Em primeiro lugar, antes de tentar fornecer uma explicação pormenorizada, gostaria muito de recomendar a leitura do livro “A Cidade Antiga” de Fustel de Coulanges, onde ele traça um perfil nítido e consistente do cidadão da Antiguidade bem como de seus costumes, sobretudo das civilizações greco-romanas.
Em segundo lugar, é necessário tomar-se a devida distância delimitando bem as diferenças entre o culto às divindades pagãs e a revelação singular do Deus de Israel. Apesar de possuírem algumas semelhanças (oriundas em muitos casos do modelo antigo das Cidades-Estados) não são absolutamente a mesma coisa.
Habituados com a noção milenar de um Deus único, zeloso e amoroso, vinda do Judaísmo e aperfeiçoada no Cristianismo, é instigante o retrato trazido por Fustel da relação entre o homem antigo e seus deuses. Surpreende constatar, por exemplo, que os povos da Antiguidade não amavam seus deuses, mas os temiam e não raras vezes os odiavam!
Na verdade, eles constituíam uma “realidade” com que governantes, sacerdotes e cidadãos eram obrigados a conviver. Os deuses da Antiguidade eram consultados sobre tudo, e em tudo deles se dependia por meio dos áugures. Sobre o destino da Cidade, das colheitas, sobre a força do inimigo e o resultado antecipado das batalhas. Nas guerras lutavam lado a lado com a população. Mas podiam mudar de lado a qualquer momento, traindo seus protegidos sem escrúpulo algum!
Tinham o caráter mais afeito às paixões humanas do que à perfeição divina. Por isto, não está muito longe deduzir que a mitologia criasse múltiplas fábulas envolvendo deuses poderosos apaixonados pelos encantos de belas virgens e elaborando nesta via as mais fantásticas histórias que exprimiam da melhor maneira possível a cosmovisão de cada povo.
Assim, é importante termos a perspectiva correta dos povos antigos, de seus costumes e de sua religiosidade. Para eles, a noção de um Deus único, Criador do céu e da terra, como a que era tida pelo povo judeu, soava totalmente inédita. Despertava-lhes admiração, especialmente por parte do povo grego.
Aqui entra um conceito fundamental: é reação comum do cristão rejeitar tudo quanto é pagão. Isto se deve a toda a tradição do povo judeu, que era severamente advertido por Deus contra aqueles costumes, em especial a idolatria. Mas isto se deu por uma pedagogia divina que preparava aquele grupo não para a construção de uma cultura mitológica, mas para a revelação de Si mesmo, o Deus único e verdadeiro, cujo ápice desta revelação se deu com o Seu Cristo.
Portanto, o correto para o cristão não é abominar o Paganismo antigo que jaz no passado como riqueza cultural de cada povo, mas lutar bravamente contra o Neopaganismo, que quer recuar ao passado, desprezando todos os avanços advindos do Cristianismo e tentando suprimí-lo.
Deus não odeia o Paganismo ou as culturas antigas, mas se utiliza deles, transformando-os, para a edificação do seu Povo. A prova disto está no pacto com Abraão (Gênesis 15, 8-21). Analisemos: Abraão sente-se inseguro ante a proposta do Senhor. Este então lhe ordena que reúna vários animais. Abraão faz como foi ordenado, mas, sem orientação prévia, corta os animais ao meio. Isto indica que se tratava de um costume antigo, um ritual entre os pactuantes, que deveriam caminhar entre as partes seccionadas. Quem descumprisse o acordo estaria sujeito ao mesmo fim dos animais. Sabemos como terminou, o Senhor desceu de sua Glória em forma de tochas cumprindo sua parte na cerimônia enquanto Abraão caiu em sonolência. O próprio Deus então utilizou-se de um costume antigo. Assim, também serviu-se do conceito de sacrifício, uma realidade muito antiga. Outro exemplo: o Cristianismo transformou a comemoração do deus pagão Mitra na celebração do Natal do Senhor.
“Pertence aos cristãos tudo o que os pagãos disseram de bom”, nos diz Santo Agostinho que estudou os filósofos gregos[1].
Dante Alighieri incorporou sua mitologia na Divina Comédia.
Mais recentemente, em 1531, Nossa Senhora de Guadalupe, esplendorosa padroeira da América Latina, surge na colina do Tepeyac, local de veneração da deusa Tonantzin. Apresentando-se como a Mãe do Deus, por quem se vive com ornamentos indígenas que lhe indicavam gravidez. Mas os sinais evidentes da cultura local são complementados pela indumentária tipicamente judaica. Ela deixa igualmente claro que trata-se de Maria, a Mãe de Jesus. Fala em nahuatl com Juan Diego, língua nativa, mas não dirige-se à autoridade asteca, nem à espanhola, mas à eclesiástica, ao Bispo Don Juan de Zumarraga.
Esta é a ação do Cristianismo, transformar toda a cultura pagã para que possa, convertendo-se, conhecer a verdade. Todos estes fenômenos culturais da Antiguidade similares entre si podem a princípio tentar reduzir o Cristianismo a mais uma modalidade de Paganismo – especialmente pelas palavras de pessoas mal informadas ou mal intencionadas. Entretanto, são na realidade argumento justamente contrário.
Se cremos que Jesus é o Salvador de toda a humanidade e que toda ela descende da mesma história da Criação, então é natural que em todo lugar haja uma lembrança comum. Se cremos que a Salvação que Cristo traz é realmente católica, ou seja, universal, então podemos crer em uma percepção semelhante da realidade nos diversos povos, em uma certa similaridade de cosmovisões em todas as civilizações, quase como uma espécie de profecia. “O desejo por Deus está inscrito no coração do homem”[2]. Não é temerário, portanto, afirmar que todas as civilizações procuraram pelo mesmo Deus dos judeus e dos cristãos, porém de forma rudimentar. Este encontro somente se tornou nítido a partir da Revelação. Portanto, a mitologia pode ser tomada como uma busca, uma intuição das realidades divinas, ainda que insipiente e fantasiosa.
São Paulo nos diz que toda a Criação geme e sofre como que em dores de parto, em espera pela Redenção (Romanos 8,22-23). A Criação compreende o mundo inteiro, para além das fronteiras de Israel, e inclui nela também as civilizações antigas.
Para finalizar, deixo a palavra para o próprio Fustel de Coulanges, que pode com muito mais propriedade neste campo distinguir o que é a religião cristã:
“Com o Cristianismo, o sentimento religioso não apenas reavivou, mas adquiriu uma expressão mais elevada e menos material. Enquanto outrora endeusara-se a alma humana ou as grandes forças físicas, começava-se a conceber Deus na sua essência (…) Enquanto outrora cada homem fizera o seu deus, e que havia tantos deuses quantas famílias e cidades, Deus agora aparece como um Ser único, infinito, universal, que sozinho anima os mundos e sozinho preenche a necessidade de adoração inerente ao homem”[3].
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NOTAS
[1] Prof. Felipe Aquino, “Na Escola dos Santos Doutores – Santo Agostinho”, nº 129. * [2] Catecismo da Igreja Católica, §27 * [3] Fustel de Coulanges, “A Cidade Antiga”, cap. III, pág. 483. * Veja também: Pedro Ravazzano, “Leitor pergunta sobre as similaridades entre o Cristianismo e o Paganismo”, disponível em Veritatis Splendor.