A tua maneira de viver

Desprendimento

“É fácil acabarmos por ser escravos das coisas. O instinto de posse no homem é um instinto bom, é uma parte da natureza humana criada por Deus. O direito do homem à propriedade privada, o seu direito de possuir o que possa ser necessário ao seu bem-estar espiritual e temporal, é algo que a Igreja tem defendido através dos séculos. Se o direito à propriedade não fosse um impulso bom, renunciar livremente a ele pelo voto de pobreza deixaria de ter o mérito que na realidade tem. No entanto, a paralisia espiritual derivada do pecado original torna-nos difícil o controle dos nossos desejos e instintos, que são bons em si mesmos. Quem é vítima de paralisia verificará alguma vez que, ao tentar alcançar um objeto, pela sua falta de coordenação motora, estende o braço longe demais ou perto demais. De maneira parecida, é-nos freqüentemente difícil manter dentro dos objetivos queridos por Deus os impulsos naturais com que Ele nos enriqueceu. É-nos muito fácil perder o autodomínio e cair num extremo ou noutro.

Esta a razão pela qual o nosso instinto de posse por vezes toma o freio entre os dentes e se transforma no vício da ambição, que é o de obter bens à custa dos outros – essa ambição que leva ao desfalque, à fraude e a todo o tipo de injustiças. No entanto, existe um outro gênero de cobiça que é mais insidioso, apesar de ser menos deplorável: é o de afanar-se desmedidamente numa busca desordenada e excessiva de bens materiais. Quase todos nós estamos expostos a esta espécie de cobiça, e contra ela devemos prevenir-nos.

Semelhante apetência desordenada talvez não desemboque numa conduta criminosa, mas costuma ser causa de graves injustiças contra os outros. Tomemos como exemplo o pai de família tão ansioso de ganhar dinheiro que raramente a sua esposa e filhos têm ocasião de ver-lhe a cara. Dir-vos-á que se esgota tanto apenas em benefício da família, quando na realidade o que ama de verdade é o dinheiro ou tudo o que o dinheiro pode comprar. Se interrogasse os seus, perceberia que preferem tê-lo mais tempo a seu lado e arranjar-se com menos dinheiro. A situação agrava-se de modo considerável quando a dona-de-casa também trabalha fora do lar. Argumentará assim: “Com meu ordenado extra posso fazer muito aos meus filhos”; mas o certo é que adora o sentimento de independência que esse ordenado proporciona. E ainda que traga para casa alguns milhões todos os meses, jamais recuperará para os seus filhos a felicidade e a segurança que estes perdem em conseqüência das suas ausências desnecessárias do lar.

O demônio não precisa trabalhar muito para atrair-nos com o chamariz da ambição. E não se mexerá enquanto uma grande parte da publicidade trabalhar em seu proveito. Vistosos anúncios a cores em todas as páginas das revistas semanais nos tentam com as mil e uma utilidades novo produto, e os anúncios em preto e branco dos jornais dirão em complemento que teremos vantagens enormes se o adquirirmos sem perda de tempo.

Um fato da vida real pode convencer-nos das incongruências a que leva a cobiça. Dois vizinhos tem cada um, o seu carro. Um possui um modelo simples, de dois anos atrás, mas que desempenha perfeitamente o seu papel na cidade e nas eventuais viagens que tenha de fazer. O outro dispõe do “carro do ano” em versão luxo – muito mais caro, obviamente, do que o primeiro -, e que além de cumprir exatamente as mesmas funções que o anterior, lhe toma aproximadamente o triplo do tempo com polimentos, lavagens e manutenção. Apesar disso, o primeiro faz planos para comprar um modelo luxo, considerando os reajustes do ordenado que estão por vir, enquanto o segundo pensa em desfazer-se do seu para adquirir o próximo modelo, um três volumes superluxo, muito mais caro, e que lhe reclamará ainda mais tempo e dinheiro por ser muito mais sofisticado.

Consigamos o que conseguirmos, a ambição nunca nos deixará satisfeitos se lhe permitirmos tomar conta de nós. A cobiça alimenta-se da vaidade, e sempre haverá alguém que possua o que nós ainda não chegamos a alcançar, ou será lançado um modelo novíssimo que nos faça detestar o antigo. Basta folhear uma revista: “Invista em qualidade”, “Esteja à frente do seu tempo”, “Por que não pensei nisso antes?”, “Brilhe como nunca!”, “Áudio e vídeo em toda a sua expressão”, “Estéreo espacial: ligou, viajou”, e assim todos os demais cantos de sereias. Para que haveria o demônio de incomodar-se em trabalhar? Uma vez que a ambição se apodera de nós, passa a dominar-nos uma sede insaciável, semelhante à sede do náufrago que, quanto mais água salgada bebe, mais sede experimenta. Quanto mais coisas a pessoa ambiciosa adquire, mais vontade tem de possuir.

O antídoto da ambição é o espírito de desprendimento que, basicamente, significa possuir um sentido verdadeiro da proporção, um verdadeiro sentido dos valores, tanto dos espirituais como dos humanos e materiais. O homem desprendido nunca é escravo das coisas. Contenta-se em ter aquilo de que necessita, sem se deixar afetar por essa massacrante propaganda comercial. Pode até chegar a desfazer-se, em qualquer momento, daquilo que já possui, se os seus deveres para com Deus ou para com o próximo assim o exigem. É o caso da família cujos membros se sentem felizes vendo os outros felizes, e preferem de verdade a integridade do seu lar ao dinheiro extra no mês e à abundância de meios materiais. O Verdadeiro desprendimento é mais difícil do à primeira vista parece. Mas podemos chegar a possuí-lo pela oração e pela retidão de pensamento.

