“Bíblia e moral: raízes bíblicas do agir cristão” (11.05.2008)

Congregação para a Doutrina da Fé
Pontifícia Comissão Bíblica
BÍBLIA E MORAL – RAÍZES BÍBLICAS DO AGIR CRISTÃO

 

  • “2. Eu sou o SENHOR teu Deus, que te tirou do Egito, da casa da escravidão. 3. Não terás outros deuses além de mim. 4. Não farás para ti imagem esculpida nem figura alguma do que existe em cima nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas debaixo da terra. 5. Não te prostrarás diante dos ídolos, nem lhes prestarás culto, pois eu sou o SENHOR teu Deus, um Deus ciumento. Castigo a culpa dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração dos que me odeiam, 6. mas uso de misericórdia por mil gerações para com os que me amam e guardam os meus mandamentos. 7. Não pronunciarás o nome do SENHOR teu Deus em vão, por que o SENHOR não deixará sem castigo quem pronunciar seu nome em vão. 8. Lembra-te de santificar o dia do sábado. 9. Trabalharás durante seis dias e farás todos os trabalhos, 10. mas o sétimo dia é sábado, descansodedicado ao SENHOR teu Deus. Não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu gado, nem o estrangeiro que vive em tuas cidades. 11. Porque em seis dias o SENHOR fez o céu e a terra, o mar e tudo o que eles contêm, mas no sétimo dia descansou. Por isso o SENHOR abençoou o dia do sábado e o santificou. 12. Honra teu pai e tua mãe, para que vivas longos anos na terra que o SENHOR teu Deus te dará. 13. Não cometerás homicídio. 14. Não cometerás adultério. 15. Não furtarás. 16. Não darás falso testemunho contra o teu próximo. 17. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu jumento, nem coisa alguma do que lhe pertença” (Êxodo 20,2-17).

 

 

  • “3. Felizes os pobres no espírito, porque deles é o Reino dos Céus. 4. Felizes os que choram, porque serão consolados. 5.Felizes os mansos, porque receberão a terra em herança. 6. Felizes os que têm fome e sede da justiça, porque serão saciados. 7. Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. 8. Felizes os puros no coração, porque verão a Deus. 9. Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. 10. Felizes os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. 11. Felizes sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós por causa de mim. 12.Alegrai-vos e exultai, porque é grande a vossa recompensa nos céus. Pois foi deste modo que perseguiram os profetas que vieram antes de vós” (Mateus 5,3-12).

 

PREFÁCIO

O anelo de felicidade, ou seja, o desejo de obter uma vida plenamente satisfatória, está desde sempre enraizado no coração humano. A realização desse desejo depende em grande parte do próprio agir, o qual encontra-se, e freqüentemente desencontra-se, com o dos outros. Como é possível conseguir determinar o justo agir que conduz cada pessoa, as comunidades, as nações inteiras para uma vida bem sucedida ou, em outras palavras, para a felicidade?

Para os cristãos, a Sagrada Escritura não é somente a fonte da revelação, a base da fé, mas também o imprescindível ponto de referência da moral. Os cristãos estão convencidos de que, na Bíblia, se pode encontrar indicações e normas para agir retamente e para atingir a vida plena.

A essa convicção opõem-se diversas objeções. Uma primeira dificuldade é a recusa de normas, obrigações e mandamentos, recusa instintiva na pessoa humana e hoje particularmente aguda. Na sociedade de hoje, apresentam-se como igualmente fortes o desejo de uma plena felicidade e o desejo de uma ilimitada liberdade, ou seja, de poder agir segundo o próprio arbítrio, sem vínculo com qualquer norma. Para alguns, essa ilimitada liberdade é mesmo essencial para atingir a plena e verdadeira felicidade. Segundo essa mentalidade, a dignidade da pessoa humana exigiria que ela não deva aceitar norma alguma que lhe venha imposta de fora, mas que seja ela mesma a determinar livremente e autonomamente o que considera justo e válido. Por conseguinte, o complexo normativo presente na Bíblia, o desenvolvimento da Tradição e o Magistério da Igreja que interpreta e concretiza essas normas, aparecem como obstáculos que se opõem à felicidade e dos quais é necessário livrar-se.

Uma segunda dificuldade é devida à própria Sagrada Escritura: os escritos bíblicos foram redigidos ao menos há mil e novecentos anos. Pertencem, portanto, a épocas remotas, cujas condições de vida eram muito diversas das de hoje. Muitíssimas situações e problemas atuais são completamente ignorados nos escritos bíblicos e, por isso, retém-se que não se pode encontrar neles respostas apropriadas a esses problemas. Por conseguinte, mesmo quando se reconhece o valor fundamental da Bíblia como texto inspirado e normativo, em alguns permanece uma atitude fortemente cética. Pois estão convencidos de que a Bíblia não pode servir para encontrar as soluções para os inúmeros problemas de hoje. O ser humano de hoje se confronta diariamente com problemas morais delicados que o desenvolvimento das ciências humanas e a globalização colocam constantemente em questão, a ponto de que mesmo crentes convictos têm a impressão de que algumas certezas de outrora estejam anuladas. Pense-se tão só nos temas da violência, do terrorismo, da guerra, da imigração, da partilha das riquezas, do respeito aos recursos naturais, da vida, do trabalho, da sexualidade, das pesquisas no campo genético, da família ou da vida comunitária. Frente a essa complexa problemática tem vindo a tentação de marginalizar, em todo ou em parte, a Sagrada Escritura. Também nesse caso, embora com motivação diversa, prescinde-se mais ou menos do texto sagrado e procuram-se com outros meios soluções para os grandes e urgentes problemas de hoje.

A Pontifícia Comissão Bíblica, desde 2002, por encargo do então Presidente Cardeal Joseph Ratzinger, quis por isso enfrentar a relação entre Bíblia e moral, pondo-se de frente à seguinte pergunta: qual é o valor e o significado do texto inspirado para a moral no nosso tempo, no qual não se pode ignorar as mencionadas dificuldades?

Na Bíblia encontram-se muitas normas, mandamentos, leis, coleções de códigos etc. Uma atenta leitura faz ressaltar, porém, que tais normas não são jamais isoladas, valendo por si mesmas, antes pertencem sempre a um determinado contexto. Pode-se dizer que, na antropologia bíblica, o que é primário e fundamental é o agir de Deus, que antecede o do ser humano, os seus dons de graça, o seu convite à comunhão: o complexo normativo é uma conseqüência para indicar ao ser humano qual seja o modo adequado de acolher o dom de Deus e de vivê-lo. Na base dessa concepção bíblica está a visão da pessoa humana assim como foi criada por Deus: ela não é jamais um ser isolado, autônomo, desvinculado de tudo e de todos, mas se encontra num relacionamento radical e essencial com Deus e com a comunidade dos irmãos e irmãs. Deus criou o ser humano segundo a sua própria imagem: a própria existência do ser humano é o primeiro e fundamental dom que ele recebeu de Deus. Na perspectiva bíblica, um discurso sobre as normas morais não pode ser restrito a elas, tomadas de modo isolado, mas deve ser sempre inserido no contexto da visão bíblica da existência humana.

A primeira parte do documento propõe-se apresentar essa característica concepção bíblica na qual antropologia e teologia se compenetram mutuamente. Seguindo a ordem canônica da Bíblia, a pessoa humana aparece primeiro como criatura à qual Deus concedeu a própria vida, e depois como membro do povo escolhido com o qual Deus estipulou uma particular aliança e, finalmente, como irmão e irmã de Jesus, o Filho encarnado de Deus.

Na segunda parte do documento põe-se em evidência que, na Sagrada Escritura, não se pode encontrar diretamente soluções aos numerosos problemas de hoje. Mesmo assim a Bíblia, embora não ofereça soluções pré-fabricadas, apresenta critérios cuja aplicação ajuda a encontrar soluções válidas para o agir humano. São indicados, antes de tudo, dois critérios fundamentais: a conformidade com a visão bíblica do ser humano e a conformidade com o exemplo de Jesus, seguindo-se outros critérios particulares. Do conjunto da Sagrada Escritura, com efeito, pode-se deduzir ao menos seis linhas de força para chegar a tomadas de posição morais sólidas, que se apóiem sobre a revelação bíblica: 1) uma abertura às diversas culturas e portanto um certo universalismo ético (critério da convergência); 2) uma tomada de posição firme contra os valores incompatíveis (critério da contraposição); 3) um processo de refinamento da consciência moral, que se encontra no interior de cada um dos dois Testamentos (critério da progressão); 4) uma retificação da tendência a relegar as decisões morais apenas à esfera subjetiva, individual (critério da dimensão comunitária); 5) uma abertura a um futuro absoluto do mundo e da história, susceptível de assinalar em profundidade o objetivo e a motivação do agir moral (critério da finalidade); 6) uma determinação atenta, segundo os casos, do valor relativo ou absoluto de princípios e preceitos morais (critério do discernimento).

Todos esses critérios, cujo elenco é representativo mas não exaustivo, são profundamente radicados na Bíblia e a sua aplicação poderá ajudar o crente: trata-se de mostrar quais sejam os pontos que a revelação bíblica oferece para ajudar-nos, hoje, no processo delicado de um justo discernimento moral.

Exprimo aos membros da Pontifícia Comissão Bíblica o meu agradecimento pelo seu paciente e dedicado trabalho. Desejo que o presente texto ajude a descobrir sempre mais os valores fascinantes da vida genuinamente cristã e a considerar a Bíblia como tesouro inexaurível e sempre atual para a determinação do justo agir do qual depende o sucesso e a plena felicidade de cada pessoa e de toda a comunidade humana.

William Cardeal Levada
Presidente

11 de maio de 2008
Solenidade de Pentecostes

* * *

INTRODUÇÃO

1. Desde sempre o ser humano está à procura de felicidade e de sentido. Como diz finamente Santo Agostinho: “Ele quer ser feliz mesmo vivendo de tal modo que não o seja” (De civitate Dei, XIV, 4). Essa expressão já põe o problema da tensão entre o desejo profundo do ser humano e as suas opções morais mais ou menos conscientes. Pascal exprime de modo admirável a mesma tensão: “Se o homem não é feito para Deus, por que é feliz somente em Deus? Se o homem é feito para Deus, por que se revela tão oposto a Deus?” (Pensées, II, 169).

Propondo uma reflexão, a mais articulada possível, sobre o assunto delicado das relações entre Bíblia e moral, a Comissão Bíblica parte intencionalmente de dois pressupostos determinantes: 1 – Deus é, para cada crente e para cada ser humano, a resposta última a esta busca de felicidade e de sentido, 2 – a Sagrada Escritura, una, isto é abrangendo ambos os Testamentos, é uma base (“lugar”) válida e útil de diálogo com o ser humano contemporâneo sobre as questões que tocam a moral.

0.1. Um mundo que procura respostas

2.Não é possível, enquanto se aborda este projeto, fazer abstração da conjuntura atual. Na era da mundialização, observa-se em muitas das nossas sociedades uma transformação rápida de escolhas éticas, sob o choque dos deslocamentos de populações, das relações sociais tornadas mais complexas e dos progressos da ciência, especialmente no campo da psicologia, da genética e das técnicas da comunicação. Tudo isso exerce uma influência profunda sobre a consciência moral de muitas pessoas e grupos, a tal ponto que tende a desenvolver-se uma cultura fundada sobre o relativismo, a tolerância e a abertura às novidades, nem sempre suficientemente alicerçada nos seus fundamentos filosóficos e teológicos. Também para um bom número de cristãos católicos essa cultura da tolerância tem como contrapartida uma crescente desconfiança, mesmo uma marcada intolerância diante de certos aspectos do ensinamento moral da Igreja solidamente radicados na Escritura. Como chegar ao equilíbrio?

