A “Teoria do Resgate”

“Prefiro molestar com a verdade a ser complacente com adulações”. (Sêneca)

Em discussões envolvendo católicos e não-católicos é muito comum, por parte destes últimos, a seguinte acusação, mais ou menos neste modelo:

As verdades do Cristianismo Primitivo foram perdidas. A Igreja suprimiu boa parte dos artigos de fé. Ainda bem que Deus suscitou “fulano de tal” para resgatar as verdades originárias do Cristianismo.

O “fulano de tal”, aqui destacado, fica de acordo com o gosto do freguês. Para uns, o nome do nobre herói que “resgatou as verdades perdidas” é Lutero; para outros, é Calvino; outros afirmam que foi Allan Kardec; e outros mais afirmam que foi Ellen Gould White, Charles Russel, Joseph Smith, e a lista só cresce… Alguns, talvez com mais “sentimento de coletividade” atribuem o feito aos reformadores, aos protestantes, aos maçons, aos espíritas, aos iluminados da “Nova Era”, aos extraterrestres, etc.

A epopéia varia, mas, essencialmente, temos três afirmações:

1. No Cristianismo Primitivo, existiam as verdades A, B, C, D, e E.

2. A Igreja suprimiu as verdades B e C.

3. Fulano(s) veio e, finalmente, resgatou as verdades B e C.

A este argumento dos hereges chamaremos aqui de “Teoria do Resgate”, pois, sua base se assenta em um suposto resgate das “verdades perdidas” do Cristianismo.

Considerando as três declarações citadas acima, tentaremos analisar até que ponto elas são válidas. Para tanto, formularemos algumas indagações, bem como utilizaremos alguns exemplos para um maior esclarecimento.

Os gurus norte-americanos na técnica de administração de empresas afirmam que para conhecermos um fato podemos utilizar o método dos 5W/1H, o qual consiste em fazer, logo de início, algumas perguntas bem simples:

– What? – O quê?
– Where? – Onde?
– When? – Quando?
Who? – Quem?
Why? – Por quê?
How? – Como?

Para o fim a que nos propomos, estas questões básicas também ajudam. Observemos:

Afirmo que “B” era um artigo de fé do Cristianismo Primitivo, mas que foi perdido e depois resgatado. De cara, posso indagar:

– Que artigo de fé era este? Existiu mesmo? Quem (o que) atesta sua existência?

– Onde e quando se perdeu? Quem o suprimiu? Por que o suprimiu? Como isto foi feito?

– Onde e quando foi resgatado? Quem o recuperou? Por quê? Como isto foi feito?

Até hoje não encontramos quem pudesse responder as questões acima. E oportunidades é que não faltaram: listas de discussão (quando havia tempo para participar), sites e mais sites, palestras, livros, panfletos (um pior que o outro!), e tantos outros meios a utilizar o surrado argumento de que “B” existiu, perdeu-se e foi resgatado, mas sem mostrar o percurso de tão grandiosa aventura.

Na verdade, tudo uma grande omissão, um imenso hiato, em que a afirmação é jogada como se fosse uma evidência que valesse por si só, uma obviedade tão lógica que não precisaria de demonstração.

Há quem diga que aprendemos por analogia. Passemos, então, aos exemplos para facilitar nosso estudo.

Como foi dito antes, são diversos os grupos não-católicos que apelam para tal recurso (protestantes, maçons, espíritas, aquarianos…). No entanto, daremos preferência aos protestantes. E para que ninguém mande a acusação de que preferimos uma heresia a outra (?!), adiantamos que tal escolha se dá, simplesmente, porque é neste grupo que mais temos visto o mencionado sofisma. Se é porque os grupos protestantes predominam em número sobre as demais seitas, ou se é porque utilizam mais tal argumento, isto não vem ao caso. Prossigamos.

O primeiro exemplo é tirado de um texto adventista. Infelizmente, não dispomos mais do original, no entanto, eis em que consistia: as “verdades perdidas” do Cristianismo antigo não foram recuperadas apenas por Lutero, mas por vários outros reformadores, de forma gradativa. Assim, se os luteranos recuperaram a verdade da “Sola Scriptura” (Só a Bíblia), os batistas trouxeram de volta a verdade do batismo por imersão e de adultos, como única fórmula válida. O processo se encerra, como era de se esperar, com os Adventistas do Sétimo Dia, que resgataram as “verdades” da segunda vinda de Cristo à Terra para estabelecer Seu Reino, e o sábado como dia de descanso.

Esta é uma aplicação bem engenhosa da “Teoria do Resgate”. Primeiro, porque procura justificar a existência de vários e contraditórios grupos protestantes. Segundo, porque faz uma “média” com estes mesmos grupos ou, pelos menos, com os grupos anteriores ao surgimento dos adventistas (1831). Terceiro, porque o autor termina sugerindo que o “reestabelecimento total do Cristiaismo” se deu em sua religião.