A Mentalidade Prática: O Secularismo

Um dos obstáculos mais ocultos, e no entanto mais perigosos, para a plenitude da vida cristã é a atmosfera semipagã em que vivemos. Aqui, na América, tratamos a Deus do mesmo modo como tratamos um ex-presidente: com a deferência devida a quem foi uma figura poderosa, mas que na realidade, hoje conta pouco. Escutamos suas palavras com interesse, mas sem esse sentimento que nos move a agir de acordo com tudo que nos diz. Raras vezes se nega Deus abertamente; antes o ignoramos. E ignoramo-lo na vida política, econômica e social da nossa nação. Deus conta tanto como se fosse um outro cidadão qualquer.

Esta atitude para com Deus é o que chamamos espírito de secularismo. A religião é boa, diz o secularismo. É bom ir à igreja aos domingos; é bom rezar. Mas quando a religião se relaciona com a nossa luta diária pela vida, devemos ser práticos. Quando se trata de fazer projetos, quando se trata de levar à prática as decisões, a única coisa que importa é isso: Como tirar o máximo de proveito? O secularismo acharia uma piada a idéia de olhar as coisas do dia a dia do ponto de vista divino. Esse tipo de pensamento fica para os visionários. Deixemos a religião na igreja; esse é o seu lugar. Dia após dia vivemos e respiramos nesta atmosfera de utilitarismo. Não é de estranhar, pois, que os nossos espíritos se infectem. Também não é de estranhar que encontremos indivíduos que continuam a considerar-se “católicos praticantes”, ainda que o seu catolicismo se tenha reduzido há muito tempo à Missa dominical.

Temos o exemplo da mulher que recebe com freqüência a Sagrada Comunhão. ” É claro – confidencia a uma amiga – que eu não me confesso de usar a pílula. Acho que isso é um problema meu e não da Igreja”. A pobre mulher não chega a perceber que a sua fé está mais do que morta, e que as suas práticas religiosas estão reduzidas a uma casca de ovo vazia. Porque, se não acaba de compreender que a Igreja fala em nome de Deus ao interpretar a sua Lei, demonstra que não crê realmente na Igreja. E é absolutamente ilógica quando afirma que crê na Confissão e na Sagrada Comunhão, já que é a própria Igreja, em nome de Cristo, quem garante a realidade desses sacramentos. O secularismo – “deixem a religião no seu lugar” – já fez mais uma vítima.

São inúmeros os exemplos que se podem dar desta contaminação secularista, desta espécie de pensamento torcido. Temos os pais católicos que se esquecem dos ensinamentos da Igreja sobre as relações pré-matrimoniais: “Não vejo nisso nada mau. Os jovens de hoje são diferentes dos da nossa época. Aliás, todos os colegas da escola se portam assim”. Vemos católicos que se dedicam aos negócios, ou à política, ou às mais diversas profissões, e que encolhem os ombros diante de umas “fraudezinhas”: “Eu sei que a Igreja diz isso é errado, mas é preciso enfrentar os fatos se quero sobreviver. Todos fazem o mesmo, e se eu não o fizer, vou acabar dando-me mal”.

E os católicos jovens que dizem: “A Igreja é muito reacionária, não entendo que uma ‘amizade colorida’ seja assim tão perigosa”. Temos também o caso do católico segregacionista que comenta :”É ótimo falar de justiça social, mas o Papa não convive com essa gente como eu”. Ouçamos a sogra católica: “Sim, eu sei que não está certo que um divorciado se case de novo, afinal de contas as crianças precisam de uma mãe”. Também não falta o católico auto-suficiente que sentencia: “Embora este filme tenha sido desaconselhado, não me fará mal nenhum; tenho idade suficiente para julgar por mim mesmo”.

Nenhum dos que assim se manifestam teria valentia suficiente para dizer simples e diretamente: “Gosto de fazer as coisas quando me são fáceis, mas não quando supõem sacrifício”. A todos esses, fá-los-iam baixar os olhos de vergonha os mártires de épocas passadas, e particularmente os mártires de hoje do outro lado da cortina de ferro. Nenhum deles se atreveria a confessar: “O que me acontece, simplesmente, é que não concordo com Deus”.

Sempre tratarão de estabelecer uma distinção imaginária entre Cristo e a sua Igreja, e cegar-se-ão eles próprios na sua própria inconsistência. Se a Igreja não é o arauto de Cristo, para que crer em alguma coisa? Cristo não nos permitirá interpor obstáculos entre Ele e a sua Esposa. Não podemos passar pelo lado de fora da Igreja, confiando em encontrar Cristo do outro lado. É evidente que os exemplos que expusemos são as conseqüências extremas a que nos pode levar o poluído ar secularista que nos envolve. Talvez não tenhamos ido tão longe, mas não há dúvida de que necessitamos vez por outra de tomar a nossa temperatura espiritual e diagnosticar o grau de infecção. Verdadeiramente, seremos bem-aventurados se tivermos aprendido a pensar com Cristo e com a sua Igreja, se nos tivermos treinado em viver por princípios, tanto nas coisas pequenas como nas de maior envergadura. Isto significará que vivemos na presença de Deus em cada momento da nossa existência, e não somente aos domingos na igreja. Quererá significar que o ingrediente básico de todas as nossas decisões é “aquilo que Deus desejaria que eu fizesse”. Quererá significar que Cristo e o seu Corpo Místico são indivisíveis e que é a Sua voz que fala através da Igreja. Com a graça de Deus, podemos viver num mundo secularizado sem que a infecção nos atinja. Mas isso é uma graça que temos de pedir”.

Fonte: Não Vos Preocupeis – TRESE, Leo – Editora Quadrante – São Paulo 1991 – 3@ Edição – Tradução: Emérico da Gama.

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