1. O CATÁLOGO DAS OBRIGAÇÕES E DIREITOS DOS “FIÉIS”
Está contido nos câns. 209-223 e constitui (trata-se de uma novidade do Código) um dos pilares mais importantes para a concepção moderna do direito constitucional canônico. Já o Código de 1917, no cân. 87, formulara o princípio, de acordo com o qual o homem adquire, pelo batismo, não somente o status teológico de membro da Igreja, mas também o status jurídico de sujeito capaz de direitos e obrigações. Além desta subjetividade jurídica geral, o CIC de 1917 reconhecera evidentemente a existência de direitos específicos do cristão, como, por ex., o direito ao matrimônio do cân. 1305, o da liberdade na escolha de estado, reconhecido em função do estado clerical e religioso (câns. 214 e 542) e, sobretudo, o direito dos leigos a receber os “bens espirituais… e as ajudas necessárias para a salvação” (cân. 682).
O catálogo do Código de 1983 é, sem dúvida alguma, mais completo, sem ser exaustivo, e flui do Concílio, como o comprovam os estudos feitos por diversos autores. Precisamos destacar apenas que os documentos conciliares afirmam que algumas dessas obrigações-direitos pertencem aos leigos, dado que o Concílio Vaticano II ainda não formulara nem fizera aparecer o conceito de “fiel”, em relação com os três estados de vida típicos da Igreja (ministros sagrados, religiosos e leigos).
Na impossibilidade de deter-nos sobre a análise pormenorizada de cada ponto, sublinhemos a importância ecumênica particular de alguns cânones que mostram uma imagem bem concreta da liberdade religiosa: direitos à Palavra de Deus e aos sacramentos (cân. 213; cf. também câns. 844 e 912); ao rito próprio à própria espiritualidade (cân. 214; cf. a lei de reciprocidade entre universalidade e particularidade na Igreja, em relação aos princípios da unidade e da diversidade, que coexistem e estimulam a vitalidade do Povo de Deus, de acordo com LG 13, OE 3, UR 4); de associação (cân. 215); de liberdade de pesquisa teológica (cân. 218, relacionado com o cân. 386 §2).
2. AS OBRIGAÇÕES E DIREITOS DOS “FIÉIS LEIGOS”
Estão contidos nos câns. 224-231. Em cada caso, tendem a concretizar a promoção global do laicato, desejada pelo Vaticano II, afirmando abertamente sua participação no tríplice múnus de ensinar, santificar e reger. Trata-se de uma concepção dinâmica e não passiva dos leigos, à medida que eles, “através do batismo e da confirmação, são destinados por Deus ao apostolado” (cân. 225 §1). Se algumas das obrigações-direitos que lhes são atribuidas pertencem, na realidade, a todos os fiéis – como o direito de adquirir os graus acadêmicos (cân. 229 §2), a habilitação que daí decorre para receber o mandato de ensinar ciências sagradas (cân. 229 §3) e ainda a obrigação de adquirir uma doutrina cristã correspondente ao estado próprio de cada um (cân. 229 § 1), assim como uma formação específica para os ministérios (cân. 231 § 1) e que corresponde à obrigação de diligência no exercício das tarefas eclesiais próprias de cada fiel (cân. 209 §2) – a sua inclusão no catálogo dos leigos pretende sublinhar que não são exclusivos, tentando reparar de algum modo, certas marginalizações ou omissões do passado.
Por outra parte, a assignação de autênticos “ofícios eclesiásticos”, de acordo com o cân. 228, quer dizer, de ofícios que “podem desempenhar segundo as prescrições do direito”, fica aberta explicitamente aos leigos. Trata-se de uma disposição de grande valor ecumênico, dada a sua relação com o cân. 129 §2: o clericus não é considerado como o titular de todas as funções in Ecclesia e como que o único responsável da missão e dos fins da Igreja; os leigos também são chamados a uma verdadeira coresponsabilidade.