0.2. Nossos objetivos

3. No presente documento o leitor não encontrará nem uma teologia bíblica completa em matéria de moralidade, nem, ainda menos, receitas ou respostas feitas para os problemas morais, antigos ou novos, que são discutidos em nossos dias sobre todas as tribunas, compreendidos os meios de comunicação de massa. Nosso trabalho não pretende substituir o dos filósofos e dos teólogos moralistas. Um tratamento adequado dos problemas concretos postos pela moral necessitaria de um aprofundamento racional e também de um tratamento das ciências humanas, o que sairia claramente do campo da nossa competência. O nosso objetivo, mais modesto, é duplo.

1 – Antes de tudo, situar a moral cristã no horizonte mais vasto da antropologia e das teologias bíblicas. Isso ajudará desde o início a fazer emergir mais claramente a sua especificidade e a sua originalidade em relação seja às éticas e às morais naturais, fundadas na experiência humana e na razão, seja às morais propostas por outras religiões.

2 – O outro objetivo é, de certa maneira, mais prático. Não é fácil utilizar a Bíblia com propriedade quando nela se buscam luzes para aprofundar uma reflexão moral ou elementos de resposta no confronto de problemáticas ou situações morais delicadas. Entretanto, a própria Bíblia fornece ao leitor alguns critérios metodológicos aptos a facilitar esse caminho.

Esse duplo objetivo comanda e explica a estrutura bipartida do presente documento. Num primeiro tempo: “uma moral revelada: dom divino e resposta humana”; depois: “alguns critérios bíblicos para a reflexão moral”.

Do ponto de vista do método, sem deixar de lado o método histórico-crítico, inevitável por vários motivos, pareceu-nos útil, para os fins da nossa exposição, privilegiar claramente a abordagem canônica das Escrituras (cf. Pontifícia Comissão Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja, I, C, 1).

0.3. Linhas de fundo para compreender a orientação do documento

0.3.1. O conceito chave: “moral revelada”

4. Num primeiro tempo, por fidelidade ao movimento de fundo da Escritura na sua totalidade, introduziremos o conceito, talvez não habitual, de “moral revelada”. Para a nossa exposição, é um conceito chave. Para chegar a falar de “moral revelada” é preciso livrar-nos de algumas pré-compreensões correntes. Enquanto se reduzir a moral a um código de comportamento individual e coletivo, a um conjunto de virtudes a praticar ou também aos imperativos de uma lei natural considerada universal, não se pode perceber suficientemente toda a especificidade, a bondade e a atualidade permanente da moral bíblica.

Seja-nos permitido introduzir logo duas idéias fundamentais, que teremos ocasião de desenvolver em seguida: 1 – a moral, sem ser secundária, é segunda. O que é primeiro e fundamental é a iniciativa de Deus, que exprimiremos teologicamente em termos de dom. Em perspectiva bíblica, a moral se enraíza no dom prévio da vida, da inteligência e de uma vontade livre (criação), e sobretudo na oferta totalmente gratuita de uma relação privilegiada, íntima, do ser humano com Deus (aliança). Esta não é primeiramente resposta do homem, mas sim desvelamento do projeto de Deus e dom de Deus. Em outros termos, para a Bíblia, a moral vem depois da experiência de Deus, mais precisamente depois da experiência que Deus concede ao ser humano por dom puramente gratuito; 2 – a partir daqui, a própria Lei, parte integrante do processo da aliança, é dom de Deus. Ela não é de partida uma noção jurídica, impostada sobre comportamentos e atitudes, mas um conceito teológico, que a própria Bíblia traduz, tentativamente, com o termo “caminho” (derek em hebraico, hodós em grego): um caminho proposto.

No contexto presente, uma tal perspectiva de aproximação se impõe de modo todo particular. O ensinamento moral, por certo, faz parte da missão essencial da Igreja, mas em segunda instância, em relação à valorização do dom de Deus e da experiência espiritual, coisa que os homens do nosso tempo às vezes têm dificuldade de perceber e de examinar adequadamente.

O termo “moral revelada” não é talvez clássico nem habitual. Contudo, ele se inscreve no horizonte traçado pelo concílio Vaticano II na Constituição dogmática sobre a Divina Revelação. O Deus da Bíblia não revela antes de tudo um código, mas “a si mesmo” no seu mistério e “o mistério da sua vontade”. “Essa economia da revelação acontece com eventos e palavras intimamente conexos entre si, de tal modo que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e reforçam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras, e as palavras proclamam as obras e iluminam o mistério nelas contido.” (Dei Verbum, I, 2). Portanto, todos os atos com os quais Deus se revela têm uma dimensão moral pelo fato de que interpelam os seres humanos a conformarem seu pensamento e sua ação ao modelo divino: “Sede santos, porque eu, o SENHOR vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2); “Sede, portanto, perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48).

0.3.2. A unidade dos dois Testamentos

5. Toda a revelação – ou seja, o projeto de Deus que quer dar-se a conhecer e abrir a todos os caminho da salvação – converge para Cristo. No coração da Primeira Aliança, o “caminho” designa ao mesmo tempo um percurso de êxodo (o evento libertador primordial) e um conteúdo didático, a Torá. No coração da Nova Aliança, Jesus diz de si mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Condensa, portanto, na sua pessoa e na sua missão toda a dinâmica libertadora de Deus e também, em certo sentido, toda a moral, concebida teologicamente como dom de Deus , isto é, caminho para chegar à vida eterna, à intimidade total com Ele. Percebe-se aí a unidade profunda dos dois Testamentos. Hugo de São Vítor exprimia essa intuição com uma fórmula incisiva: “Toda a Escritura é um livro somente, e esse único livro é Cristo” (De arca Noe, II, 8).

Ter-se-á cuidado de não opor Antigo e Novo Testamento, em matéria de moral como em qualquer outro campo. Nesse caso, o documento precedente da Pontifícia Comissão Bíblica poderá fornecer balizas úteis, quando assinala as relações entre ambos os Testamentos em termos de continuidade, descontinuidade e progressão (O povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã, nn. 40-42).

0.4. Os destinatários do documento

6. Estamos conscientes de que nosso discurso é recebido em primeiro lugar pelo crente, a quem é primariamente destinado. Todavia esperamos suscitar um diálogo mais amplo entre homens e mulheres de boa vontade, de diversas culturas e religiões, que procuram, para além das vicissitudes do cotidiano, um caminho autêntico de felicidade e de sentido.

PRIMEIRA PARTE – UMA MORAL REVELADA: DOM DIVINO E RESPOSTA HUMANA

7. A relação entre dom divino e resposta humana, entre ação antecedente de Deus e tarefa do homem, é determinante para a Bíblia e para a moral nela revelada. Começando na criação, procuramos descrever os dons de Deus segundo as diversas fases do seu agir em favor da humanidade e do povo eleito, e acrescentamos sempre as tarefas que Deus ligou com os seus dons.

Além da relação apenas descrita, dois outros fatores são fundamentais para a moral bíblica. Ela não é caracterizada por um moralismo rigoroso, pelo contrário, o perdão para as pessoas caídas faz parte do dom de Deus. E, como se manifesta claramente no Novo Testamento, o agir terreno desenvolve-se no horizonte inspirador da vida eterna, que é o cumprimento dos dons de Deus.

1. O dom da criação e suas implicações morais

1.1.O dom da criação

8. A Bíblia nos apresenta Deus como Criador de tudo o que existe, especialmente nos primeiros capítulos do Gênesis e numa série de salmos.

1.1.1.No início do Gênesis

O grande ciclo narrativo que se desenvolve no Pentateuco é introduzido pelos dois relatos das origens (Gn 1-2).

Segundo uma perspectiva canônica, o ato divino da criação é o primeiro do relato bíblico. Esta criação inicial compreende tudo, “o céu e a terra” (Gn 1,1). Com isso se afirma que tudo é devido à determinação de Deus e é livre dom de Deus Criador. Para Israel, o reconhecimento de Deus como Criador de tudo não é o início do conhecimento de Deus, mas é fruto da sua experiência com Deus e da história da sua fé.

O dom específico do Criador para o homem consiste no fato de que Deus o criou à sua imagem: “Façamos o ser humano à nossa imagem e segundo a nossa semelhança” (Gn 1,26). Segundo a ordem do relato (Gn 1,1-31), o homem aparece como a meta da criação de Deus. Em Gn 1,26-28 o homem é descrito como lugar-tenente de Deus, de modo que ele se reporta ao seu Criador e este último – invisível e sem imagem – se reporta à sua criatura, o ser humano. Apresenta-se aqui um programa de antropologia teológica no sentido estrito do termo, enquanto pode falar de Deus só aquele que fala do homem e, vice-versa, pode falar do homem somente aquele que fala de Deus.

Querendo especificar, o homem é “imagem” de Deus por causa, ao menos, de seis características:

1. a racionalidade, isto é, a capacidade e a obrigação de conhecer e de compreender o mundo criado;

2. a liberdade, que implica a capacidade e o dever de decidir e a responsabilidade pelas decisões tomadas (Gn 2);

3. uma posição de comando, porém de modo algum absoluto, e sim sob o domínio de Deus;

4. a capacidade de agir em conformidade com Aquele do qual a pessoa humana é imagem, ou seja, de imitar Deus;

5. a dignidade de ser uma pessoa, um ser ‘relacional’, capaz de ter relações pessoais com Deus e com os outros seres humanos (Gn 2);

6. a santidade da vida humana.

1.1.2. Em alguns Salmos

9. A parte da Bíblia na qual se fala mais de Deus Criador é uma série de salmos, por exemplo: Sl 8; 19; 139; 145; 148. Os salmos manifestam uma compreensão soteriológica da criação, porque vêem uma ligação entre a atividade de Deus na criação e a sua atividade na história da salvação. Eles descrevem a criação não em linguagem científica mas simbólica; não apresentam nem mesmo reflexões pré-científicas sobre o mundo, mas exprimem o louvor do Criador da parte de Israel.

É afirmada a transcendência e a preexistência do Criador, que existe antes de toda a criação: “Antes que nascessem os montes, e a terra e o mundo fossem gerados, desde sempre e para sempre tu és, Deus” (Sl 90,2). Por outro lado, o mundo é caracterizado pelo tempo e pela história, pelo começar e pelo passar. Deus não pertence ao mundo e não faz parte do mundo. Pelo contrário, o mundo existe só porque Deus o criou e continua a existir só porque Deus o conserva na existência a cada momento. Aquele que criou provê o necessário para cada criatura: “Os olhos de todos em ti esperam, e tu lhes forneces o alimento na hora certa. Abres a mão, e sacias o desejo de todo ser vivo” (Sl 145,15-16).

O universo não é um todo fechado em si, que sustente a si mesmo. Pelo contrário, os seres humanos junto com todas as outras criaturas dependem continuamente e radicalmente do seu Criador. É Deus quem, numa creatio continua lhes dá a vitalidade e os mantém na existência. Enquanto Gn 1 fala de Deus e da obra da criação, o Sl 104 fala a Deus criador em uma prece baseada sobre a experiência da bondade maravilhosa da criação, constatando a dependência total de toda criatura: “Se escondes teu rosto, desfalecem. Se a respiração lhes tiras, morrem e voltam ao pó. Mandas teu espírito, são criados, e assim renovas a face da terra” (Sl 104,29-30).

