Eu creio – e suponho que a Igreja também crê – que Deus escreve no palimpsesto da História uma mensagem que somente certos profetas conseguem enxergar. A mensagem é escrita sem tinta e sem giz. Na verdade, é escrita com elementos que apenas Deus pode usar para escrever. Creio também que, de alguma forma, assim como a História de Israel contém uma teologia cujo resultado real é Cristo, assim também o mundo inteiro contém em sua essência um ensinamento teológico que todos os que vivem percebem de uma maneira maior ou menor, mas cujo resultado será Cristo.
O evangelho dos hebreus começa em uma colina da Caldeia, quando um homem misteriosamente escolhido escuta o convite de Deus que lhe diz: “Vai para esta terra que Te mostrarei” e inicia uma longa peregrinação entre o Crescente Fértil e o norte da África, detendo-se somente ao ver a Terra que Deus promete já não só a ele, mas à sua descendência.
Dessa modo, a posse da terra e a habilidade para reproduzir o próprio ser em uma descendência restam ligados ao impossível, pois a terra prometida ao hebreu era ocupada por guerreiros fortes e sanguinários, um povo com coração de pedra, um povo inclinado à prática do mal. E para tornar as coisas ainda mais absolutamente terríveis, Abraão já tinha passado da idade de procriar e também a sua amada, Sara, era idosa. Ambos se encontravam no ocaso das suas vidas.
De todas essas coisas sem sentido, nascem os meninos Ishmail (Ismael) e Yitzaak (Isaac). Ishmail significa “Deus escuta”, mas Yitzaak significa “riso” e nisto os rabinos de Israel julgaram que Yitzaak devia ser um bobo ou talvez risse sem motivo algum, como ocorre com alguns deficientes mentais. Seu pai precisa encontrar-lhe uma noiva, sendo Yitzaak já um homem de idade avançada; e dessa noiva a Bíblia diz apenas que era uma pessoa misericordiosa: não cuidadosa como Sara ou Lea, não bela como Raquel, mas tão somente misericordiosa. Outra confirmação da aparente inépcia mental de Yitzaak é a facilidade com que Jacó o engana; e, curiosamente, um dos significados do nome de Jacó é “trapaceador”.
Esses dois meninos, Ishmail y Yitzaak, são inimigos e continuarão sendo inimigos nos séculos vindouros. O que nos importa agora é retornar ao centro da questão: a posse da promessa depende de se produzir descendência. Sem descendência não há terra.
Com efeito, a visita de Abraão ao Egito (onde obtém uma escrava, Agar) gera a Ishmail, porém a visita de Deus a Abraão gera a Yitzaak. E Yitzaak é o herdeiro da promessa de Deus. Impossível empilhado sobre impossível, agora Abraão deve crer que as nações do mundo serão abençoadas pela descendência dessa “filho abobado” que Deus lhe deu. E esse pequeno-tesouro de filho é o que depois deverá ser sacrificado no alto do monte Moriá, tal como agiria um pagão daquele local. Abraão não entende, mas obedece. Não sabemos ao certo se Sara ficou sabendo da história, mas existe um indício do que ocorreu com ela: quando Abraão está nas proximidades de Sodoma, deve “subir a Mamré”, onde Sara aparentemente vive por conta própria, separada do seu marido.
Deus escreve com pessoas e lugares uma história cheia de sinais que apenas entenderemos quanto tivermos a vida celeste. Porém, não existe disposição contrária a tentarmos entender um pouquinho agora, ainda que a visão a partir desse plano reste um pouco confusa.
Na vida de Abraão há um evangelho em que o homem representa a Deus e Sara a Igreja. O rapaz abobado representa a loucura intencional de Deus que sacrifica o seu tesouro em benefício dos seus próprios inimigos. Do Egito – que por quase toda a Bíblia figura o mundo – Abraão colhe dores e problemas, mas Sara recebe a bênção de habitar antecipadamente na terra que foi prometida a Abraão, porém onde ele não pode levar seus rebanhos para pastar.
Os descendentes de Yitzaak continuam aparecendo na História e Deus continua escrevendo sinais sobre a terra (João 8,6); talvez essa seja a finalidade transcendental deste mundo: ser o caderno de Deus.
