“As “Escrituras de Jesus”, uma vez que, às escâncaras, Ele adotava a Versão dos LXX, conteriam todos os livros deuterocanônicos e alguns apócrifos (não constantes do cânon protestantes), e deixariam de lado todos os livros neo-testamentários”. <https://www.veritatis.com.br/article/2068>
Alexandre, eu estava apreciando sua refutação aos protestantes e deparei-me com essa frase. Fiquei hiper-bolado…
Queria saber porque, se Jesus aceitava aqueles três apócrifos que estão nos LXX, foi legítimo que a Igreja os rejeitasse do cânon veterotestamentário.
Afinal, se Jesus, que é Deus, tinha-os na conta de inspirados, aquilo já era mais que Tradição…
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Outra parada. Sobre crítica da petição de princípio. É ilógico crer que a Bíblia é inspirada porque ela diz que é, então é necessária autoridade extra-bíblica que a valide : a Igreja. Legal !!!
Cabe a pergunta: E…quem valida a autoridade da Igreja, senão passagens bíblicas ou da Tradição, ambas validadas por essa mesma Igreja ? Não acaba tudo numa fé subjetiva “protestante”, numa intuição de que essa Igreja está certa…assim como os protestantes têm uma intuição de inspiração com a Bíblia?
Afinal qualquer religião pode dizer que ela é a religião verdadeira, assim como qualquer livro sagrado pode dizer que é inspirado. Como podemos dizer que o nosso raciocínio apologético é válido universalmente ?
A crítica diz que tal saída católica apenas aumenta o raio do círculo vicioso, embora tenha utilidade estritamente ad hominem, porque é irrespondível por um protestante. Acho que este segundo assunto aludido poderia valer mais pesquisa da sua parte e um texto no futuro no VS. Eu acho que a segunda via de santo Tomás nos dá uma boa intuição difusa para raciocinar sobre este problema, mas não sei como aproveitar aqui… Gosto de vc, vc se lembra dos e-mails e não deixa de responder. Vc não corre do pau !
Um abraço sabático, porém não sabatista !
Caro Leonardo,
As tuas perguntas acima foram das mais interessantes que já me foram feitas. Tanto que eu, em meio às muitíssimas ocupações do meu dia-a-dia (você já deve ter notado que, já há algum tempo, eu não publico nada no VS), esforcei-me por buscar um tempinho em respondê-las. Abaixo, seguem minhas considerações que, espero, ajudar-te-ão a elucidar as dúvidas que rondam a tua mente.
1. O Cânon Bíblico.
Relativamente ao Cânon das Escrituras, é necessário que entendamos o argumento por mim utilizado e que serviu de base para o teu questionamento. Ele não tem em vista provar a canonicidade dos deuterocanônicos, mas, sim, demonstrar a falácia de alguns argumentos utilizados pelos protestantes na vã tentativa de provar o sola scriptura. De fato, muitos protestantes citam trechos do NT, sejam eles atribuídos aos apóstolos, sejam atribuídos ao próprio Jesus, em que se louvam es “Escrituras”, retirando daí a conclusão de que Jesus e os apóstolos ensinaram a doutrina protestante em questão.
É óbvio que qualquer pessoa minimamente isenta pode perceber, facilmente, que não se pode inferir o sola scriptura de trechos bíblicos que simplesmente louvam as mesmas. Ocorre que, na maioria das vezes, os protestantes não possuem este mínimo de isenção ao qual me referi, pelo que, para eles, é necessário um argumento mais forte.
É neste contexto que se enquadra o meu texto acima. Ainda que Jesus e os apóstolos tivessem louvado as Escrituras, isto nem de longe nos conduz ao “somente a Bíblia”, uma vez que, pelo termo “Escrituras”, todos eles entendiam algo muito diverso da Bíblia protestante. De fato, para Jesus e Seus apóstolos:
a) Todos os livros deuterocanônicos compunham as “Escruturas” por eles utilizadas (ausentes da Bíblia protestantes);
b) Alguns livros considerados apócrifos também a compunham (estando, igualmente, ausentes das Bíblias protestantes): o Livro de Esdras I, Macabeus III e IV, Odes e os Salmos de Salomão);
c) Todos os livros do Novo Testamento, por outro lado, não compunham as Escrituras a que eles se referiam.