Do mesmo Deus que tudo criou e mantém, Israel espera a ajuda: “Nosso auxílio está no nome do Senhor, que fez o céu e a terra” (Sl 124,8; cf. 121,2). A potência desse Deus, porém, não está restrita a Israel mas abrange todo o mundo, todos os povos: “Que toda a terra tema o Senhor, tremam diante dele todos os habitantes do mundo” (Sl 33,8). O convite ao louvor do Criador estende-se a toda a criação: céu e terra, sol e lua, monstros marinhos e feras, reis e povos, jovens e anciãos (Sl 148). O domínio de Deus estende-se a tudo o que existe.

O Criador assinalou uma posição especial ao ser humano. Não obstante a fragilidade e a caducidade humanas, o salmista afirma com assombro: “Contudo, tu o fizeste só um pouco menor que um deus, de glória e de honra o coroaste. Tu o colocaste à frente das obras de tuas mãos, tudo puseste sob os seus pés (Sl 8, 6-7). “Glória” e “honra” são atributos do rei: mediante eles vem atribuída ao ser humano uma posição régia na criação de Deus. Esse “status” torna o ser humano próximo de Deus, o qual é sobremaneira caracterizado por “glória” e “honra” (cf. Sl 29,1: Sl 104, 1), e o coloca, ao homem, acima do restante da criação. Chama-o a governar sobre o mundo criado, mas com responsabilidade e de modo sábio e benévolo, características do reino do próprio Criador.

1.1.3. Dados fundamentais da existência humana

10. Ser criatura de Deus, ter recebido tudo da parte de Deus, ser essencialmente e intimamente um dom de Deus, isso é o dado fundamental da existência humana e portanto também do agir humano. Essa relação com Deus não se acrescenta como elemento secundário e transitório à existência humana, mas constitui-se como seu fundamento permanente e insubstituível. Segundo essa concepção bíblica, nada do que existe provém de si mesmo, numa espécie de auto-criação, nem é fruto do acaso, mas é fundamentalmente determinado pela vontade e potência criadora de Deus. Esse Deus é transcendente e não faz parte do mundo. Mas o mundo e o ser humano no mundo, não existem sem Deus, dependem radicalmente de Deus. O ser humano não pode adquirir uma verdadeira e real compreensão do mundo e de si mesmo sem Deus, sem reconhecer essa total dependência de Deus. Tal dom inicial é o dom fundamental que permanece e que não é cancelado mas aperfeiçoado pelas sucessivas intervenções e dons divinos.

Esse dom é determinado pela vontade criadora de Deus, e por isso o homem não pode tratá-lo ou utilizá-lo de modo arbitrário, mas deve descobrir e respeitar as características e estruturas que o Criador concedeu à sua criatura.

1.2. O ser humano criado como imagem de Deus e a sua responsabilidade moral

11. Quando se compreende que todo o mundo é criado por Deus, é um dom intimamente e continuamente dependente de Deus, daí resulta o empenho sério para descobrir os modos de agir que o próprio Deus inseriu no ser humano e em toda a sua criação.

1.2.1. Segundo os relatos da criação

Cada uma das características que tornam o ser humano “imagem de Deus” traz consigo importantes implicações morais.

1. O conhecimento e o discernimento fazem parte do dom de Deus. O ser humano é capaz e, como criatura, está obrigado a indagar o projeto de Deus e a procurar discernir a vontade divina para poder agir com justiça.

2. Por causa da liberdade que lhe é dada, o ser humano é chamado ao discernimento moral, à escolha, à decisão. Em Gn 3,22, depois do pecado de Adão e a sua sanção, Deus diz: “Eis que o homem tornou-se como um de nós, capaz de conhecer o bem e o mal.” O texto é difícil de explicar. Por um lado, tudo indica que a afirmação tem um sentido irônico, porque mediante as próprias forças, apesar da proibição, o homem procurou apoderar-se do fruto e não esperou que Deus lho desse no tempo oportuno. De outro lado, o significado da árvore do conhecimento total – assim deve entender-se a expressão bíblica ‘conhecer o bem e o mal’ – não se limita a uma perspectiva moral, mas significa também o conhecimento dos resultados bons e maus, isto é, do futuro e do destino: isso compreende o domínio do tempo, que é competência exclusiva de Deus. Quanto à liberdade moral dada ao ser humano, ela não se reduz a um simples auto-regulamento e auto-determinação, uma vez que o ponto de referência não é o eu nem o tu, mas o próprio Deus.

3. A posição de comando confiada ao ser humano implica responsabilidade, empenho de gestão e administração. Também ao homem compete a tarefa de formar de modo “criativo” o mundo feito por Deus. Ele deve aceitar essa responsabilidade, também porque a criação não deve ser conservada num estado determinado, mas está desenvolvendo-se, e o homem, como ser que une em si mesmo natureza e cultura, encontra-se junto a toda a criação.

4. Essa responsabilidade deve ser exercitada de um modo sábio e benévolo, imitando o domínio do próprio Deus sobre a sua criação. Os homens podem conquistar a natureza e explorar as amplidões do espaço. Os extraordinários progressos científicos e tecnológicos do nosso tempo podem ser considerados como realizações da tarefa dada pelo Criador à humanidade, a qual entretanto deve respeitar os limites fixados pelo Criador. Caso contrário, a terra torna-se lugar de exploração indevida, que pode destruir o delicado equilíbrio e a harmonia da natureza. Seria certamente ingênuo pensar que possamos encontrar uma solução da atual crise ecológica no Salmo 8; ele, porém, entendido no contexto de toda a teologia da criação em Israel, questiona praxes hodiernas e exige um novo sentido de responsabilidade pela terra. Deus, a humanidade e o mundo criado estão conexos entre si e por isso também teologia, antropologia e ecologia. Sem o reconhecimento do direito de Deus em relação a nós e em relação ao mundo, o domínio degenera facilmente em dominação desenfreada e em exploração que conduzem ao desastre ecológico.

5. A dignidade que as pessoas possuem como seres relacionais convida-as e as obriga a procurarem e viverem um relacionamento com Deus a quem devem tudo; fundamental para o relacionamento com Deus é a gratidão (cf. o parágrafo seguinte, n. 12, baseado nos salmos). Isso também implica entre as pessoas uma dinâmica das relações de responsabilidade comum, de respeito ao outro e uma contínua busca de equilíbrio, não somente entre os sexos mas também entre a pessoa e a comunidade (entre valores individuais e sociais).

6. A santidade da vida humana requer um respeito e tutela totalmente abrangentes, e veta o derramamento do sangue humano, “porque à imagem de Deus ele fez o ser humano” (Gn 9,6).

1.2.2. Segundo os Salmos

12. O reconhecimento de Deus como Criador conduz ao louvor e à adoração, pois a criação atesta a divina sabedoria, poder e fidelidade. Louvando a Deus, junto com o salmista, pelo esplendor, a ordem e a beleza da criação, somos incitados a um profundo respeito para com o mundo do qual os homens fazem parte. A pessoa humana constitui o cume da criação porque somente os homens podem ter um relacionamento pessoal com Deus e podem articular o seu louvor também como representantes das outras criaturas. Por meio dos homens e mediante o culto da comunidade, toda a criação exprime o louvor de Deus criador (cf. Sl 148). Os salmos da criação conduzem também a uma sã e positiva valorização do mundo atual, porque a vida neste mundo é fundamentalmente boa. No passado, pôde acontecer que a tradição cristã estivesse tão ocupada com a salvação eterna das pessoas, que ela deixava de dar a justa atenção ao mundo natural. Entretanto, a dimensão cósmica da fé na criação, articulada nos Salmos, exige que a atenção se volte para a natureza e a história, para o mundo humano e o sub-humano, envolvendo assim ao mesmo tempo a cosmologia como a antropologia e a teologia.

O saltério se ocupa dos temas inevitáveis da existência humana num mundo de mistério, incerteza e ameaça (cf. os salmos de lamentação). Os salmistas mantêm a confiança num Criador benévolo que continuamente cuida de suas criaturas. Isto suscita um contínuo hino de louvor e de ação de graças: “Louvai o Senhor pois Ele é bom, pois eterno é o seu amor” (Sl 136,1).

1.2.3. Conclusão: nas pegadas de Jesus

13.O Novo Testamento assume plenamente a teologia da criação do Antigo Testamento, conferindo-lhe ainda uma dimensão cristológica determinante (p. ex. Jo 1,1-18; Cl 1,15-20). Isso implica evidentemente conseqüências morais. Jesus torna caducas as prescrições antigas sobre o puro e o impuro (Mc 7,18-19), assim aceitando, na esteira do Gênesis, que todas as coisas criadas são boas. Paulo vai exatamente no mesmo sentido (Rm 14,14; cf. 1Tm 4,4-5). Quanto à expressão-chave “imagem de Deus”, o córpus paulinoretoma-a para aplicá-la não só a Cristo, “primogênito da criação” (Cl 1,15), mas a cada ser humano (1Cor 11,7; Cl 3,10). Não causa admiração que nas cartas se reencontrem as características antropológicas sugeridas por aquela expressão, unida ao aspecto moral: racionalidade (“lei escrita nos corações”, “lei da razão”; Rm 2,15. 7,23), liberdade (1Cor 3,17; Gl 5,1.13), santidade (Rm 6,22; Ef 4,24), etc. Teremos mais tarde (cf. nn. 97, 99) ocasião de tratar da dimensão relacional, especialmente no que se refere ao instituto matrimonial (cf Gn 1,27: “homem e mulher ele os criou”).

2. O dom da aliança no Antigo Testamento e as normas para o agir humano

14. A criação e as suas implicações morais são o dom inicial e permanecem o dom fundamental de Deus, mas não são o seu único e último dom. Além de na criação, Deus manifestou sua infinita bondade e se dirigiu às suas criaturas humanas especialmente na eleição do povo de Israel e na aliança que Ele celebrou com esse povo, revelando ao mesmo tempo o caminho justo para o agir humano.

Para apresentar a riqueza do tema bíblico da aliança, convém tomá-la em consideração por dois pontos de vista: a progressiva percepção dessa realidade na história de Israel, e a apresentação narrativa que se encontra na redação final da Bíblia canônica.

2.1. A progressiva percepção da aliança (abordagem histórica)

2.1.1. Uma primeira experiência fundamental e fundadora: um caminho comum para a liberdade

15. Geralmente há consenso em atribuir ao tempo de Moisés o nascimento de Israel como povo constituído. Mais precisamente, numa perspectiva de teologia bíblica, identifica-se na saída do Egito o evento histórico fundamental e fundador.

Só mais tarde, e na base do elemento fundador, foram recuperadas e reinterpretadas as tradições orais que se referem aos antepassados da era patriarcal e foram apresentadas as origens da humanidade em relatos prevalentemente teológicos e simbólicos. Grosso modo, portanto, podem-se considerar os eventos narrados no Gênesis como pertencentes à pré-história de Israel como povo constituído.