Outros direitos não figuram nos catálogos específicos do CIC, mas foram introduzidos, embora com fórmulas menos qualificadas, em outros textos do CIC, como p. ex., a obrigação-direito de participar ativamente na liturgia, nos câns. 835 §4; 837, 840, 898; os direitos em matéria penal e os que se relacionam com os processos (cf. Livros VI e VII do CIC, comparando-os com as garantias do cân. 221) etc.
3. AS ASSOCIAÇÕES DE FIÉIS
O CIC, coerentemente com o direito afirmado no cân. 215 – que é um direito natural do homem -, consagra o título VI da 1ª parte do De Populo Dei (Os fiéis) às associações de fiéis (câns. 298.329), como sinal ulterior de disponibilidade em relação aos carismas e aos dons dos fiéis, no quadro das exigências da comunhão. Reconhecendo que todos os fiéis, sem exceção, podem legitimamente fundar ou pertencer a associações eclesiais (cf. 298 §1, assim como o cân. 278 para os clérigos e o cân. 307 §3 para os religiosos), o CIC descreve, nas “normas comuns” (câns. 298-311), a existência, finalidades, natureza, relação com a autoridade das diversas classes de associações, fazendo própria a importante distinção entre associações públicas” e “associações privadas”. As associações públicas são aquelas que foram erigidas pela autoridade eclesiástica competente (cf. cân. 312) e que comportam conseqüências jurídicas precisas em relação à personalidade jurídica, à “missão” e às relações com a autoridade eclesiástica (cf. câns. 313-320). As associações privadas nascem de um acordo particular e se limitam a certos fins, de forma a não invadir os das associações públicas, tal como estão previstos no cân. 301 §1 (ensino da doutrina cristã em nome da Igreja, ou promoção do culto público). É necessário sublinhar a possível abertura ecumênica para as associações privadas, em cujo seio as potencialidades ecumênicas terão, talvez, uma maior facilidade de desenvolvimento, sem as formalidades rigorosas previstas pelo CIC para as associações públicas, em razão de que o fenômeno associativo está intimamente ligado ao aspecto “protestativo” na Igreja. Ora, o fato de que, de acordo com o cân. 11, os outros cristãos não estejam sujeitos às leis estritamente eclesiásticas do Código abre, sem dúvida, perspectivas novas, também no setor associativo, levando em conta que o direito “natural” de associação é mais vasto que o direito próprio dos “fiéis” católicos de fundar associações eclesiais.
No que diz respeito às associações de leigos (câns. 327-329), há uma recomendação no sentido de que “colaborem com as outras associações de fiéis e ajudem de bom grado às diversas obras cristãs, principalmente as existentes no mesmo território” (cân. 238). Esta referência precisa às “diversas obras cristãs” existentes no mesmo território inclui uma recomendação ecumênica evidente, embora indireta, que completa o cân. 255 já citado e prepara para a valorização das indicações do Diretório Ecumênico ao respeito (n. 6; UR 12; AA 27; AG 15).
4. A PARTICIPAÇÃO DOS OUTROS CRISTÃOS NAS ASSOCIAÇÕES DE “FIÉIS”
O CIC não faz referência nenhuma, nesse título, aos outros cristãos: trata unicamente de associações fundadas e formadas por fiéis católicos. Esse silêncio coloca o problema do valor das sugestões do Diretório ecumênico que, na Primeira Parte, confia, de modo muito genérico, à “comissão diocesana” prevista, a promoção de “um testemunho comum de fé cristã, de colaboração mútua na educação, no campo da moral, nas questões sociais e no que diz respeito ao homem, à ciência e às artes”, com os irmãos separados (n. 5e). Esta abertura explícita pode servir de prelúdio à criação de boas associações, a fim de obter as finalidades previstas. É esta a perspectiva expressamente indicada na segunda parte do Diretório ecumênico Spiritus Domini, n. 86c, quando alude a “associações para o estudo comum de questões teológicas e pastorais entre os ministros de diferentes Igrejas ou comunidades, que se reúnem para discutir conjuntamente os diferentes aspectos, teóricos e práticos do seu ministério entre seus fiéis, assim como o seu testemunho comum no mundo” (ver também os nn. 87-88, sobre os “institutos interconfessionais”). Uma das condições requeridas é que a “liherdade do magistério da Igreja, capaz de determinar a autenticidade da doutrina e da tradição católicas seja salvaguardada por completo e firmemente” (n. 93).