Portanto, pelo termo “Escrituras” Jesus e Seus apóstolos tinham em mente algo substancialmente diverso do conceito protestante de Bíblia, pelo que usar, em defesa do sola scriptura, passagens em que os mesmos utilizam aquele termo configura, para falar muito pouco, uma gigantesca ignorância.
Esclarecido este ponto, passo ao cerne da tua questão. Você me pergunta se Jesus, por utilizar o cânon grego, não conferiu, inexoravelmente, canonicidade aos apócrifos (o Livro de Esdras I, Macabeus III e IV, Odes e os Salmos de Salomão). Ou, adentrando naquilo que eu julgo ser o espírito de teu questionamento: se Jesus os tinha por inspirados, a Igreja não extrapolou os limites de sua autoridade ao os excluir do Cânon da Bíblia?
A Igreja não se teria feito maior do que o próprio Cristo?
Na verdade, não. Jesus Cristo não estabeleceu, para Igreja, um Cânon bíblico (embora, penso eu, Ele o tenha estabelecido para o judaísmo) , pelo simples fato de que muitos livros que viriam a compor a Bíblia Cristã seriam escritos décadas depois de Sua Ascensão. Portanto, relativamente à Igreja, ao utilizar-se do Cânon Grego, Ele simplesmente indicava que os livros que o compunham estavam isentos de erros (e isto, por si só, já é uma barreira intransponível para os protestantes), o que não significa dizer serem os mesmos inspirados.
Afinal, Jesus lia e citava livros que falavam de purgatóriao, sacrifício de expiação, oração pelos mortos, intersecção, etc.. E, se os lia e citava, é porque nada de errado havia com eles. Não é à toa que, segundo nos testifica a Bíblia de Jerusalém, os padres da Igreja citavam os apócrifos acima mencionados, juntamente com os deuterocanônicos.
O teu equívoco, meu caro Leonardo, é o de pensar que as Escrituras Judaicas equivalem ao nosso AT. Mas não é assim, na verdade. As Escrituras Judaicas (compostas pelo Cânon Grego) são um conjunto de livros inspirados dados por Deus ao povo de Israel, para guiá-lo até o advento do Messias, com a constituição do definitivo povo eleito (os católicos). Tais Escrituras, ao meu ver, vigoraram até a destruição do Templo, no ano 70 de nossa era, momento em que a verdadeira religião judaica, revelada no AT, perdeu para sempre o seu objeto. Afinal, não existe judaismo verdadeiro sem o Templo, em torno do qual toda aquela religião girava.
As Escrituras Cristãs, por sua vez, foram dadas por Deus à Igreja, válidas enquanto a mesma perigrinar por este vale de lágrimas. Estas Escrituras têm seu cânon definido pela própria Igreja, e (este é o ponto de maior importância) formam um todo orgânico. As Escrituras são uma única e indivisível coisa, meu caro Leonardo. A divisão entre Antigo e Novo Testamentos é meramente didática. A divisão destes dois Testamentos em Livros, também o é, assim como a divisão dos livros em capítulos e destes em versículos.
Teologicamente, contudo, as Escrituras são um todo orgânico e indivisível. E não há nenhuma razão sólida para acreditarmos que deva existir uma co-relação exata entre o nosso Antigo Testamento e as Escrituras dadas a Israel. O Cânon Grego, utilizado por Jesus, formava estas, mas não formava aquele.
Desta forma, conclui-se que:
a) Jesus, utilizando-se do Cânon Grego, estabeleceu as Escrituras Judaicas, ao mesmo tempo que demonstrava serem todos os seus livros isentos de erros doutrinários, se validamente interpretados;
b) Jesus não estabeleceu um Cânon para a Igreja, pois à mesma caberia estabelecê-lo séculos mais tarde;
c) Não existe uma co-relação necessária entre as Escrituras Judaicas e o AT cristão.