No entanto, vamos analisar tais proposições, de acordo com o esquema sugerido logo no início do texto:

1. No Cristianismo Primitivo, existiam as verdades A, B, C, D, e E.

Lamentamos informar mas não é verdade que no período patrístico (Cristianismo Primitivo) existia o famigerado princípio da “Sola Scriptura”. Primeiro, porque não havia sequer um catálogo definido dos livros sagrados, já que a formação do Cânon Bíblico se deu apenas no século IV. Segundo, os testemunhos dos Pais da Igreja bem atestam a crença não só na Bíblia, mas também na Tradição, tal qual proclama a Igreja ainda hoje.

“Se os apóstolos nada tivessem deixado escrito, dever-se-ia igualmente seguir a ordem da Tradição por eles confiada aos dirigentes da Igreja. Esse método é seguido por muitos povos bárbaros que crêem em Cristo; sem papel e sem tinta, estes trazem inscrita em seus corações a salvação por obra do Espírito Santo; conservam fielmente a antiga Tradição” (Santo Ireneu, +220, Contra as Heresias, III,4,2).

“A crença uniformemente professada por diversas comunidades não deriva do erro, mas da legítima Tradição” (Tertuliano, +210).

2. A Igreja suprimiu as verdades B e C. / 3. Fulano(s) veio e, finalmente, resgatou as verdades B e C.

Se o princípio do “Sola Scriptura” não existia, não podia ser perdido e menos ainda recuperado!

Semelhante afirmação podemos dizer quanto ao “resgate” do batismo por imersão e de adultos como única fórmula válida. Ora, a Didaqué (Sec. I), primeiro catecismo da Igreja, mostra que tanto os batismos por imersão quanto por aspersão eram válidos. Da mesma forma, a Bíblia não proíbe o batismo de crianças. Se assim fosse, não teríamos o testemunho de Orígenes e tantos outros cristãos sobre tal prática.

A vinda de Cristo, por sua vez, não é para estabelecer um reino milenar na Terra (esta é a velha heresia milenarista, há muito condenada pela Igreja), mas para julgar os vivos e os mortos, tal qual consta no antigos credos, ainda hoje proclamados na Igreja.

A questão do sábado, verdadeiro cavalo-de-batalha dos adventistas e outros grupos, se resume em saber que Cristo ressuscitou no Domingo, e que o próprio São Lucas (Atos 20,7) mostra que já se celebrava a Santa Ceia no “primeiro dia da semana” (Domingo). Os testemunhos patrísticos, por sua vez, mostram que a minoria cristã que optava pelo sábado (tendência judaizante) foi gradativamente se rendendo a verdade do Domingo como o grande Dia do Senhor.

Óbvio que não é possível tratarmos de todas as questões protestantes neste texto, já que são milhares de grupos, com milhares de “verdades”. Outrossim, também não é este o objetivo desta exposição, mas sim demonstrar as falhas da “Teoria do Resgate”.

Enquanto isto, vejamos mais um exemplo: a Eucaristia.

Afirmam os não-católicos que a fração do pão não era como hoje ensina a Igreja Católica. O problema é que estes não-católicos sequer conseguem chegar a um consenso de como era então mais esta “verdade perdida”. De fato, Lutero acreditva na presença física de Cristo na Eucaristia; Calvino acreditava na presença espiritual de Cristo na Eucaristia; e Zwinglio afirmava ser apenas um “memorial”. Poucos anos depois da Reforma já se catalogava mais de 200 versões para a famosa frase de Cristo: “Isto é o meu corpo”.

Traduzindo em miúdos: ainda que a Igreja tivesse suprimido o real significado da fração do pão, seria impossível saber quem foi o herói (Lutero, Calvino, Zwinglio…) que procedeu a “operação resgate”, haja vista as tantas divergências existentes. Mas Deus não é o Deus da dúvida e do caos, e sim o Deus da Verdade.

Uma outra variação para a “Teoria do Resgate” é acrescentar um novo item ao esquema antes proposto, de modo que assim temos:

1. No Cristianismo Primitivo, existiam as verdades A, B, C, D, e E.

2. A Igreja suprimiu as verdades B e C.

3. A Igreja acrescentou os ensinamentos F e G, totalmente alheios ao Cristianismo.

4. Fulano(s) veio, resgatando as verdades B e C e suprimindo os erros F e G.

Novamente, um exemplo.

Cuida-se agora de uma acusação muito comum em certos folhetos protestantes: foi a Igreja que, no ano 325, no Concílio de Nicéia, acrescentou a fórmula pagã da Santíssima Trindade !

Ora, é só considerar alguns dos testemunhos antes do ano 325 para derrubar mais este disparate:

“Os que são batizados por nós são levados para um lugar onde haja água e são regenerados da mesma forma como nós o fomos. É em nome do Pai de todos e Senhor Deus, e de Nosso Senhor Jesus Cristo, e do Espírito Santo que recebem a loção na água. Este rito foi-nos entregue pelos apóstolos” (Justino Mártir, ano 151, I Apologia 61).

“Eu te louvo, Deus da Verdade, te bendigo, te glorifico por teu Filho Jesus Cristo, nosso eterno e Sumo Sacerdote no céu; por Ele, com Ele e o Espírito Santo, glória seja dada a ti, agora e nos séculos futuros! Amém.” (Policarpo, ano 156, Martírio de Policarpo 14,1-3).