O “Schema De Populo Dei” de 1977, de acordo com a abertura do Diretório ecumênico, consagrava um parágrafo do cân. 46 aos não-católicos, admitindo sua inscrição nas “associações de fiéis” (sem distinguir entre as associações públicas e as privadas), a não ser que – precisava – “id fieri non possit sine detrimento actionis consociationis propriae aut exinde oriatur periculum ne catuolicorum fides in discrimen vocetur”. A discussão do dia 20 de novembro de 1979, no seio da Comissão, trouxe a proibição da inscrição de não-católicos somente nas associações públicas. De fato, o ‘Schema novissimum CIC” de 1982, “Summo Pontifici praesentatum” determinava no cân. 307 §4: “Non catholici christifidelium consociationibus publicis adscribi non possunt; consociationibus vero privatis ne adscribantur, nisi, iudicio Ordinani, id fieri possit sine detrimento actionis associationis propriae et nullum oriatur scandalum”. No CIC que foi promulgado, esse parágrafo desapareceu. Em compensação, conservou-se, para as associações públicas, o cân. 316 §1 que, contudo, concerne o católico que “publicamente tiver abjurado a fé católica, ou abandonado a comunhão eclesiástica, ou estiver sob excomunhão irrogada ou declarada”. Pode-se, portanto, deduzir que as perspectivas do Diretório ecumênico continuam válidas e que as competências da autoridade eclesiástica a respeito das associações permanecem íntegras (cf. câns. 305, 312 e 755). Para um juízo caso por caso, é necessário retornar ao status de cada associação católica particular, sem que exista uma proibição a priori. Por outra parte, o Directorium “De Motu Proprio” respiciens normas quibus Instituta Internationalia Catholica definiuntur, de 3 de dezembro de 1971 (AAS 63, 1971, pp. 948-956), no n. 3 admite que as organizações católicas internacionais possam acolher outros cristãos em seu seio, com as condições que lá se indicam.
CONCLUSÕES
Destas reflexões sobre o tema dos “fiéis”, podem-se tirar (…) conclusões muito importantes, notadamente no que diz respeito à ação ecumênica:
- A idéia da existência do fiel, enquanto sujeito jurídico transcendente aos três estados de vida na Igreja (clerical, laical e religioso), adquire um papel básico na organização canônica e, em virtude do batismo comum a todos os cristãos, pode também ser aplicada aos outros cristãos, na medida em que não há obstáculos à comunhão plena descrita no cân. 205.
- As obrigações-direitos reconhecidas aos fiéis gozam de um certo sentido de superioridade material em relação a todas as outras normas, à medida que se fundamentam, como vimos, ou sobre o direito divino ou sobre o direito natural, mas tendem, em qualquer hipótese, à participação nos três múnus de Cristo. Daí a importância de determinar, com a maior precisão possível, a estrutura ontológica de cada obrigação-dever particular, a fim de evitar qualquer oposição entre instituição e fiel, e de esclarecer as implicações concernentes aos outros cristãos no seio da “communicatio in sacris”, no exercício do direito de acesso aos tribunais católicos etc. Corresponderá quer à autoridade da Igreja, quer aos autores, determinar esse ponto, levando em conta todas as cláusulas compreendidas nos catálogos de obrigações-direitos e em todo o CIC.
Fonte: Livro “O CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO E O ECUMENISMO”,pp.26-30.