Espero ter ajudado a esclarece as tuas dúvidas.
2. A Autoridade da Igreja.
Antes de mais nada, eu gostaria de fazer uma pequena observação. Pequena, porém, bastante útil. Você afirmou que a “crítica” afirma que a Igreja católica apenas aumenta o raio de um círculo vicioso quando aduz que a Bíblia necessita de uma autoridade que lhe seja externa. Não sei se esta “crítica” é protestante, mas parece-me que sim. E seria mais um daqueles casos em que os protestantes, acuados pelos argumentos inexoráveis que são dirigidos contra a frágil estrutura lógica do protestantismo, ao invés de rebatê-los (coisa que lhes é impossível) tentam desesperadamente demonstrar que o Igreja católica é tão ruim quanto a deles.
Este estratagema é tão comum quanto espúrio. Se eles estivessem certos, todo o cristianismo seria uma gigantesca pantomina barata.
Graças a Deus, eles estão errados! Mas fique atento, pois argumentos deste jaez são, repito, muito freqüentes entre os protestantes.
Passemos ao mérito da tua indagação: o fundamento da validade da Igreja.
Fico satisfeito por você ter percebido aquilo que muitos protestantes simplesmente recusam-se a enfrentar: não existe nenhuma base lógica para a sola scriptura, uma vez que a Bíblia necessita, inexoravel e insofismavelmente, de uma autoridade que lhe legitime.
Mas e a Igreja? Não precisa ela, igualmente, de uma autoridade que lhe seja exterior?
É claro que sim! Ninguém pode conceder autoridade a si mesmo, pois isto representaria um contradição. Quem já a tem não necessita atribuir-se autoridade alguma; quem não a tem, não pode fazer tal atribuição, justamente por não a ter.
Assim, da mesma forma que a Bíblia empresta sua autoridade da Igreja, a Igreja a empresta de alguém externo à mesma: Jesus Cristo. Em outras palavras:
a) Eu creio na Bíblia porque a Igreja manda que eu nela creia;
b) Eu creio na Igreja porque Jesus Cristo (Deus) manda que nela eu creia.
Portanto, a fonte da autoridade da Igreja não é a Tradição, nem ao menos é a Bíblia. A fonte da autoridade da Igreja é o próprio Deus, único que possui autoridade em si mesmo. A Bíblia e a Tradição apenas testemunham o fato de que Deus (em Jesus Cristo) outorgou tal autoridade à Sua única Igreja. Não são, nem de longe, o fundamento da mesma.
Neste ponto, surge a segunda parte do teu questionamento, verbis: “afinal qualquer religião pode dizer que ela é a religião verdadeira, assim como qualquer livro sagrado pode dizer que é inspirado.” Que responder?
Encaremos, de pronto, o fato de que, sem qualquer sombra de dúvida, toda e qualquer religião afirma-se inspirada e verdadeira, da mesma forma que todo aquele que crê num suposto livro sagrado acredita que tal livro foi inspirado e revelado por uma divindade. Nisto, nós católicos não nos diferenciamos dos crentes em outras religiões. Não é por este caminho que poderemos afirmar, sem sombra de dúvidas, ser o catolicismo a única e verdadeira fé.
Imagine-se, por exemplo, um muçulmano. Por que razão ele crê no Alcorão? Simples: pelo fato de que, em sua fé, Deus empresta Sua autoridade a este livro. No fundo, é a mesma razão dos católicos: creio na Bíblia porque a Igreja o determina; creio na Igreja porque Deus o mandou. Posso, assim, e em essência afirmar: creio na Bíblia porque Deus o ordenou. Ordenou-o através de Sua Igreja, mas ordenou-o.
Mas, por que cargas d’água um muçulmano crê que Deus lhe ordenou seguir o Alcorão? A resposta é bastante interessente: ele o crê porque… Maomé o disse! Apenas e somente por isto! Maomé afirmou ter recebido o Alcorão dos céus e, então, todo aquele que crer neste fato deterá um substrato lógico em que embasar a sua fé muçulmana.