2.1.2. Uma primeira intuição de interpretação teológica

16. Se a saída do Egito permitiu a aparição de Israel como povo constituído, esse fato deve-se a uma interpretação teológica do evento, como se encontra presente, ao menos de modo germinal, desde as origens. Tal interpretação teológica sumária se reduz a isto: a consciência da presença e da intervenção de um Deus que protege o grupo que está saindo sob a direção de Moisés, presença e intervenção perceptíveis de modo impressionante no evento primordial e fundador, a travessia do mar, que foi experimentada como um prodígio.

Isso é atestado pelo nome simbólico que esse Deus protetor dá a si mesmo e revela (Ex 3,14). A Bíblia hebraica usará esse nome muitas vezes na forma YHWH ou na forma abreviada YH. Ambas são de difícil tradução mas filologicamente implicam uma presença dinâmica e atuante de Deus em meio ao seu povo. Os judeus não pronunciam esse nome, e os tradutores gregos do texto hebraico o verteram com a palavra Kyrios, “o Senhor”. Com a tradição cristã seguimos esse costume e, para relembrar a presença de YHWH no texto hebraico escreveremos com maiúsculas, o SENHOR.

A intuição teológica inicial concretiza-se em quatro traços principais: o Deus de Israel acompanha, liberta, dá, e recolhe.

1. Acompanha: indica o caminho no deserto, em virtude de uma presença simbolizada, segundo as tradições, pelo anjo guia ou pela nuvem que evoca o mistério impenetrável (Ex 14,19-20 e passim).

2. Liberta: do jugo da opressão e da morte.

3. Dá, duplamente: de uma parte, Ele dá-se a si mesmo enquanto Deus do povo nascente; de outra parte, dá a esse povo o “caminho” (derek), isto é, o meio de entrar e permanecer em relação com Deus, e assim para doar-se a Deus em resposta.

4. Recolhe o povo nascente em torno a um projeto comum, um projeto de ‘viver junto’ (de formar um qahal, a que pode corresponder em grego a palavra ekklesía).

2.1.3. Um conceito teológico original que exprime a intuição: a aliança

17. De que maneira expressou Israel, na sua literatura sagrada, essa aliança única entre o povo e Deus, esse Deus que desde o início o acompanha, o liberta, se dá a ele e o recolhe?

a. Das alianças humanas à aliança teológica

Num dado momento, difícil de determinar com exatidão, um conceito interpretativo maior (abrangente) impôs-se aos teólogos de Israel: a noção de aliança.

O tema tornou-se tão importante que determinou, desde o início, ao menos retrospectivamente, a concepção das relações entre Deus e o seu povo privilegiado. De fato, no relato bíblico, o evento histórico fundamental e fundador é quase imediatamente seguido por uma conclusão de aliança: “no terceiro mês depois da saída do Egito” (Ex 19,1), respectivamente símbolo de um tempo divino e símbolo de um início. Isso quer dizer: o evento fundamental e fundador inclui, no seu alcance meta-histórico, a estipulação da aliança no Sinai a tal ponto que, da perspectiva de uma teologia bíblica diacrônica, o evento primordial será descrito nos termos de êxodo-e-aliança.

Além disso, esse conceito interpretativo, que vem aplicado aos eventos da saída do Egito, estende-se retrospectivamente ao passado em forma de etiologia. De fato, encontra-se no Gênesis. A idéia da aliança é utilizada para descrever o relacionamento entre o SENHOR Deus e Abraão, o antepassado (Gn 15; 17). Antes, num passado ainda mais longínquo e misterioso, entre o SENHOR Deus e os seres vivos que sobreviveram ao dilúvio no “tempo” de Noé, o patriarca (Gn 9, 8-17).

No Antigo Próximo e Médio Oriente as alianças entre contraentes humanos existiam em forma de tratados, convenções, contratos, matrimônios, e até em pactos de amizade. E deuses protetores funcionavam como testemunhas e fiadores no processo da estipulação dessas alianças humanas. Também a Bíblia recorda alianças desse gênero.

Porém, até prova em contrário – e nenhum documento arqueológico até agora encontrado torna inválida essa constatação – a transposição teológica da idéia da aliança é uma originalidade bíblica: só aí se encontra o conceito de uma aliança propriamente dita entre um contraente divino e um ou mais contraentes humanos.

b. A aliança entre contraentes desiguais

18. É certo que Israel, nas origens, não podia sequer sonhar em exprimir a sua relação privilegiada com Deus, o Totalmente Outro, o Transcendente, o Onipotente, segundo um esquema de igualdade, horizontal:

Deus ? Israel

No momento em que se introduziu a idéia teológica da aliança, espontaneamente se pôde pensar só nas alianças entre contraentes desiguais, bem conhecidas na praxe diplomática e jurídica do antigo Próximo Oriente extra-bíblico: os famosos tratados de vassalagem.

É difícil excluir completamente o influxo da ideologia política da vassalagem como ponto concreto de referência para a compreensão da aliança teológica. A intuição de um contraente divino que toma e preserva a iniciativa de um termo ao outro do processo da aliança constitui a perspectiva de fundo de quase todos os textos maiores da aliança no Antigo Testamento.

Deus

?

Israel

Nesse tipo de relacionamento entre os contraentes, o soberano empenha-se para com o vassalo e empenha o vassalo para consigo. Noutras palavras, ele obriga-se para com o vassalo do mesmo modo como obriga o vassalo de sua parte. No processo das estipulações da aliança, Ele é o único que se exprime: o vassalo, nessa etapa, permanece calado.

Esse duplo movimento exprime-se, em campo teológico, através de dois termos principais: a Graça (o SENHOR empenha-se a si mesmo) e a Lei (o SENHOR empenha o povo que se torna sua “propriedade”: Ex 19,5-6). Nessa moldura teológica, a graça pode ser definida como o dom (incondicionado, em certos textos) que Deus faz de si mesmo. E a Lei, como o dom que Deus faz à coletividade, de um meio, uma via, um “caminho” (derek) ético-cultual que permite ao ser humano entrar e permanecer “em situação de aliança”.

Numa etapa posterior, essa dinâmica da aliança parece ter-se concentrado numa expressão estereotipada que normalmente se chama a “fórmula da aliança” (Bundesformel) – “eu serei o teu Deus e tu serás o meu povo” ou algo equivalente: ela difundiu-se um pouco por toda parte num e no outro Testamento, especialmente no contexto da “nova aliança” anunciada por Jeremias (31,31-34). Sinal bastante evidente que se trata de um tema principal, de uma constante de fundo.

Esquema semelhante aplica-se a Davi e à sua descendência: “Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho” (2Sm 7,14).

c. O lugar da liberdade humana

19. Nessa moldura teológica, a liberdade moral do ser humano não entra como um sim necessário e constitutivo da aliança – nesse caso tratar-se-ia de uma aliança paritética, isto é, entre contraentes iguais. A liberdade intervém mais tarde, como uma conseqüência, quando todo o processo da aliança está completo. Todos os textos bíblicos pertinentes distinguem, de uma parte, o conteúdo da aliança, e de outra o rito ou a cerimônia que segue o dom da aliança. O empenho do povo, sob juramento, não faz parte das condições ou cláusulas, mas só dos elementos de garantia jurídica, na moldura de uma celebração cultual.

Desse modo nasce a “moral revelada”, a “moral em situação de aliança”: um dom de Deus, totalmente gratuito, que, uma vez oferecido, interpela a liberdade do ser humano quanto a um sim completo, uma aceitação integral: a mínima derrogação séria é equivalente a uma recusa. Essa moral revelada, expressa em moldura teológica de aliança, representa uma novidade absoluta em relação aos códigos éticos e cultuais que regiam a vida dos povos vizinhos. Ela tem, por essência, um caráter de resposta, segue à graça, ao auto-empenho de Deus.

d. Conseqüências para a moral

20. Vê-se, portanto, que a moral é muito mais que um código de comportamentos e atitudes. Ela apresenta-se como um “caminho” (derek) revelado, presenteado: leimotiv bem desenvolvido no Deuteronômio, junto aos profetas, na literatura sapiencial e nos salmos didáticos.

Dois elementos de síntese devem ser especialmente considerados.

1º No sentido bíblico, esse “caminho” deve ser concebido desde o começo e antes de tudo de modo global, segundo o seu sentido teológico profundo: ele designa a Lei como um dom de Deus, como fruto da iniciativa exclusiva de um Deus soberano que se empenha a si mesmo numa aliança e empenha o seu contraente humano. Essa Lei distingue-se das muitas leis através das quais ela se exprime e se concretiza por escrito, sobre a pedra, sobre o pergaminho, sobre o papiro ou de outras maneiras.

2º Esse “caminho” moral não chega sem preparação. Na Bíblia ele pertence a um caminho histórico de salvação, de libertação, ao qual compete um caráter primordial, fundador. Dessa constatação devemos deduzir uma conseqüência extremamente importante: a moral revelada não ocupa o primeiro lugar, mas deriva de uma experiência de Deus, de um “conhecimento” no sentido bíblico, revelado através do evento primordial. A moral revelada continua, por assim dizer, o processo da libertação iniciado no arquétipo do êxodo: ela assegura-lhe, garante-lhe a estabilidade. Em poucas palavras: nascida de uma experiência do acesso à liberdade, a “moral em situação de aliança” procura preservar e desenvolver essa liberdade, seja exterior seja interior, na vida quotidiana. A opção moral do crente pressupõe uma experiência pessoal de Deus, mesmo se não assim chamada e só mais ou menos cônscia.

2.2. As diversas expressões da aliança (abordagem canônica)

21. Vejamos o tema da aliança, como se apresenta na ordem canônica da Bíblia.

2.2.1. A aliança com Noé e com “toda carne”

a. Punição e aliança

As primeiras ocorrências da palavra “aliança” no Antigo Testamento encontram-se no relato do dilúvio (Gn 6,18; 9,8-17). Nessa tradição teológica sublinha-se fortemente a gratuidade da iniciativa divina e seu alcance incondicionado.

A punição, cósmica, responde ao estado de coisas que é de amplidão proporcional: “A terra se pervertera diante de Deus e se enchera de violência. E Deus viu que a terra estava pervertida: toda a humanidade tinha pervertido sua conduta na terra. Então, Deus disse a Noé: Decidi pôr fim a toda a humanidade” (Gn 6,11-13).

Mas logo intervém o projeto da aliança. No que se refere aos contraentes, a aliança é estabelecida em círculos concêntricos, isto é, simultaneamente com o próprio Noé (6,18), com a sua família e com a sua futura descendência (9,9), com “toda carne”, isto é, com tudo o que é um “ser vivo” (cf 9,10-17), e até mesmo com “a terra” (9,13). Pode-se falar, portanto, de uma aliança cósmica, proporcional ao estado de perversidade e à punição.

Dessa aliança Deus dá um “sinal”, obviamente um sinal cósmico: “Ponho meu arco nas nuvens…” (9,13-16). Tem-se a impressão, à primeira vista, que a imagem se refira simplesmente ao arco-íris como fenômeno meteorológico, que acontece depois da chuva. Mas, segundo toda probabilidade, a conotação militar não é de excluir-se, tendo em conta o fato de que Deus diz “o meu arco”. De fato, “arco”, com exceção de Ez 1,28, designa sempre a arma de guerra e não o arco-íris. Aqui, do ponto de vista simbólico, dois detalhes merecem ser considerados. Primeiro, a própria forma do arco, esticado para o céu e não mais para a terra, sugere a idéia da paz, fruto da iniciativa puramente gratuita de Deus: nessa posição, nenhuma flecha pode mais ser lançada contra a terra. Por outro lado, tocando o céu e apoiado sobre a terra como uma espécie de ponte vertical, o arco simboliza o contacto restabelecido entre Deus e a humanidade renascida, salva.

b. Conseqüências para a moral

22. Ao leitor de hoje apresentam-se sobretudo três aspectos com evidência.

1º Do ponto de vista da ecologia: a corrupção e a violência humana têm graves repercussões sobre o hábitat, o ambiente (Gn 6,13). Elas arriscam levar ao caos a obra criadora de Deus (cf. Os 4,2-3).

