A travessia do Mar Vermelho é fato histórico?

Que a Luz do RESSUSCITADO nos ilumina a todos, no discernimento DA SAGRADA ESCRITURA.
Um santo abraço a todos que fazem o VERITATTIS SPLENDOR (José Afonso)

Prezado José Afonso,

A paz de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo!

Ainda que não possamos saber exatamente como o referido episódio aconteceu, podemos, sim, considerar a travessia do Mar Vermelho um fato histórico, uma intervenção miraculosa de Deus em favor do povo hebreu. No entanto, tão ou até mais importante do que a historicidade desse relato é o seu sentido espiritual, conforme nos ensina o Catecismo da Igreja Católica (CIC). Veja:

“OS SENTIDOS DA ESCRITURA

115. Segundo uma antiga tradição, podemos distinguir dois sentidos da Escritura: o sentido literal e o sentido espiritual, subdividindo-se este último em sentido alegórico, moral e anagógico. A concordância profunda dos quatro sentidos assegura a sua riqueza à leitura viva da Escritura na Igreja:

116. O sentido literal. É o expresso pelas palavras da Escritura e descoberto pela exegese segundo as regras da recta interpretação. «Omnes sensus (sc. Sacrae Scripturae) fundentur super litteralem» – «Todos os sentidos (da Sagrada Escritura) se fundamentam no literal» (90).

117. O sentido espiritual. Graças à unidade do desígnio de Deus, não só o texto da Escritura, mas também as realidades e acontecimentos de que fala, podem ser sinais.

1. O sentido alegórico. Podemos adquirir uma compreensão mais profunda dos acontecimentos, reconhecendo o seu significado em Cristo: por exemplo, a travessia do Mar Vermelho é um sinal da vitória de Cristo e, assim, do Baptismo (91).

2. O sentido moral. Os acontecimentos referidos na Escritura podem conduzir-nos a um comportamento justo. Foram escritos «para nossa instrução» (1 Cor 10, 11) (92).

3. O sentido anagógico. Podemos ver realidades e acontecimentos no seu significado eterno, o qual nos conduz (em grego: «anagoge») em direcção à nossa Pátria. Assim, a Igreja terrestre é sinal da Jerusalém celeste (93).”

Também é oportuno citar, à guisa de complemento, alguns trechos de alocuções dos Papas João Paulo II e Bento XVI, a respeito da travessia do Mar Vermelho:

“São Paulo serve-se do vocábulo «tipo », para indicar a figura sensível de uma realidade espiritual. Com efeito, ele entrevê, na passagem do povo de Israel através do Mar Vermelho, um «tipo» ou imagem do baptismo cristão e, no maná e na água que brota da rocha, um «tipo » ou imagem do alimento e da bebida eucarística (cf. 1 Cor 10, 1-11).

Definindo Maria tipo da Igreja, o Concílio convida-nos a reconhecer nela a figura visível da realidade espiritual da Igreja e, na sua maternidade sem mácula, o anúncio da maternidade virginal da Igreja.

2. É necessário depois esclarecer que, ao contrário das imagens ou dos tipos do Antigo Testamento, que são apenas prefigurações de realidades futuras, em Maria a realidade espiritual significada já está presente, e de modo eminente.

A passagem através do Mar Vermelho, que lemos no livro do Êxodo, é um evento salvífico de libertação, mas não era certamente um baptismo capaz de remir os pecados e de dar a vida nova. De igual modo o maná, dom precioso de Javé ao seu povo peregrino no deserto, não continha nada da realidade futura da Eucaristia, Corpo do Senhor, nem a água que brotava da rocha, tinha já em si o Sangue de Cristo, derramado pela multidão.” (Papa João Paulo II, Audiência de 6 de agosto de 1997: Maria, tipo e modelo da Igreja)

“”O Senhor fustigou o mar com um impetuoso vento do oriente, que soprou durante toda a noite. Secou o mar, e as águas dividiram-se. Os filhos de Israel desceram a pé enxuto para o meio do mar, e as águas formavam como que uma muralha à direita e à esquerda deles” (Ex 14,21-22). O povo de Deus nasceu deste “baptismo” no Mar Vermelho, quando experimentou a mão forte do Senhor que o arrancava da escravidão, para conduzi-lo à suspirada terra da liberdade, da justiça e da paz.” (Papa João Paulo II, Homilia da Vigília Pascal, Sábado Santo, 30 de março de 2002)

“A célebre travessia do Mar Vermelho, “dividido em duas partes”, como que rasgado e dominado como um monstro domado (cf. Sl 135, 13), faz nascer o povo livre e chamado a uma missão e a um destino glorioso (cf. vv. 14-15; Êx 15, 1-21), que terá a sua releitura cristã na plena libertação do mal com a graça baptismal (cf. 1 Cor 10, 1-4). Depois, abre-se o itinerário do deserto: lá o Senhor está representado como um guerreiro que, prosseguindo a obra de libertação iniciada na travessia do Mar Vermelho, se declara em defesa do seu povo ferindo os adversários. Deserto e mar representam, portanto, a passagem através do mal e da opressão para receber o dom da liberdade e da terra prometida (cf. Sl 135, 16-20).” (Papa Bento XVI, Audiência Geral, 16 de novembro de 2005, Ação de graças pela salvação realizada por Deus)

Veja ainda o que o CIC ensina sobre a relação entre a travessia do Mar Vermelho e o sacramento do Batismo:

“1221. É sobretudo a travessia do Mar Vermelho, verdadeira libertação de Israel da escravidão do Egipto, que anuncia a libertação operada pelo Baptismo:

«Aos filhos de Abraão fizestes atravessar a pé enxuto o Mar Vermelho, para que esse povo, liberto da escravidão, fosse a imagem do povo santo dos baptizados» (Vigília Pascal, Bênção da água: Missale Romanum, editio typica [Typis Polyglottis Vaticanis 1970], p. 283 [Missal Romano, Gráfica de Coimbra 1992, 315].).

