sempre os meios. Temo que este processo, conforme afirmou meu amigo, continue.

Isto não significa que os livros ou ao menos os dois primeiros volumes, que já li sejam obras malignas; alguém que tenha uma formação moral bem feita não se deixará levar tão facilmente a aceitar uma amoralidade pragmática e situacional. Neste volume não há nada que chegue aos pés de qualquer novela brasileira, e quem está acostumado com as carradas de mentiras, amoralidades e apelos sensuais destas novelas achará certamente o livros de uma inocência ímpar. Não posso, entretanto, diante desta progressiva amoralização feita de forma tão magistral, afirmar que sejam inócuos; outros os seguem, e neles o processo pode aprofundar-se segundo meu amigo que já os leu, isso é inegável. Temo sinceramente pelo que venha a conter o ainda não escrito sétimo volume…

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