2º Do ponto de vista da antropologia: também num mundo corrompido o ser humano preserva intacta a sua dignidade de “imagem de Deus” (9,6; cf. 1,26-27). Deve-se levantar um dique contra o mal, a fim de que o homem, experimentando a salvação de Deus, desenvolva a sua missão de fecundidade (9,1.7).

3º Do ponto de vista da administração dos recursos: ao ser humano é atribuído certo poder sobre a vida dos animais (confrontem-se 9,3 e 1,29). No entanto, ele deve respeitar qualquer vida como algo de misterioso (9,4). A extensão da aliança a todos os seres vivos e a toda a terra põe em relevo o estatuto do homem como companheiro de todos os seres da criação. Merece atenção nesse contexto a modificação da exortação dirigida a Noé, novo Adão. Em lugar de: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai…” (Gn 1,28), encontra-se apenas: “Sede fecundos e multiplicai-vos, povoai a terra e multiplicai-vos nela” (9,7). No máximo os animais são “entregues às mãos” do homem para lhe servirem de alimento (9,3). A experiência concreta do mal, da “violência”, parece ter colocado uma sombra na missão ideal confiada ao ser humano no ato inicial da criação: o papel de administração e de regência em relação ao ambiente encontra-se um pouco relativizado. Mas a referência explícita de Gn 9,1-2 a Gn 1,26-27 mostra que o horizonte moral de Gn 1 não é anulado. Permanece como ponto de referência principal para os leitores do livro do Gênesis.

2.2.2. A aliança com Abraão

a. Relatos sobre Abraão-Isaac e sobre Jacó

23. O “ciclo de Abraão-Isaac” (Gn 12,1—25,18; 26,1-33) está, do ponto de vista literário, estreitamente ligado ao “ciclo de Jacó” (Gn 25,19-34; 26,34—37,1). Os relatos sobre Abraão-Isaac e os relatos sobre Jacó são semelhantes até nos detalhes. Abraão e Jacó percorrem os mesmos itinerários, atravessando o país do Norte ao Sul e seguindo a mesma cadeia de montanhas. Essas indicações topográficas fazem moldura ao complexo literário de Gn 12-36 (cf Gn 12,6-9 e Gn 33,18—35,27). Os fatos literários convidam a ler os relatos sobre Abraão no contexto mais amplo da seqüência que concerne Abraão-Isaac e Jacó.

b. Aliança, bênção e lei

A aliança dada pelo SENHOR tem três corolários: uma promessa, uma responsabilidade, e uma lei.

1º A promessa é a da terra (Gn 15,18; 17,8; 28,15) e de uma descendência – promessa dirigida a Abraão, depois a Isaac e em seguida a Jacó (cf. Gn 17,15-19; 26,24; 28,14). O tema é depois espiritualizado (cf. Pontifícia Comissão Bíblica, O povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã, nn. 56-57).

2º A responsabilidade que é confiada a Abraão diz respeito não só ao próprio clã, mas ainda, mais largamente, a todas as nações. A expressão bíblica dessa responsabilidade utiliza o vocabulário da bênção: Abraão deve tornar-se uma nação grande e poderosa, e todas as nações da terra serão benditas [‘ brk’ ] nele (Gn 18,18). A intercessão em favor de Sodoma, que segue imediatamente no relato, ilustra essa função mediadora de Abraão. Assim, a aliança não conduz somente a herdar o dom de Deus (uma descendência, uma terra), mas confere ao mesmo tempo um encargo.

3º O empenho de Abraão na aliança passa através da obediência à lei: “De fato, eu o escolhi para que ensine seus filhos e sua casa a guardarem os caminhos do SENHOR, praticando a justiça e o direito” (Gn 18,19).

c. Conseqüências para a moral

1º O nexo teológico constituído pelo ciclo de Abraão entre aliança e responsabilidade universal permite precisar a vocação particular do povo de Deus: posto à parte mediante uma aliança específica, ele herda por esse fato uma responsabilidade singular no confronto das nações, para as quais se torna o mediador da bênção divina. Uma tal pista teológica parece fecunda para articular a dimensão particular e a validade universal da moral bíblica.

2º O ciclo de Abraão e o de Jacó insistem na dimensão histórica da vida moral. Ambos, Abraão e Jacó, seguem um itinerário de conversão que o relato procura descrever com precisão. A aliança proposta por Deus embate-se nas resistências humanas. O relato bíblico leva em conta aqui a dimensão da temporalidade, na abordagem que propõe para a fidelidade à aliança e para a obediência a Deus.

2.2.3. A aliança com Moisés e o povo de Israel

24. Expondo a progressiva concepção da aliança, já pusemos em relevo alguns de seus traços essenciais. A experiência fundante da aliança verifica-se no Sinai. Ela é apresentada num evento histórico fundador. É completamente dom de Deus, fruto da sua iniciativa total, e empenha seja o próprio Deus (a Graça), seja os homens (a Lei). Confere a Israel recém-nascido o estatuto de povo com plenos direitos. Uma vez estipulada, exige a resposta livre do homem, a ser compreendida, num primeiro passo, como a aceitação de um “caminho de vida” (a Lei, no sentido teológico), e depois, a seguir, como a prática de determinações precisas (as leis). Queremos apresentar tal resposta não na sua globalidade teológica e imutável (a Lei), mas na sua expressão plural e detalhada, eventualmente adaptável às circunstâncias (as leis).

Uma série de normas está ligada à estipulação da aliança sinaítica. Entre elas compete um estatuto especial ao Decálogo. Ocupamo-nos primeiro exatamente com o Decálogo, para depois voltar-nos aos códigos legislativos e ao ensinamento moral dos profetas.

2.2.3.1. O Decálogo

25. Cada povo novo deve dar a si mesmo, antes de tudo, uma constituição. A de Israel espelha a vida simples dos clãs semi-nômades que o formam em sua origem. Aproximativamente, prescindindo dos retoques e dos desenvolvimentos que foram acrescentados, “as dez palavras” atestam bastante bem o conteúdo substancial da lei fundamental do Sinai.

A sua posição redacional (Ex 20,1-17), imediatamente antes do “Código da Aliança” (Ex 20,22—23,19) e a sua repetição (Dt 5,6-21), com algumas variantes, no início do “Código Deuteronômico” (Dt 4,44—26,19), já indicam a sua importância preponderante no conjunto da “Torá”. Em hebraico, esta última palavra quer dizer “instrução, ensinamento”; tem, portanto, um sentido muito mais amplo e profundo do que a nossa palavra “lei”, a qual porém é utilizada por quase todos os tradutores.

Paradoxalmente, no seu teor original, o Decálogo reflete uma ética ao mesmo tempo inicial e potencialmente muito rica.

a. Uma ética inicial

26. Os limites constatam-se de três pontos de vista: a exterioridade, o alcance essencialmente comunitário, a formulação mais vezes negativa da exigência moral.

1º A maioria dos exegetas, procurando o sentido literal, sublinha que originariamente cada proibição se referia a ações exteriores, observáveis e verificáveis, inclusive o “hamad” (desejo), que introduz os dois mandamentos finais (Ex 20,17); de fato, ele não exprime um pensamento ou desígnio ineficaz, totalmente interior (“desejar”), mas antes o estratagema concreto para realizar um mau desígnio (“desejo que se exprime em ações”, “mirar a”, “dispor-se a”).

2º Além disso, uma vez saído do Egito, o povo libertado tinha necessidade urgente de regras precisas para ordenar sua vida coletiva no deserto. O Decálogo responde em princípio a essa exigência, de maneira que nele se pode ver uma lei fundamental, uma primitiva carta nacional.

3º Oito dos dez mandamentos são formulados negativamente, constituem proibições, um pouco à maneira de balaustradas numa ponte. Só dois têm forma positiva, de preceitos a cumprir. O acento é posto, portanto, na abstenção de comportamentos socialmente danosos. Isso evidentemente não exaure todas as virtualidades da moral que em princípio tem como finalidade esclarecer e estimular o agir humano para a realização do bem.

b. Uma ética potencialmente muito rica

27. Três outras características, ao contrário, fazem do Decálogo original o fundamento insubstituível de uma moral estimulante e bem adaptada à sensibilidade do nosso tempo: o seu alcance virtualmente universal, a sua pertença a um quadro teológico de aliança e também o seu enraizamento num contexto histórico de libertação.

1º Para uma consideração atenta, todos os mandamentos têm um alcance que ultrapassa decididamente os confins de uma nação particular, também os do povo eleito de Deus. Os valores por eles promovidos podem ser aplicados a toda a humanidade de todas as regiões e de todos os períodos da história. Veremos que até as duas primeiras proibições, além da aparente particularidade da denominação “o SENHOR Deus de Israel”, ilustram um valor universal.

2º A pertença do Decálogo a um quadro teológico de aliança causa a subordinação das dez leis, como vêm indicadas, à noção da própria Lei compreendida como um presente, um dom gratuito de Deus, um “caminho” global, uma estrada claramente traçada que torna possível e facilita a orientação fundamental da humanidade para Deus, para a intimidade, a comunicação com Ele, para a felicidade e não para a miséria, para a vida e não para a morte (cf. Dt 30,19s).

3º Na introdução ao Decálogo, o SENHOR resume no essencial a sua ação libertadora: ele fez sair os seus de uma “casa” na qual eram “escravos” (Ex 20,2). Ora, um povo que quer libertar-se de um jugo exterior sufocante e que acaba de o fazer, deve estar atento a não procurar um jugo interno que escravize e asfixie da mesma maneira. O Decálogo, de fato, abre largamente o caminho a uma moral de libertação social. Esse apreço à liberdade, em Israel, será tão expansivo que chegará a incluir até a terra, o solo cultivável: a cada sete anos (ano sabático) e, ainda mais, a cada quarenta e nove anos (ano jubilar), há obrigação de deixar a terra tranqüila, livre de toda violência, livre dos arados e das enxadas (cf. Lv 25,1-54).

c. Conseqüências para a moral de hoje

28. Praticamente, o Decálogo pode servir como base para uma teologia e catequese moral adaptada às necessidades e às sensibilidades da humanidade de hoje?

1) Os aparentes inconvenientes

A exterioridade, o alcance essencialmente comunitário, e a formulação quase sempre negativa da primitiva ética israelita fazem que o Decálogo, por si só, ao menos se reproduzido tal e qual, se torne menos adaptado a exprimir de modo adequado o ideal da vida moral que a Igreja propõe a seus contemporâneos.

1º O homem moderno, marcado pelas descobertas da psicologia, insiste muito sobre a origem interna, até inconsciente, dos seus atos exteriores, em forma de pensamentos, desejos, motivos escuros e também impulsos difíceis de controlar.

2º Por certo, é sabedor das exigências da vida coletiva, mas ao mesmo tempo tende a reagir contra os imperativos de uma globalização ilimitada, e descobre tanto mais o alcance do indivíduo, do eu, das aspirações ao desenvolvimento pessoal.