Ainda que a imensa maioria dos muçulmanos nunca tenha se dado conta disto, sua fé depende, substancialmente, da asserção a um fato, qual seja, o de que Maomé recebeu sua revelação diretamente das mãos do arcanjo Gabriel. Caso tal fato se revele falso, então, toda a revelação corânica, e todo o islamismo é falso. Por outro lado, se tal fato for verdadeiro, então o islamismo é a religião verdadeira e todas as outras são caricaturas da verdade. Portanto, existe um fato fundamental, uma asserção primordial no vértice ( vértice este existente em todas as religiões) da fé islâmica (tomada aqui como exemplo).
A pergunta que podemos fazer neste ponto é a seguinte: que razões objetivas um muçulmano tem para aderir ao fato fundamental de sua fé? A resposta é: nenhuma. Não há qualquer evidência concreta de que este fato é verdadeiro. A não ser, claro, o testetemunho de Maomé.
Ocorre que todo tresloucado que se diz depositário de uma revelação divina também é testemunho desta revelação. Em outras palavras, o testemunho de Maomé, objetivamente, vale tanto quanto o de Joseph Smith ao afirmar ter desenterrado o Livro de Mórmon sob as orientações de Moroni. Vale tanto quanto o testemunho do prosaico Inri-Cristo quando o mesmo afirma ter recebido uma missão do “seu Pai”. Vale tanto quanto o de qualquer um que afirme ter recebido qualquer revelação, por mais esdrúxula e esquisita que seja.
E, exatamente por isto, todos estes testemunhos não valem (objetivamente falando) coisa alguma. Não há porque crer em Maomé e não crer em Joseph Smith ou no Inri-Cristo, ou em qualquer outro.
E é neste ponto que o catolicismo se distancia de todoas as demais religiões.
Também o catolicismo tem um vértice, um fato fundamental que o embasa, no qual todos os católicos (ainda que nunca tenham reflitido sobre isto) crêem. No nosso caso, este fato apresenta duas faces:
a) Ser Jesus Cristo o Deus Todo Poderoso;
b) Ter este Deus instituido a Sua Igreja com autoridade em matéria de fé.
No entanto, meu caro Leonardo, nós, católicos, temos bons (aliás, ótimos) motivos para crermos na veracidade do fato fundamental de nossa fé, enquanto que todos os demais crentes das outras religiões nada possuem além do subjetivismo típico de todos os que aderem a falsas doutrinas.
O muçulmano conta, apenas, com o testemunho de Maomé acerca deste fato fundamental. Nós contamos com o testemunho de dezenas de pessoas, que viram, ouviram e conviveram com Jesus Cristo. E que testemunho! Todas estas pessoas, a partir de então, sofreram horrores, abandonaram todos os seus bens, foram perseguidos, torturados, presos e mortos apenas e tão-somente para atestar a veracidade deste fato fundamental.
Prova testemunhal de tamanha credibilidade é prova mais do que perfeita de que este fato fundamental realmente existiu. É prova incontestável. Apenas a veracidade de tal testemunho é que explica ter sido o mesmo tão inquebrantável, e tão arrebatador.
Falo-o por mim. Nos meus momentos mais agudos de dúvidas ascerca da fé (pois eu também os tenho), é a força do testemunho apostólico que me mantém na Igreja. Quando eu penso em tais testemunhos, então, racionalmente, não vejo como não possam ser verdadeiros. E, sendo verdadeiro, Jesus é Deus, e a Igreja é a depositária da fé.
Insisto: esta é uma análise racional. Análise esta que as outras religiões não podem fazer.
Resumindo:
a) Creio na Bíblia porque a Igreja me manda crer;
b) Creio na Igreja porque Jesus Cristo a instituiu;
c) Creio neste fato devido a força do testemunho apostólico.
Novamente, espero ter ajudado em algo.
Fique com Deus. Que Nossa Senhora interceda por tua alma e te confirme na fé.
Alexandre.