APOLOGIA – PARTE VI

» CAPÍTULO XXVI

Examinai e vede se Ele não é o dispenseiro dos reinos, aquele que é simultaneamente o Senhor do mundo, por quem é governado, e que governa os próprios homens; se Ele não fez as mudanças de dinastias, com suas indicadas seqüências, que existiu antes de todos os tempos e determinou no mundo uma continuidade de tempos. Se o soerguimento e a queda dos países não são Sua obra, sob cuja soberania a raça humana primitivamente existiu sem nenhuma país.

Como explicais que incidis em tal erro? Porque a Roma de simplicidade rural dos tempos primitivos é mais velha do que muitos de seus deuses. Ela reinou antes que seu orgulhoso e imenso Capitólio fosse construído. Os babilônios também se constituíram em Império antes dos dias dos pontífices, e os medas antes dos qüindecênviros. Os egípcios antes dos sálios. A Assíria antes de Lupércio, e as amazonas antes das Virgens Vestais.

E para acrescentar outro ponto: se as religiões de Roma lhe proporcionaram um Império, a antiga Judéia nunca teve um, desprezando-o como fez com um e todos aqueles ídolos divinizados; a Judéia cujo Deus, vós, romanos, certa vez honraram com vítimas, com presentes de seu Templo, e com tratados de seu povo, ela nunca esteve sob vosso cetro, senão por ocasião dessa última e final ofensa contra Deus, quando rejeitaram e crucificaram Cristo.

» CAPÍTULO XXVII

Bastante já foi dito nessas explicações para refutar a acusação de traição contra vossa religião e porque não podemos ser considerados prejudiciais àqueles que não existem… Portanto, quando somos convidados a sacrificar, recusamos resolutamente, apoiados no conhecimento que temos, pelo qual estamos certos sobre a realidade dos seres aos quais esses sacrifícios são oferecidos, sob a profanação de imagens e a deificação de seres humanos.

Muitos, de fato, julgam isso um ato de insanidade, pois estando em nosso poder oferecer logo o sacrifício e nos livrarmos do castigo, mantemos nossas convicções; é que preferimos uma persistência obstinada em nossa confissão, para nossa salvação. Vós nos avisais, é certo, que assim estamos tirando vantagens de vós, mas sabemos de quem procedem tais sugestões, quem está por trás disso, querendo vencer nossa constância, e como faz todo esforço, agora com manhosa persuasão e depois com perseguição sem piedade. Não é outro senão o espírito, meio demônio, meio anjo que, nos odiando por causa de sua própria separação de Deus, levado pela inveja do favor que Deus nos tem demonstrado, vira vossas mentes contra nós com influências ocultas, moldando-as e instigando-as a todas as perversidades no julgamento, e àquela crueldade indevida que mencionamos no começo de nosso trabalho, quando iniciamos esta discussão.

Porque, embora todo o poder dos demônios e maus espíritos nos esteja sujeito, contudo, como escravos, indispostos muitas vezes, estão cheios de medo: assim são eles também. Por medo, também inspiram ódio. Além disso, em sua condição desesperada, já que estão condenados, causa-lhes algum conforto quando adiam o castigo e usufruem de suas disposições malignas. No entanto, quando nossas mãos são levantadas contra eles, ficam subjugados de repente, submissos a seu lugar; e àqueles a quem se opõem à distância, reservadamente pedem misericórdia.

Assim, nas sedes rebeladas, em prisões ou minas, ou em qualquer um desses locais para penas escravas, são aqueles que se revoltam contra nós, seus senhores, sabendo sempre que não são ameaça para nós e, exatamente por isso, de fato, se entregam mais renhidamente à destruição. Nós lhes resistimos a contragosto, como se fossem nossos iguais, e os enfrentamos perseverando naquilo que eles atacam.

Nosso triunfo sobre eles nunca é mais completo do que quando somos condenados pela resoluta adesão à nossa fé.

» CAPÍTULO XXVIII

Mas sendo evidente a injustiça de compelir homens livres, contra sua vontade, a oferecer sacrifício – porque mesmo em outros atos de serviço religioso se requer uma mente de boa vontade – deveria ser tido por total absurdo um homem obrigar outro a dar honras aos deuses, quando cada um deve voluntariamente, pelo sentido de sua própria necessidade, procurar o favor deles, para que, na liberdade que é seu direito, esteja pronto a dizer: “Não preciso dos favores de Júpiter, a quem orais… Que Jano me venha com olhares tristes em qualquer uma de suas faces, a que desejar… O que tendes a ver comigo?”

Vós sois levados, não há dúvidas, por aqueles mesmos espíritos maus que vos compelem a oferecer sacrifícios para o bem estar do imperador; e ficais compelidos à necessidade de usar a força, da mesma forma como estamos sob a obrigação de enfrentar os perigos disso. Somos conduzidos, agora, à segunda base da acusação: somos culpados de traição contra a majestade muito augusta, porque cuidais de dar homenagem com maior temor e a maior reverência ao Imperador do que a ao próprio Júpiter Olímpico.