3º De resto, em muitas sociedades desenvolve-se há alguns decênios uma espécie de alergia contra toda forma de proibição: todas as proibições são interpretadas, mesmo se de modo equivocado, como limites e amarras da liberdade.

2) As vantagens reais

29. Por outro lado, o alcance virtualmente universal da moral bíblica, a sua pertença a um quadro teológico de aliança e o seu enraizamento no contexto histórico de libertação podem ter um certo atrativo no nosso tempo.

1º Quem não sonha com um sistema de valores que supere e reúna as nacionalidades e as culturas?

2º A insistência prioritária numa orientação de molde teológico, mais que numa quantidade de comportamentos a evitar ou a praticar, poderia suscitar um maior interesse pelos fundamentos da moral bíblica junto àqueles que são alérgicos às leis que parecem restringir a liberdade.

3º O conhecimento das circunstâncias concretas nas quais o Decálogo se formou na história mostra ainda mais até que ponto esse texto fundamental e fundador não é limitador e opressivo mas, ao contrário, está a serviço da liberdade do ser humano, seja individual seja coletiva.

3) A descoberta dos valores através das obrigações

30. De fato, o Decálogo esconde em si todos os elementos necessários para fundar uma reflexão moral bem equilibrada e adaptada ao nosso tempo. Todavia, não basta traduzi-lo do hebraico original para uma língua moderna. Na sua formulação canônica, ele tem a forma das leis apodícticas e pertence à linha de uma moral das obrigações (ou deontologia).

Nada nos impede de traduzir de modo diverso, mas não menos fiel, o conteúdo da carta israelita em termos de uma moral dos valores (ou axiologia). Assim damo-nos conta de que, transcrito desse modo, o Decálogo adquire uma força de clarificação e de apelo maior para o nosso tempo. Na realidade, não só não se perde nada nessa mudança, mas há um ganho enorme de profundidade. Por si, a proibição concentra-se apenas sobre comportamentos a evitar e encoraja, no máximo, uma moral tipo freio de socorro (por exemplo, evita-se o adultério quando se abstém de cortejar a mulher do outro). O preceito positivo, de sua parte, pode contentar-se com qualquer gesto ou atitude para aquietar a consciência, encorajando, no máximo, uma moral de gestos mínimos (por exemplo, pensa-se em estar observando o sábado quando se dedica ao culto uma hora por semana). Ao contrário, o empenho por um valor corresponde a um canteiro de obras sempre aberto, onde não se chega nunca à meta e onde se é chamado sempre a um mais.

Transpostos numa terminologia de valores, os preceitos do Decálogo conduzem ao elenco seguinte: o Absoluto, a reverência religiosa, o tempo, a família, a vida, a estabilidade do casal marido e esposa, a liberdade (aqui o verbo hebraico ‘gng’ refere-se provavelmente ao seqüestro de pessoas e não ao furto de objetos materiais), a reputação, a casa e as pessoas que aí vivem, a casa e os bens materiais.

Cada um desses valores abre um “programa”, isto é, uma tarefa moral jamais completa. As afirmações seguintes, introduzidas por verbos, ilustram a dinâmica que é gerada pela seqüência de cada um desses valores.

Três valores verticais (referindo-se às relações do ser humano com Deus):

1. prestar culto a um único Absoluto

2. respeitar a presença e a missão de Deus no mundo (é o que o “nome” simboliza)

3. valorizar a dimensão sagrada do tempo.

Sete valores horizontais (referindo-se às relações entre as pessoas):

4. honrar a família

5. promover o direito à vida

6. manter a união do casal marido e esposa

7. defender o direito de cada um de ver a própria liberdade e dignidade respeitada por todos

8. preservar a reputação dos outros

9. respeitar as pessoas (que pertencem a uma casa, uma família, uma empresa)

10. deixar ao outro as suas propriedades materiais.

Analisando os dez valores presentes no Decálogo, nota-se que eles seguem uma ordem de progressão decrescente (do valor prioritário ao menos importante), Deus em primeiro lugar e as coisas materiais por último; e, dentro das relações humanas, encontra-se no início da lista a família, a vida, o matrimônio estável.

É assim oferecida, para uma humanidade que ansiosamente deseja aumentar a sua autonomia, uma base legal e moral que poderia comprovar-se fecunda e persistente. Ela porém é difícil de promover no contexto atual, dado que a escala dos valores mais seguidos no nosso mundo tem uma ordem de prioridade contrária ao da proposta bíblica: primeiro o homem, depois Deus: e mesmo, no início da lista, os bens materiais, isto é, num certo sentido, a economia. Quando, abertamente ou não, um sistema político e social se funda sobre valores supremos falsos (ou sobre uma concorrência entre valores supremos), quando o intercâmbio dos bens ou o consumo é mais importante que o equilíbrio entre as pessoas, esse sistema está falido desde o início e destinado cedo ou tarde à ruína.

O Decálogo, ao invés, abre largamente a estrada a uma moral libertadora: deixar o primeiro lugar á soberania de Deus sobre o mundo (valores nr. 1 e 2), dar a cada um a possibilidade de ter tempo para Deus e de administrar o próprio tempo de modo construtivo (nr. 3), favorecer o espaço de vida da família (nr. 4), preservar a vida, mesmo enferma e aparentemente não produtiva, das decisões arbitrárias do sistema e das manipulações subtis da opinião pública (nr. 5), neutralizar os germes de divisão que tornam frágil, sobretudo em nosso tempo, a vida matrimonial (nr 6), deter todas as formas de exploração do corpo, do coração e do pensamento (nr 7), proteger a pessoa contra os ataques à reputação (nr 8) e contra todas as formas de engano, de exploração, de abuso e de coação (nr 9 e 10).

4) Uma conseqüência jurídica

31. Numa perspectiva prevalecente de atualização, esses dez valores que estão na base do Decálogo oferecem um fundamento claro para uma carta dos direitos e das liberdades, válida para toda a humanidade:

1. direito a um relacionamento religioso com Deus,

2. direito ao respeito das crenças e símbolos religiosos,

3. direito à liberdade da prática religiosa e, em segundo lugar, ao repouso, ao tempo livre, à qualidade de vida,

4. direito das famílias a políticas justas e favoráveis, direito dos filhos ao sustento por parte de seus progenitores, ao primeiro aprendizado da socialização, direito dos progenitores anciãos ao respeito e ao sustento por parte de seus filhos,

5. direito à vida (a nascer), ao respeito da vida (a crescer e morrer de modo natural), à educação,

6. direito da pessoa à livre escolha do cônjuge, direito do casal ao respeito, ao encorajamento e ao sustento por parte do Estado e da sociedade em geral, direito do filho à estabilidade (emocional, afetiva, financeira) dos progenitores,

7. direito ao respeito das liberdades civis (integridade corporal, escolha da vida e da carreira, liberdade de locomoção e de expressão),

8. direito à segurança e à tranqüilidade doméstica e profissional e, em segundo lugar, direito à livre empresa,

10. direito à propriedade privada (nele incluída a garantia de proteção civil dos bens materiais).

Mas, na ótica de uma “moral revelada”, esses direitos humanos inalienáveis são absolutamente subordinados ao direito divino, isto é, à soberania universal de Deus. O Decálogo inicia assim: “Eu sou o SENHOR teu Deus, que te tirou do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2; Dt 5,6). Essa soberania divina, assim como se manifesta já no evento fundador do êxodo, exerce-se não segundo um esquema autoritário e despótico, que se encontra tantas vezes na gestão humana dos direitos e das liberdades, mas sim numa ótica de libertação da pessoa e das comunidades humanas. Ela implica, entre outras coisas, da parte do ser humano, um culto exclusivo, um tempo consagrado à oração pessoal e comunitária, o reconhecimento do poder último que Deus tem de regular a vida das suas criaturas, de governar as pessoas e os povos, de exercer o julgamento; enfim, o discurso bíblico da soberania divina sugere uma visão do mundo segundo a qual não só a Igreja mas o cosmo, o ambiente circundante e a totalidade dos bens da terra são, em última análise, propriedade de Deus (cf. Ex 19,5).

Em poucas palavras, baseando-se sobre os valores fundamentais contidos no Decálogo, a teologia moral e também a catequese que dela deriva, pode propor à humanidade de hoje um ideal equilibrado que, de uma parte, não privilegia jamais os direitos em prejuízo das obrigações ou vice-versa e que, de outra parte, evita o escolho de uma ética puramente secular que não tenha em conta a relação do ser humano com Deus.

5) Conclusão: nas pegadas de Jesus

32. Apresentando o Decálogo como fundamento perene de uma moral universal, realizam-se três objetivos importantes: abrir o tesouro da Palavra, mostrar seu valor, encontrar uma linguagem que pode tocar as cordas sensíveis dos homens e das mulheres de hoje.

Propondo uma leitura axiológica da lei fundamental do Sinai, segundo os valores nela implicados, não fazemos outra coisa senão caminhar nas pegadas de Jesus. Eis, a propósito, alguns indícios que chamam a atenção.

1. No Sermão da montanha, Jesus retoma certos preceitos do Decálogo mas estende seu sentido muito mais adiante, de um tríplice ponto de vista: aprofundamento, interiorização, superação de si até alcançar a perfeição quase divina (Mt 5,17-48).

2. Discutindo sobre puro e impuro, Jesus mostra que o ser humano se torna verdadeiramente impuro mediante aquilo que vem de dentro, do coração, e que o impele às ações que são contrárias ao Decálogo (Mt 15,19).

3. O episódio do jovem rico (Mt 19,16-22 e paralelos) faz entender bem esse “a mais” exigido por Jesus. De uma moral mínima, essencialmente comunitária e formulada sobretudo de modo negativo (v. 18-19), passa-se a uma moral personalizada, ‘programática’, que consiste principalmente em ‘seguir Jesus’, uma moral totalmente concentrada sobre o desapego, sobre a solidariedade com os pobres e sobre o dinamismo do amor cuja fonte está nos céus (v. 21).

4. Interrogado sobre “o maior mandamento’, o próprio Jesus pôs em relevo dois preceitos escriturísticos que são fundados sobre um valor – o mais importante, o amor – e abrem um programa moral sempre incompleto (Mt 22,34-40 e paralelos). Haurindo assim o melhor suco das maiores tradições legais do Antigo Testamento (deuteronômica e sacerdotal), Jesus sintetiza de modo admirável a pluralidade das leis simbolizadas pelo próprio número das “dez palavras”. No campo simbólico, ‘três’ evoca normalmente a totalidade na ordem do divino, do inobservável, e ‘sete’ na ordem do observável. O valor ‘amor de Deus’ resume sozinho os três primeiros mandamentos do Decálogo, e ‘amor do próximo’ resume os últimos sete.

5. No rasto de Jesus também Paulo, citando preceitos do Decálogo, vê no amor do próximo ‘o pleno cumprimento da Lei’ (cf Rm 13,8-10). Também citando o Decálogo (Rm 2,21-22), Paulo afirma numa vasta discussão que Deus julga segundo a mesma norma quer os judeus, instruídos na Lei, quer os pagãos, que “cumprem o que a Lei prescreve, guiados pelo bom senso natural” (Rm 2,14).