“Procurai manter-vos firmes nos ensinamentos do Senhor e dos apóstolos, para que prospere tudo o que fizerdes na carne e no espírito, na fé e no amor, no Filho, no Pai e no Espírito, no princípio e no fim, unidos ao vosso digníssimo bispo e à preciosa coroa espiritual formada pelos vossos presbíteros e diáconos segundo Deus. Sejam submissos ao bispo e também uns aos outros, assim como Jesus Cristo se submeteu, na carne, ao Pai, e os apóstolos se submeteral a Cristo, ao Pai e ao Espírito, a fim de que haja união, tanto física omo espiritual” (Inácio de Antioquia, ano 107, Carta aos Magnésios 13,1-2).

“Como não se admiraria alguém de ouvir chamar ateus os que admitem um Deus Pai, um Deus Filho e o Espírito Santo, ensinando que o seu poder é único e que sua distinção é apenas distinção de ordens?” (Atenágoras de Atenas, ano 177, Súplica pelos Cristãos 10).

“Igualmente os três dias que precedem a criação dos luzeiros são símbolo da Trindade: de Deus [=Pai], de seu Verbo [=Filho] e de sua Sabedoria [=Espírito Santo]” (Teófilo de Antioquia, ano 181, Segundo Livro a Autólico 15,3).

É de sobremaneira interessante esta questão do ano. Assim, os senhores que usam a malfadada “Teoria do Resgate” agregam a esta “A Data da Grande Corrupção”, isto é, o momento em que a Igreja descambou de vez, abandonando o verdadeiro Cristianismo e abraçando ensinamentos errôneos. O problema é que não há um mínimo de consenso e lógica sobre quando teria sido esta “Grande Corrupção”.

Quando se discute a questão acima com um reformista, por exemplo, ele acusa os últimos anos da Idade Média como testemunha da desgraça ocorrida. No entanto, quando mostramos que os erros de alguns seres humanos em nada interferiram na doutrina católica, então o sujeito dá um imenso salto para trás e joga a data para 381 (Primeiro Concílio de Constantinopla) ou mesmo 325 (Primeiro Concílio de Nicéia).

Depois que percebe que estes concílios apenas confirmaram a fé ortodoxa, condenando as heresias, então jogam a data para 313, ano em que o Edito de Milão concede liberdade de culto, inclusive para os cristãos. Não deixa de ser interessante: será que o simples fato da Igreja não ser mais perseguida, isto muda totalmente sua essência ? Será que um pássaro quando sai da gaiola não é mais pássaro ?

Vencido em seus argumentos, frente aos testemunhos primitivos, o não-católico prossegue em sua jornada, sem perceber que cada vez mais joga a data da “Grande Corrupção” para próximo de Cristo! Não é à toa que houve mesmo quem afirmasse que os apóstolos deturparam a mensagem de Jesus, o que fatalmente nos levaria a desistir de qualquer investigação séria sobre o Cristianismo, já que praticamente tudo que conhecemos de Cristo nos foi passado pelos Santos Apóstolos. Uma conveniência ou um absurdo ?

Uma outra variação da “Teoria do resgate” é quando o indivíduo se apega a aspectos secundários do Cristianismo, isto é, que não são artigos de fé, mas apenas normas disciplinares da Igreja, tais como o uso de velas no altar, a adoção do celibato clerical, etc.

Outro modo em que esta teoria aparece é quando o autor diz ter havido “focos de resistência”, durante séculos e séculos e que, em um determinado momento, resolvem vir à tona e dar o ar de sua graça ao mundo.

Resumo da ópera: o ônus da prova cabe a quem o afirma. Não-católicos ao afirmarem que “a verdade B existiu, a Igreja suprimiu, mas foi resgatada” precisam demonstrar como isto se deu, o “modus operandi” da Igreja ao abafar tal ensinamento e também o “modus operandi” do herói ao resgatar tal artigo. Precisa, pelo menos, responder as questões básicas: O quê? Onde? Quando? Quem? Por quê? Como?

De quebra, terá ainda de explicar como Deus foi tão falho em preservar Sua Doutrina, já que o próprio Cristo disse que:

“Eis que eu estou convosco, todos os dias, até o fim do mundo”. (Mt 28, 20)

“As portas do inferno nunca levarão vantagem sobre ela[a Igreja]”. (Mt 16,18)

Ora, se Deus abandonou seus filhos a própria sorte, então que Deus é este ? Seria até uma blasfêmia! Mas se, ainda assim, o fez, e designou heróis para recuperar as verdades perdidas, gostaríamos muito de saber que grupo foi este que procedeu tão maravilhosamente bem a esta “operação resgate”, dentro dos parâmetros já mencionados. E quando conhecer, podem ter a certeza de contarem com mais uma conversão: é isto mesmo, provavelmente o primeiro site de apologética da Internet em que o responsável pede para ser convertido!

“Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. (Lc 23, 34)

Facebook Comments

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.