Cerca de 35 séculos depois de Abraão, em dois continentes separarados por enormes distâncias, quase insuperáveis, nascem dois homens: um nasce de uma família de pobres servos e o chamam de “guincho da águia”, talvez porque uma águia tenha guinchado no momento em que ele nasceu. Depois receberia o nome de Juan, [isto é, João] (Apocalipse 8,13; a vingança de Deus são as águias em Deuteronômio 28,49; Oseias 8,1; Habacuc 1,8), aquele discípulo a quem Jesus amava e que quase sempre é simbolicamente identificado como uma águia. O outro homem nasce quatro anos depois, no além-mar, em Londres. Nasce de uma família de advogados próxima dos círculos do Poder Real. Ambos estarão ao mesmo tempo em circunstâncias cruciais para a História do mundo.
O primeiro é Juan Diego Cuauhtlatoatzin. O segundo é Tomás Moro.
Moro chegou a ser chanceler do trono de Henrique VIII, um rei com problemas para gerar descendência. O desespero do rei por mudar de esposa produziu uma situação em que o chanceler acabou caindo em desgraça e sendo executado. A Inglaterra se separou da Igreja Católica e entrou de cabeça no redemoinho da Reforma Protestante. Muitos mártires pagaram com seu próprio sangue a loucura do rei apóstata. Um deles foi Tomás Moro, o sábio chanceler. O rei morreu e as suas últimas palavras foram: “tudo perdido: reino, coroa, alma…”. Tudo perdido por NÃO poder engravidar uma mulher de filho varão…
Por outro lado, Cuauhtlatoatzin viu em sua vida muitos acontecimentos grandiosos. Antes de Cortez chegar ao México, quando Cuauhtlatoatzin era apenas um menino de 12 ou 13 anos, tinha visto o grande general Tlacaelolco consolidar o reino dos mexicas em uma tripla aliança. Tinha visto inaugurar a grande pirâmide dedicada ao demônio da guerra, onde se sacrificava e se consumia carne humana e onde os sacerdotes se entregavam ao sexo ritual uns com os outros. A grande cerimônia de inauguração que Cuauhtlatoatzin certamente foi forçado a ver foi uma festa de terror comparável aos horríveis rituais de Moloc e Bel que Abraão havia presenciado na terra de Canaã.
Cuauhtlatoatzin viveu no tempo da chegada dos espanhóis na 6ª-Feira Santa de 1519. Cuauhtlatoatzin viu também a queda do império asteca e o fim dos sacrifícios humanos que havia sido predito pelos sacerdotes de Quetzalcoatl justamente para esse ano, mês e dia: a 6ª-Feira Santa de 1519. Em dezembro de 1531 Cuauhtlatoatzin teve a experiência que mudou a sua vida para sempre e a de outros nove milhões de mexicanos que se converteram ao Cristianismo: teve um encontro com a Virgem Maria que apareceu para ele em uma colina. A Virgem estava vestida como uma princesa Nahuatl e, ainda que a sua aparência fosse jovem… parecia estar grávida de três meses. A prova de sua visita foi um ramo de rosas brancas, desconhecidas no México nessa época. Curiosamente, a rosa branca havia sido o símbolo da casa de York na Inglaterra antes do reinado de Henrique VII, que antecedeu o rei executor de Tomás Moro.
Restamos assim com esta curiosa coincidência: um rei que não pode gerar filhos varões assassina um Santo que tem as coisas claras: Deus reina e governa no coração do homem, está acima do César. De outro lado, um varão humilde é convidado por uma aparição sobrenatural, em que Deus lhe aparece como promessa, ainda que no ventre de Maria, como se quisesse nos anunciar que as Américas teriam um papel crucial no nascimento do reino vindouro, pois as princesas apenas podem dar a luz a príncipes. E este Príncipe que irá nascer será humilde, forte e nobre como um príncipe nahuatl.
Nove milhões de protestantes deixaram a Igreja nos primeiros anos da Reforma. Porém, a mesma quantidade ingressou na Igreja como resultado do encontro de Cuauhtlatoatzin com a Virgem de Guadalupe.
Quinhentos anos depois, a Europa e os seus descendentes na América vão minguando, sem gerar filhos. Quem os estão substituindo são os humildes, os frutíferos soldadinhos de Guadalupe que ainda não conhecem a pílula anticoncepcional e que se alegram pelos lares cheios de crianças de olhos grandes, aniversários com pichorras e festas de quinze anos em que os “huapangos” soam para [todos] dançar e rir… rir como Yitszaak das inexplicáveis piadas contadas por Deus.
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NOTA: São Tomás Moro (1478-1535) e São Juan Diego (1474-1548) são contemporâneos.
- Fonte: CasoRosendi.com
- Tradução: Carlos Martins Nabeto