2.2.3.2. Os códigos legislativos

33. Habitualmente consideram-se como tais o Código da Aliança (Ex 21,1—23,33), a Lei de Santidade (Lv 17,1—26,46) e o Código Deuteronômico (Dt 4,44—26,19). Eles apresentam-se em estreita conexão com a estipulação da aliança no Sinai e constituem, junto com o Decálogo, uma concretização do “caminho de vida” aí revelado e oferecido. Exponhamos três temas morais que aparecem como especialmente relevantes nesses códigos. a. Os pobres e a justiça social

As leis apodícticas do Código da Aliança, do Código Deuteronômico e da Lei de Santidade concordam em estabelecer medidas destinadas a evitar a escravidão dos mais pobres, tomando em consideração ainda a remissão periódica de suas dívidas. Essas disposições têm às vezes uma dimensão utópica, como a lei sobre o ano sabático (Ex 23,10-11), ou a lei sobre o ano jubilar (Lv 25,8-17). Todavia, apontando à sociedade israelita o objetivo de combater e de vencer a pobreza, permanecem realistas quanto à dificuldade dessa luta (c. Dt 15,4 e Dt 15,11). A luta contra a pobreza pressupõe a realização de uma justiça honesta e imparcial (cf. Ex 23,1-8; Dt 16,18-20). Ela se exerce em nome do próprio Deus. Diversas linhas teológicas empenham-se para fundamentá-la: as leis apodícticas do Código da Aliança retomam a intuição profética da proximidade de Deus em relação aos mais pobres. O Deuteronômio, por seu lado, insiste sobre o estatuto particular da terra confiada por Deus aos israelitas: Israel, beneficiário da bênção divina, não é o proprietário absoluto da terra, mas é seu usufrutuário (cf. Dt 6,10-11). Por isso, a realização da justiça social aparece como a resposta de fé de Israel ao dom de Deus (cf. Dt 15,1-11): a lei regula o uso do dom e recorda a soberania de Deus sobre a terra.

b. O estrangeiro

34. A Bíblia hebraica utiliza um vocabulário diferenciado para denominar os estrangeiros: a palavra ger designa o estrangeiro residente que vive estavelmente junto a Israel. O termo nokri refere-se ao estrangeiro de passagem, enquanto os termos tôshab e sakir designam, na Lei de Santidade, assalariados estrangeiros. A solicitude para com o ger manifesta-se constantemente nos textos legislativos da Torá: solicitude puramente humanitária em Ex 22,20 e 23,9; solicitude fundada sobre a memória da escravidão no Egito e da libertação concedida por Deus em Dt 16,11-12. É a Lei de Santidade que, em relação ao estrangeiro, formula as regras mais audazes: o ger não é mais “objeto” da lei, mas torna-se seu “sujeito”, que é corresponsável com os habitantes do país pela sua santificação e pela sua pureza. “Habitantes” e “estrangeiros” são assim unidos por uma responsabilidade comum e por um vínculo descrito mediante o vocabulário do amor (cf. Lv 19,33-34). A Lei de Santidade prevê, ainda, processos para integrar os estrangeiros – ou ao menos os gerim – na comunidade dos filhos de Israel.

c. Culto e ética

35. A literatura profética é sem dúvida a primeira que tomou em consideração a correlação entre o culto prestado a Deus e o respeito do direito e da justiça. A pregação de Amós (cf. Am 5,21) e a de Isaías (cf. Is 1,10-20) são particularmente representativas dessa intuição teológica.

O Código Deuteronômico, de um lado, justapõe leis cultuais e prescrições de ética social: as leis que concernem à unicidade do santuário dedicado a Deus e à proibição da idolatria (cf Dt 12,13) precedem as leis sociais de Dt 14,22—15,18; por outro lado, une intimamente imperativos cultuais e imperativos éticos. Assim, o dízimo trienal, imposto originariamente cultual, recebe nova função pelo fato da centralização do culto em Jerusalém: a saber, prover ao sustento das viúvas, dos órfãos, dos estrangeiros e dos levitas (cf. Dt 14,28-29; 26,12-15). Enfim, as festas de peregrinação requerem a participação dos mais pobres (Dt 16,11-12.14): o culto prestado a Deus no templo de Jerusalém não adquire sua validade se não integrar uma preocupação ética fundada sobre a memória da escravidão no Egito, da libertação de Israel e do dom da terra por parte de Deus. As leis da Torá, portanto, chamam a atenção do leitor para as implicações éticas de cada celebração cultual, como também sobre a dimensão teologal da ética social.

Os temas expostos neste parágrafo sobre os ‘ensinamentos morais’ mostram que os códigos legislativos da Torá são particularmente atentos à moral social. A compreensão que Israel tem do seu Deus, conduz a uma atenção particular aos mais pobres, aos estrangeiros, à justiça. Assim, culto e ética estão particularmente associados: oferecer culto a Deus e ter a preocupação para com o próximo são as duas expressões inseparáveis da mesma confissão de fé.

2.2.3.3. O ensinamento moral dos Profetas

36. O justo comportamento moral é um tema fundamental em todos os profetas, mas não o tratam jamais por si mesmo nem de modo sistemático. Eles ocupam-se da ética sempre em relação com o fato de que Deus conduz Israel através da história. Isso funciona de modo retrospectivo: tendo em conta o fato de que Deus libertou Israel da escravidão no Egito e o conduziu à sua própria terra, os israelitas devem viver segundo os mandamentos que Deus deu a Moisés no monte Sinai (cf. a moldura dos dez mandamentos em Dt 5,1-6.28-33). Entretanto, porque não procediam assim e adotavam os costumes das nações, Deus dispunha-se a mobilizar contra eles invasores estrangeiros para devastarem sua terra e levarem o povo ao exílio (Os 2; Jr 2,1—3,5). Funciona também de modo prospectivo: Deus salvará um resto do povo da dispersão entre as nações e o fará retornar à sua terra onde viverão, finalmente, como uma comunidade fiel em torno ao Templo e obedientes aos antigos mandamentos (Is 4; 43). Essa conexão fundamental entre ética e história, seja passada seja futura, é elaborada em Ez 20, que constitui a magna carta de Israel renascido.

Sobre a base da presença de Deus na história de Israel os profetas confrontaram o povo com o seu efetivo modo de viver, que estava em plena contradição com a “Lei” de Deus (Is 1,10; 42,24; Jr 2,8; 6,19; Ez 22,26; Os 4,6; Am 2,4; Sf 3,4; Zc 7,12). Essa regra divina para a conduta de Israel continha toda sorte de normas e costumes, provenientes da jurisdição tribal e local, das tradições familiares, do ensinamento sacerdotal e da instrução sapiencial. A pregação moral dos profetas põe o acento sobre o conceito social de “justiça” (mishpath, tsedaqah): Is 1,27; 5.7; 28,17; 58,2; Jr 5,1; 22,3; 33,15; Ez 18,5; Os 5,1; Am 5,7. Os profetas confrontaram a sociedade israelita com esse modelo humano e divino em todos os aspectos: os diversos papéis no processo legal do rei ao juiz e da testemunha ao acusado (Is 59,1-15; Jr 5,26-31; 21,11—22,19; Am 5,7-17), a corrupção das classes dirigentes (Ez 34; Os 4; Ml 1,6—2,9), os direitos das classes sociais e dos indivíduos, especialmente os marginalizados (Is 58; Jr 34), a crescente fenda econômica entre os latifundiários e os lavradores agrícolas empobrecidos (Is 5,8.12; Am 8; Mq 2), a inconseqüência entre serviço cultual e comportamento comum (Is 1,2-20; Jr 7), e até a degradação da moralidade pública (Is 32,1-8; Jr 9,1-9).

Enfim, para compreender de modo adequado a ética dos escritos proféticos, deve-se ter em conta o fato de que a moral, seja pública seja privada, deriva ultimamente do próprio Deus, da sua retidão (Is 30,18; 45,8; Jr 9,24; Sf 3,5) e da sua santidade (Ex 15,11; Is 6,3; 63,10-11; Ez 37,28; Os 11,9).

2.2.4. A aliança com Davi

37. Essa aliança de modo especial é puro dom de Deus, enquanto não depende da atitude humana, dura para sempre e encontra seu cumprimento na missão messiânica de Jesus (cf. Lc 1,32-33).

Originariamente, essa aliança nasceu quando o povo pediu a Deus um rei, sem compreender que o próprio Deus era seu verdadeiro rei. Deus concedeu a instituição monárquica (1Sm 9; Dt 33,5); o rei, porém, não está fora da aliança estipulada por Deus com o seu povo, mas ao contrário é incluído nela e portanto deve comportar-se segundo as leis estabelecidas por Deus. O reino de Davi era concedido de modo a realizar um relacionamento diverso com o Senhor (1Sm 16,1-13; 2Sm 5,1-3; cf. Dt 17,14-20). No relato da fundação dessa dinastia não ocorre o termo “aliança”. O oráculo de Natã não contém condições explícitas e constitui uma forte promessa. O empenho do Senhor é absoluto (2Sm 7,1-17). No caso de uma falha dos sucessores de Davi, o que de fato começava já com Salomão, Deus os castigará, não tanto para puni-los mas para corrigi-los. O seu relacionamento paterno para com a descendência de Davi não cessará jamais (2Sm 7,14-15); cf Sl 2,6-7). Por conseguinte, o reino desse escolhido de Deus durará para sempre (2Sm 7,13-16) porque, segundo o salmista, Deus jurou de modo peremptório: “Não violarei jamais a minha aliança” (Sl 89,35).

2.2.5. A “nova aliança” segundo Jeremias

38. O texto de Jr 31,31-34 é o único que fala explicitamente de uma “nova aliança”: “Um dia chegará, oráculo do Senhor, quando hei de fazer uma nova aliança… Não será como a aliança que fiz com seus pais… que eles quebraram… Esta é a aliança que farei com a casa de Israel…. Colocarei a minha lei no seu íntimo, vou gravá-la em seu coração. Serei o seu Deus e eles, o meu povo. Ninguém mais precisará ensinar seu irmão… pois todos me conhecerão… Já terei perdoado as suas culpas, de seu pecado nunca mais me lembrarei.”

São notáveis os pontos seguintes:

1. No início e no fim encontram-se duas afirmações sobre a intervenção do SENHOR em relação à aliança: essa moldura includente elabora a novidade da aliança no que se refere ao próprio Deus em termos de perdão e de não recordar-se mais do pecado. O próprio Israel não faz absolutamente nada: nenhuma confissão ou expiação da culpa, nenhuma iniciativa de retornar a Deus. Cabe exclusivamente ao SENHOR criar uma atitude nova da parte de Israel.

2. Acrescentam-se duas características da nova aliança. De agora em diante, a Torá é “infundida no seu íntimo”, e “gravada no coração” (cf. Ez 36,26-27). Por conseqüência, “todos conhecerão” Deus, isto é, terão com ele uma relação íntima, segundo o sentido forte do verbo hebraico, o que inclui a prática da justiça (cf. Jr 22,15-16).

3. Duas antíteses sublinham o caráter específico da aliança nova em relação àquela que foi concluída com os pais no deserto. Essa, escrita sobre a pedra, foi violada por eles e pelas gerações sucessivas; a outra é absolutamente nova enquanto estará escrita nos corações. Além disso, quem ensinará será o próprio SENHOR, e não mais mediadores humanos.

4. No centro do trecho emerge a fórmula da aliança, que afirma a pertença recíproca do SENHOR e do seu povo. Essa fórmula não é mudada, é ainda válida e constitui o coração da passagem.