Finalmente, caro José Afonso, recomendo a leitura dos números 101 a 141 do CIC, que falam especificamente sobre a Sagrada Escritura, a sua formação, o seu papel dentro da fé cristã e o modo correto de interpretá-la.

Na esperança de tê-lo ajudado na medida do possível, despeço-me na paz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Em tempo: Sobre essa mesma questão, meu amigo e colega de apostolado Carlos Martins Nabeto enviou-me a explicação abaixo, feita por D. Estêvão Bettencourt (Curso “Descobrindo o AT” por Correspondência, módulo 28, pp. 139-141):

“A TRAVESSIA DO MAR VERMELHO (Ex 14,5-31)

Como se há de entender esta narrativa?

Do texto sagrado se poderia inferir que o Senhor, dividindo o Mar Vermelho, realizou um prodígio totalmente insólito ou alheio à natureza dos elementos.

Pergunta-se, porém, se o texto bíblico insinua de fato tão extraordinária intervenção da Onipotência Divina.

A isto respondemos que não somente o Livro Sagrado, mas também os vestígios de arqueologia recém-descobertos levam a concluir que a divisão do Mar Vermelho se deve a uma concatenação de causas naturais, só tendo de extraordinário as circunstâncias (hora, duração…) em que se verificou. Eis como se explicam os fatos:

Nos tempos pré-históricos comunicavam entre si os mares Mediterrâneo e Vermelho, os quais só aos poucos foram sendo separados pelo istmo de Suez. Na época de Moisés (cerca de 1240 a.C.), julga-se que o Mar Vermelho se prolongava ainda até os Lagos Amargos e talvez o Lago de Timsah (situados hoje no referido istmo); o porto de Colzum, donde na Idade Média partiam as naves para a Índia, é hoje um acervo de ruínas situadas a dez quilometros do litoral. Nesta sua extremidade setentrional, o mar, que tendia a recuar, não devia ser muito profundo. Há decênios, Bourdon, oficial da marinha francesa encarregado durante muitos anos do serviço do canal de Suez, descobriu vestígios de uma estrada que, passando pelo Egito, desembocava num val ainda hoje existente na parte meridional dos Lagos Amargos, e se prolongava do outro lado das águas; em território egípcio, ou seja, ao pé do Djebel (monte) Abu Hasa, o mesmo explorador encontrou as ruínas de um edifício que, conforme as inscrições, era simultaneamente templo religioso e fortim militar; esta construção, situada nas proximidades da estrada e do val referidos, devia servir para proteger a fronteira, impedindo que entrassem na terra do Faraó invasores indesejáveis, e reabastecer as caravanas que do Egito se dirigiam às minas do Monte Sinai.

Tais descobertas levam a admitir que, nos tempos de Moisés, havia uma passagem através das águas que então constituíam o Mar Vermelho, passagem cuja utilização dependia das circunstâncias de vento, marés etc. Ora, o texto bíblico insinua que o êxodo dos israelitas se fez por um val. Sim, o fato de que os egípcios se precipitaram águas adentro supõe que não tinham a travessia na conta de coisa impossível: deviam julgar que a passagem se tornara praticável naquela ocasião; e com razão, visto o vento impetuoso que, de leste soprando sobre as águas, era bem capaz de nelas abrir um corredor. O que os egípcios ignoravam – incorrendo por isto num erro fatal – era o modo maravilhoso como se tornara transitável o val: o vento fora suscitado por Deus no momento favorável a Israel, e deixaria de soprar logo que o povo eleito o pudesse dispensar (sabe-se, aliás, que o ‘sirocco’ da Arábia, o vento ‘qadim’, começa de imprevisto e cessa também repentinamente).

A seguinte observação parece do seu modo insinuar que a travessia se fez pela parte setentrional do Mar, na parte que atualmente já não existe: o texto bíblico fala da passagem do ‘Mar dos Juncos’, não do ‘Mar Vermelho’, em trechos como Josué 2,10; Salmo 105,7.9.22; 135,13. Ora, às margens do Mar Vermelho não se encontra o arbusto do junco: disto se poderá deduzir que se desenvolvia outrora junto às águas que prolongavam o hodierno Mar Vermelho e deviam constituir propriamente o Mar dos Juncos.

Não se creia que no desastre hajam perecido todo o exército do Egito e o Faraó. O texto de Êxodo 14,7 refere ter-se feito uma seleção de armas e guerreiros para constituírem a tropa perseguida. Quanto ao monarca, é possível que tenha tomado parte na expedição; o texto bíblico, porém, não o diz (conforme Êxodo 14,23.26.28; 15,4).”

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