1.3.3) Da Pena de Morte e as Demais Penalidades
Como apêndice, queremos aduzir e tentar responder a uma invectiva feita por alguns ilustres. Tenta certa grei de teólogos fazer reduzir, a licitude da pena de morte na Idade Média, ao fato de neste período inexistir outras formas de penalidades, notadamente a do encarceramento. Como se não bastasse o lamentável desconhecimento no plano histórico este vem seguido, de confusa e inócua sofisticação no plano lógico. No mínimo, lacuna imperdoável de erudição.
A Idade Média conheceu outras formas de penalidades, inclusive a do encarceramento. Além disso, a pena de morte, como fartamente aludimos mais acima, é um Direito Natural do Estado. Por conseguinte, válido, ontem, hoje e sempre.
1.3.4.1) Da Mutilação
No direito medieval, a tentativa de suicídio, além de pecado mortal, era crime com sanções previstas. A parte existe e pertence ao todo. Com efeito, cada homem é parte da sociedade. Logo, cada homem, de certa forma, não se pertence, mas existe para a comunidade. Destarte, a pessoa quando tenta se matar, lesa a comunidade, atenta contra a justiça:
A parte, pelo que ela é, pertence ao todo. Ora, cada homem é parte da comunidade; o que ele é pertence a comunidade. Por isso, matando-se, comete injustiça contra a comunidade.[1]
No entanto, exatamente por isso – a saber – precisamente pelo homem pertencer à comunidade, os membros do seu corpo, de certo modo, também se ordenam para a comunidade. Da mesma forma que os membros de um corpo, ordenam-se à integridade da pessoa, assim, a pessoa mesma, se ordena para o bem da comunidade. Logo, se estes membros – os membros do corpo (braço, mãos, pernas, etc) passam a ser instrumentos de vícios – nocivos ao bem-comum – à autoridade, que representa a comunidade, será lícito mutilá-los:
Mas, todo homem é ordenado à comunidade como ao seu fim, como já foi elucidado. Poderá, então, acontecer que embora prejudique a todo o corpo, a ablação de um membro, se ordene, contudo ao bem da comunidade, enquanto é imposta em castigo, para coibir certos pecados. Por isso, assim como a autoridade pública pode privar alguém da vida, em razão de certas faltas maiores, assim tem igualmente o direito de amputar um membro, para punir faltas menos graves.[2]
1.3.4.2) Do Espancamento
Outra forma de penalidade vigente na Idade Média era o espancamento. A lógica era a mesma. O espancamento é, em relação a precedente, uma penalidade mais leve que deve ser imposta, por conseguinte, também para crimes mais leves: “Enquanto a mutilação priva o corpo de sua integridade, as pancadas causam apenas uma sensação de dor, o que é um dano menor.”[3] Tinha em vista, antes de tudo, disciplinar e corrigir, mais ainda do que punir ou castigar. Destacamos ainda que, “alguém só pune justamente a quem está sob sua jurisdição.”[4] Com efeito, o filho e o escravo que estão, respectivamente, sob guarda do pai e do patrão podem, quando houver justa causa, apanhar destes tendo em vista a sua melhor formação ou correção: “E uma vez que o filho está sujeito ao pai e o escravo ao senhor, o pai pode bater no filho, e o senhor, no escravo, em vista de os corrigir e formar.”[5]
1.3.4.3) Do Encarceramento
Finalmente, a pena pode se dar por encarceramento. De fato, enquanto a morte e a mutilação subtraem ao corpo a sua integridade substancial, as pancadas, por sua vez, lhe privam do prazer e do repouso que lhe são naturais. O encarceramento, ao contrário, lhe impede – mediante algemas e/ou cárcere – de exercer certos movimentos e isto ocorre, ou como punição por algum crime, ou por medida preventiva, no intento de se evitar alguma ação desordenada:
(…) O movimento e o uso dos membros, que ficarão impedidos pelas algemas, pelo cárcere ou qualquer outra forma de detenção. Por isso encarcerar ou deter alguém de qualquer modo, é ilícito, salvo em conformidade com a justiça, seja a título de castigo, seja por medida preventiva contra certos perigos.[6]
Houve sombras, mas, certamente as “fogueiras da inquisição” não iluminaram os céus da Europa… Muito mais sangrentas, as “inquisições” do crudelíssimo Calvino, dos sanguinários piratas protestantes que assombravam céus e mares! Houve Bispos e Inquisidores toscos e a civilização medieval, longe sempre esteve distante de ser a cristandade ideal. Enfim, quanta contingência já superada (a escravidão, a tortura, a mutilação) ou substituída, por formas mais avançadas de penalidade. No entanto, imutáveis permanecem os princípios: a pena de morte é um direito natural do Estado; o homem está ordenado ao corpo social; homem, sozinho, nenhures. Parece-nos razoável, o juízo de Frei Penido, a respeito da cristandade medieval. Arrola os seguintes comentários, o magistral do Dominicano:
A cristandade medieval está bem longe de ser a única realização possível desses princípios (os princípios cristãos), nem mesmo é a realização sem jaça deles. Afirmá-lo seria incidir em erro análogo ao liberalismo: querer transmutar uma situação contingente em regra absoluta. Na verdade, muito houve na cristandade medieval que lhe provinha das condições – nem sempre favoráveis – de lugar e tempo.[7]
Não nos esqueçamos, no entanto, de avaliarmos bem, a guilhotina assassina, no “século da razão”…. Aos historiadores os aprofundamentos e o dever de discernir, no seio dos acontecimentos, as luzes das trevas. Aos hereges, cabe antes dívida de gratidão para com os seus “algozes” inquisidores; não fossem eles, seriam esmagados sem julgamento pela multidão.
BIBLIOGRAFIA
DENZINGER, Enrique. El Magisterio de La Iglesia: Manual de los Simbolos, Definiciones y Declaraciones de la Iglesia en Materia de Fe y Costumbres. trad. Daniel Ruiz Bueno. Barcelona: Editorial Herder, 1963.
FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958.
_____. A Psicologia da Fé. 7ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1953.
_____. Noções de História da Filosofia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Pimenta de Mello, 1928.
PENIDO, Maurílio Teixeira Leite. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. 2ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1956.
PIEPER, Josep. Crer, Esperar e Amar. trad. Luiz Jean Lauand. Disponível em: <http://www.hottopos.com.br/notand4/crer.htm>. Acesso em: 18/02/2007.
PIO XII. Humani Generis. Disponível em: << http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/index_po.htm>>. Acesso em: 19/10/2007.
_____. Mystici Corporis Christi. Disponível em: << http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/index_po.htm >>. Acesso em 19/10/2007.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Contra os Gentios. Vol 1. Trad. D. Odilão Moura e Ludgero Jaspers. rev. Luis Alberto De Boni. Porto Alegre: EDPUCRS, 1996. v 2.
_____. Suma Teológica. trad. Aimom-Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001. v. V, VI.
[1] Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 64, 5, C.
[2] Idem. Ibidem. II-II, 65, 1, C.
[3] Idem. Ibidem. II-II, 65, 2, C.
[4] Idem. Ibidem.
[5] Idem. Ibidem.
[6] Idem. Ibidem. II-II, 65, 3, C.
[7] Maurílio Teixeira Leite Penido. Op. Cit. p. 320 e 321. (O parêntese é nosso).