Mas – bem sabeis – procedeis com diferentes fundamentos. É porque não há nenhum homem melhor do que aquele temível, seja quem for? Mas isso não é feito por vós senão com base num poder cuja presença vivamente sentis. Assim também nisso sois culpados de impiedade para com vossos deuses, visto que mostrais uma maior reverência ao soberano humano do que aos deuses. Daí, entre vós, o povo também jura falso mais facilmente pelo nome de todos os deuses, do que pelo nome do supremo Imperador.

» CAPÍTULO XXIX

Esclareçamos, portanto, antes de mais nada, se aqueles aos quais se oferecem sacrifícios estão aptos a proteger seja o Imperador seja alguém mais, e assim nos julguem culpados de traição; se anjos ou demônios, espíritos da pior natureza, podem realizar o bem, se o perdido pode dar salvação, se o condenado pode dar liberdade, se o morto (refiro-me a quem bem conheceis) pode defender o vivo…

Porque certamente a primeira coisa de que cuidariam seria da proteção de suas estátuas, imagens e templos, e aquilo a que antes de tudo deveriam sua segurança, ou seja, à vigilância dos guardas do Imperador. Sim, penso, os próprios materiais de que são feitos provêm das minas do Imperador, e não haveria um templo que não dependesse da vontade do Imperador. Sim, e muitos deuses já sentiram o desagrado do Imperador.

Meu argumento é que eles são também participantes do favor imperial, quando o Imperador lhes confere algum presente ou privilégio. Como podem eles – que assim estão sob o poder do Imperador, que pertencem inteiramente ao Imperador – ter a proteção do Imperador sob sua responsabilidade, do modo que possais imaginá-los aptos a dar ao Imperador o que eles mais prontamente recebem do Imperador?

Esta é, pois, a base na qual somos acusados de traição contra a majestade imperial, a saber, não colocamos os imperadores submissos às suas próprias propriedades; porque não oferecemos um simples arremedo de culto à crença nessas divindades, como não acreditando que a segurança dos imperadores permaneça em mãos metálicas. Mas sois ímpios a tal ponto que procurais a divindade onde não está, que a procurais naqueles que não a possuem, passando por Aquele que a possui inteiramente em Seu poder. Além disso, perseguis aqueles que sabem onde procurá-La e que, sabendo onde procurá-La, são capazes de também gozar de Sua segurança.

» CAPÍTULO XXX

Oferecemos preces pela segurança de nossos líderes ao Eterno, ao Verdadeiro, ao Deus vivo, cujo beneplácito, acima de todos os outros, eles próprios desejam. Eles sabem de quem receberam seu poder. Sabem, já que são homens, de quem receberam a própria vida. Estão convencidos de que Ele é o único Deus, de cujo único poder são inteiramente dependentes, de quem são segundos, depois de Quem ocupam os mais altos cargos, antes e acima de todas as divindades. Por que não são superiores à morte, já que estão acima de todos os seres humanos, e vivendo como vivem?

Eles meditam sobre a extensão de seu poder e assim vêm a compreender o Altíssimo. Reconhecem que possuem todo seu poder recebido d’Ele contra o qual seu poder é nada.

Que o imperador faça guerra ao céu, que leve o céu cativo em seu triunfo, que ponha guardas no céu, que imponha taxas ao céu! Ele não pode! Exatamente porque ele é menor do que o céu, ele é grande. Pois ele mesmo é d’Aquele ao qual o céu e todas as criaturas pertencem. Ele obteve seu cetro quando lhe foi concedida sua humanidade. Seu poder, quando recebeu o sopro da vida.

Para lá elevamos nossos olhos, com as mãos abertas, porque livres do pecado, com a cabeça descoberta, porque não temos nada de que nos envergonharmos, finalmente, sem um monitor porque é de nosso coração que partem nossas preces.

Sem cessar, oferecemos preces por todos os nossos líderes. Pedimos por uma vida longa, pela segurança do Império, para a proteção da casa imperial, para os bravos exércitos, por um senado fiel, por um povo virtuoso, e, enfim, por todo o mundo, seja quem for, homem ou Imperador, como um imperador desejaria.

Essas coisas eu não posso pedir senão a Deus, de quem sei que as obterei, seja porque somente Ele as concede, seja porque Lhe peço sua dádiva, como sendo um servo Dele, rendendo homenagem somente a Ele, perseguido por Sua doutrina, oferecendo a Ele, por Seu própria recomendação, aquele custoso e nobre sacrifício de prece feito por um corpo casto, uma alma pura, um espírito santificado, e não por alguns poucos grãos de incenso que nada valem – extraído da árvore arábica – nem alguns pingos de vinho, nem o sangue de alguma boi indigno para o qual a morte é um destaque, e, em adição a outras ofensivas coisas, uma consciência poluída, de tal modo que alguém se admira quando vossas vítimas são examinadas por aqueles sacerdotes vis. Por que o exame é menor sobre o que sacrificam do que sobre os que são sacrificados?

Com nossas mãos assim abertas e levantadas para Deus, nos entregamos a vossas claves de ferro, somos suspensos em cruzes, lançados às chamas, temos decepadas nossas cabeças pela espada, somos entregues aos animais selvagens: a verdadeira atitude de prece de um cristão é uma preparação para todos os castigos.

Que esses bons administradores façam seu trabalho, arranquem-nos a alma, implorando a Deus pelo bem estar do Imperador. Acima da verdade de Deus e da devoção a Seu nome, ponde o estigma do crime.

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