Aplicação de Leis Divinas nas ordens espiritual e secular

Por Alessandro Lima

* Por ordem espiritual estamos querendo os referir ao conjunto de coisas espirituais nas quais a Igreja possui poder delegado pelo próprio Cristo. A ordem de coisas que ela administra pelo uso de seu poder espiritual. Por ordem secular queremos nos referir ao conjunto de coisas dispostas na sociedade civil nas quais o Estado possui poder delegado por Deus para administrar.

 

Nos comentários em uma das minhas lives no Youtube [1], um aluno da turminha de quarta-série do Pe. Cekada, afirmou que não sei a diferença entre impedimentos de lei divina e de lei eclesiástica, logo, segundo ele, impedimentos de lei eclesiástica não podem invalidar, ou sobrepor-se àquelas de lei divina. No caso em questão estava referindo-se à eleição do Sumo Pontífice.

 

Um dos ensinamentos da Teologia Tomista é que Deus age por causas segundas. Um exemplo clássico é que ele não nos cria diretamente, quis agir após a união sexual de um homem e uma mulher, para então infundir a nossa alma espiritual. Também não é diretamente de Deus que aprendemos os rudimentos da fé ou da moral, mas de nossos pais, família, padres, bispos, papa etc.

 

Ora, numa sociedade jurídica e visível como é a Igreja [2], cabe à legítima autoridade legislar sobre como os cidadãos da sociedade devem ou não devem ocupar cargos ou funções eclesiásticos. E dentro desta ordem jurídica há também as penas, isto é, as punições aplicadas a alguém que exerce indignamente suas funções eclesiásticas, como também regras que impedem a ocupação das mesmas funções. 

 

Exatamente aqui está uma das tolices que os alunos de Pe. Cekada repetem como seus papagaios de pirata: “um herege perde ipso facto seu cargo por pecado de heresia ou está impedido de ser eleito papa também por pecado de heresia, pois assim estabelece a lei divina”.

 

Ora, o ordenamento jurídico da Igreja (pode escolher o CIC 1917 OU CIC 1983) pune CRIMES, aplicando diversos tipos de penas, inclusive tomando o cargo eclesiástico de seu ocupante. Não é Deus quem retira o cargo, mas a Igreja! São Jerônimo, São Roberto Belarmino, como outros doutores quando ensinavam que os hereges logo perdiam a sua jurisdição, estavam referindo-se ao direito de mantê-la e não de uma perda real. Caso contrário, o próprio ordenamento jurídico da Igreja estaria contrariando uma lei divina, o que seria absurdo!

 

“Não matarás” também é uma lei divina, no entanto, a pena na ordem temporal (a prisão do assassino) não é aplicada diretamente por Deus, mas pelo poder secular! Se o autor do delito for clérigo, também sofrerá penas eclesiásticas aplicadas pela autoridade competente, e novamente não é diretamente Deus…

 

Pe. Cekada faz seus leitores pensarem o contrário de tudo isso: que Deus é quem aplica nas ordens espiritual e secular penas divinas! Quanta tolice! Ora, mas se assim fosse, como poderíamos saber se Deus agiu ou não? É por isso que Ele age por causas segundas: ora pelo poder da Igreja na ordem espiritual e ora, pelo poder secular na ordem secular. Negar isso é negar a doutrina católica dos dois poderes (temporal e espiritual) que tantos papas ensinaram [3].

 

E há impedimentos que são metafísicos, como o fato de uma mulher não poder receber a ordem, consequentemente a jurisdição eclesiástica, logo não pode ser papa.

 

Chamamos este tipo de impedimento de metafísico porque, segundo a metafísica aristotélico-tomista, uma matéria precisa ter alguma potência que possa ser levada a ato. Por exemplo, o fenômeno físico da ebulição da água só é possível porque a água possui potência para ser aquecida, caso contrário não poderia sê-lo. Em outras palavras, a potência para o calor está lá presente na água, mas é através de algum sistema de aquecimento que esta potência é levada a ato e então a água fica quente e depois evapora.

 

Assim, voltando ao nosso exemplo, uma mulher não possui potência para receber o sacramento da ordem. E este tipo de impedimento nenhuma lei eclesiástica pode remover. Assim como a Igreja não pode definir por lei eclesiástica que o triângulo seja redondo. Esses impedimentos, por dizerem respeito às coisas eclesiásticas, são também regulados pela mesma lei eclesiástica e aplicados pela legítima autoridade e não por Deus diretamente. Com efeito, é escusado citar os cânones onde a Igreja impede que uma mulher receba o sacramento da ordem.

 

Contudo, os impedimentos morais podem ser removidos circunstancialmente por um legislador sábio, se um bem maior para a Igreja estiver em jogo, como já ensinou Santo Tomás [4].

 

E foi exatamente isso que fez o Papa São Pio X na sua Constituição Vacante Apostolica Sede de 25/12/1904 nos números 29 e 79. O mesmos termos foram mantidos por todos os seus sucessores.

 

Essa é a doutrina católica.

 

NOTAS

 

[1] Refutando os erros reciclados de Pe. Cekada – Parte II. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ZJAy_83F9Js

 

[2] Papa Leão XIII, Immortale Dei no. 16. Disponível em https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_01111885_immortale-dei.html.

 

[3] Ibidem. 

 

[4] In Pol., II, 4, 11 apud VEIGA, Bernardo. A Política segundo Tomás de Aquino. Campinas: Ecclesiae, 2020. Pg 66-67.

 

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