5. Tudo somado, a nova aliança não é diversa da antiga no que se refere aos parceiros, à obrigação de observar a Torá e ao relacionamento com o SENHOR. A exegese acima conduz à conclusão de que há só o compromisso do SENHOR em relação a Israel, enquanto esse povo atravessa os séculos, embora seja verdade que a sua forma efetiva, a aliança, sofre modificações nas diversas épocas da história até à sua reforma fundamental durante o exílio. A mesma concepção da aliança, que é caracterizada pela incondicional fidelidade de Deus, pode ser encontrada também noutros textos (Lv 26,44-45; Ez 16,59-60) ou ainda no relato do bezerro de ouro (Ex 32-34) como num paralelo narrativo (em particular, Ex 34,1-10).

6. O conceito da nova aliança não implica uma oposição entre o Novo Testamento e o Antigo nem também entre cristãos e judeus (cf. “O povo judeu e as suas Santas Escrituras na Bíblia cristã”, nn. 39-42). Implica, ao contrário, uma renovação fundamental na história da própria aliança, enquanto o SENHOR dá ao seu povo a habilidade conatural de viver segundo a Torá na base do perdão da sua iniqüidade e do dom do Espírito Santo. Isso para os cristãos realizou-se na morte salvífica de Jesus pela remissão dos pecados (Mt 26,28).

2.2.6. O ensinamento moral dos Sábios

39. Escopo dos livros sapienciais é ensinar o justo comportamento às pessoas. Por isso, constituem uma manifestação importante da ética bíblica. Alguns são mais determinados pela experiência humana (por exemplo, o livro dos Provérbios) e pela reflexão sobre a condição humana, constituindo um nexo precioso com a sabedoria de outros povos, enquanto outros se encontram num relacionamento mais estreito com a Aliança e com a Torá. Ao primeiro grupo pertence o livro de Coélet; ao segundo, o livro do Sirácida. Destes dois livros nos ocupamos a título de exemplo.

a. O livro de Coélet

Coélet faz parte do movimento da sabedoria, mas é caracterizado pela sua abordagem crítica. Inicia com a constatação: “Vaidade das vaidades, diz Coélet, vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (1,2), e a repete na parte conclusiva (12,8).

O termo “vaidade” (hebel) significa, literalmente, respiro, vapor, sopro, e é referido a tudo o que é efêmero, fugaz, instável, incompreensível, enigmático. Coélet caracteriza com esse termo todos os fenômenos da vida humana. As pessoas vivem num mundo do qual não têm nenhum controle, um mundo cheio de inconsistências, antes, de contradições. Nada do que se obtém neste mundo tem valor duradouro: sabedoria, riqueza, prazer, fadiga, juventude, a própria vida. Pode-se ou não receber o que se merece. Tudo é posto ante o espectro da morte, o único fator na vida que é inevitável e do qual ninguém escapa. Não obstante as inconsistências e as vicissitudes da vida, as pessoas devem aceitar o seu lugar no relacionamento com Deus. Esse é o significado da advertência de Coélet: “Tu, porém, teme a Deus” (5,6).

Contra as várias tentativas e esforços humanos para dominar e compreender a vida, Coélet apresenta como única alternativa realista aceitar o fato de que um controle não é possível, e que se deve deixar que as coisas aconteçam. Só assim se verifica a possibilidade de encontrar alegria e satisfação em tudo o que se faz. Sete vezes Coélet explicitamente exorta as pessoas a se alegrarem, sempre que se lhes apresente a oportunidade (2,24-26; 3,12-13.22; 5,18-20; 8,15; 9,7-10; 11,7—12,1), porque essa é a sorte dada por Deus como remédio para as misérias da vida. Em nenhuma passagem, porém, se recomenda um estilo de vida hedonístico.

Mesmo se a ética de Coélet não requer uma mudança radical das estruturas, ela comporta interessantes elementos de crítica política e social. O sábio fustiga certos escândalos e abusos inerentes ao sistema da monarquia: o caso do rei que envelhece e se torna teimoso e autocrata (4,13), a usurpação do poder por um criminoso ou arrivista (4,14-16), a corrupção dos funcionários à custa dos pobres e dos camponeses (3,16; 4,1; 5,7-8), o inútil multiplicar-se de administradores públicos, se lhes falta a sabedoria (7,19), a atribuição de promoções e responsabilidades a pessoas incapazes (10,5-7), a festança contínua na corte do rei menino (10,16). Do ponto de vista social, ele denuncia os seguintes comportamentos: inveja e competição, ociosidade e preguiça (4,5), sobrecarga e ativismo (4,6), individualismo e sede de lucro (4,7-12). Em suma, nesse escrito sapiencial, em certos aspectos quase moderno, encontra-se uma mina de reflexões utilíssimas para inspirar uma vida equilibrada, no plano pessoal como no coletivo.

b. O livro do Sirácida

40. O Sirácida vê a sabedoria não só associada à experiência humana e derivada de Deus, mas também firmemente ligada à história da salvação e à Torá de Moisés (24,23). No Sirácida ambas as realidades, revelação e experiência, são conjuntas e integradas, sem eliminação de uma nem de outra. Conseqüentemente, o Sirácida pode apresentar os heróis de Israel (44-50) como exemplos de sabedoria e insistir na observância da Torá, ao mesmo tempo valorizando a beleza e harmonia da criação (42,15—43,33), tomando ensinamentos da natureza e aceitando as observações e máximas dos sábios que o precederam.

O livro, em grande parte, é uma coleção de diversas instruções, exortações e máximas, que abrangem toda a gama de temas referentes à vida virtuosa e à conduta ética. Aí estão os deveres para com Deus, os deveres domésticos, as obrigações e responsabilidades sociais, virtudes a praticar e vícios a evitar para a formação do caráter moral. O livro constitui uma espécie de manual para o comportamento moral. Exalta a singular herança de Israel, em particular insiste na exigência de que o povo de Deus participe da sabedoria de Deus de modo singular, pois dispõe de ainda outra fonte de sabedoria na própria Torá.

O início e a coroa, a perfeição e a raiz da sabedoria é “o temor do Senhor” (1,14.16.18. 20). Para o Sirácida, sabedoria e temor do Senhor são praticamente sinônimos e manifestam-se na obediência à lei de Moisés (24,22).

A sabedoria é também ativa no desenvolvimento das relações no interior da família: deveres dos filhos para com os pais (3,1-16; 7,27-28); deveres dos pais para com os filhos (7,23-25; 16,1-14); relações com as mulheres: a esposa (7,19; 23,22-26; 25,12—26,18), as filhas (7,24-26; 22,4-5), a mulher em geral (9,1-9).

A sabedoria refere-se também a diversos aspectos da vida social: distinção entre verdadeiros e falsos amigos (6,5-17; 12,8-18); cautela com estranhos (11,29-34); atitudes em relação à riqueza (10,30-31; 13,18-26); moderação e reflexão nos negócios (22,7-11; 26,29—27,3) e tantos outros assuntos.

Para a sabedoria não há uma área da vida que não seja digna de atenção. A vida de cada dia compreende inúmeras situações que exigem determinadas atitudes, decisões e ações não reguladas pelas grandes leis. Desse campo se ocupa a sabedoria tradicional. Na convicção de que toda a vida está sob o controle de Deus, Israel encontra o seu Criador também na vida quotidiana. O Sirácida combina experiência pessoal e sabedoria tradicional com a revelação divina na Torá, a praxe litúrgica e a devoção pessoal.

Os sábios ocupam-se do mundo que Deus criou e em cuja beleza, ordem e harmonia, revela-se algo do seu Criador. Mediante a sabedoria, Israel encontra seu Senhor numa relação vital que se abre também para os outros povos. A abertura da sabedoria israelita às nações e o caráter claramente internacional do movimento dos sábios pode propiciar uma base bíblica para o diálogo com outras religiões e para a busca de uma ética global. O Deus Salvador de judeus e cristãos é também o Criador que se revela no mundo por ele criado.

3. A nova aliança em Jesus Cristo como último dom de Deus e suas implicações morais

41. Como vimos nas exposições sobre o Antigo Testamento, a categoria de ‘aliança’ é dominante para conceber e descrever o relacionamento específico entre Deus e o povo de Israel. No Novo Testamento, esse termo não é muito freqüente: encontra-se trinta e três vezes, seis das quais com a especificação de ‘nova aliança’. Determinante e fundamental para o relacionamento entre Deus e o povo de Israel e todos os seres humanos é no Novo Testamento a pessoa de Jesus, a sua obra e seu destino. Vejamos como nos principais escritos do Novo testamento se manifesta esse dom que Deus fez no seu Filho, Jesus Cristo, e quais são as orientações para a vida moral que daí derivam. Concluiremos com os textos sobre a Eucaristia, nos quais Jesus estabelece uma íntima relação entre sua pessoa e seu caminho e a nova aliança.

3.1. A vinda do Reino de Deus e suas implicações morais

3.1.1. O Reino de Deus: tema principal da pregação de Jesus nos sinóticos

42. Jesus fez da expressão ‘reino de Deus’ uma metáfora central do seu ministério terreno e deu-lhe um significado e uma força nova, expressa mediante as qualidades do seu ensinamento e da sua missão. Compreendido como equivalente da presença soberana do próprio Deus que vem para vencer o mal e transformar o mundo, o reino de Deus é pura graça – descoberta como tesouro escondido num campo ou como pérola de grande valor que incita a ser adquirida (cf. Mt 13,44-46); portanto não se trata de um direito natural e nem sequer pode ser merecido.

a. A expressão “o reino de Deus”

Na raiz da expressão está a convicção fundamental da fé bíblica de que Deus é o senhor e rei soberano, idéia que é proclamada nos Salmos e em outros livros bíblicos (cf. Sl 93,1-2; 96,10; 97,1; 99,1; 103,19; 145,13; Is 52,7).

Embora não fosse um tema comum ou prevalente, o ardente desejo do reino de Deus que vem, estava presente no Israel pós-exílico e equivalia ao desejo da vinda de Deus, que afasta as ameaças e injustiças sofridas pelo povo. A noção do reino de Deus tem um caráter essencialmente comunitário (derivado de um conceito político que dizia respeito a toda a comunidade de Israel), escatológico (como uma experiência definitiva da presença de Deus, que supera qualquer outra experiência de soberania) e soteriológico (pela convicção de que Deus vencerá o mal e transformará a vida de Israel). Enquanto o termo se encontra só de modo marginal e esporádico no Antigo Testamento e na literatura judaica, ele torna-se um motivo central no ensinamento e na missão de Jesus.

b. A dimensão presente e futura do reino de Deus

43. Os intérpretes do Novo Testamento há muito tempo notaram que o ensinamento de Jesus sobre o reino de Deus tem um caráter tanto futuro como presente. Alguns ditos e parábolas de Jesus descrevem o reino de Deus como um evento futuro, ainda não realizado. Isso exprime-se, por exemplo, no pedido da oração do Senhor: “venha o teu reino” e encontra-se também no texto-chave de Mc 1,14-15 (Mt 4,17), que descreve o reino de Deus como “próximo” ou “aproximado”, mas ainda não presente. As próprias bem-aventuranças, com a sua promessa de futura bênção e justificação, apresentam o reino de Deus como um evento ainda futuro.

Ao mesmo tempo, há ditos de Jesus que falam do reino de Deus como de algo de certo modo já presente. Um dito chave, tanto em Mateus como em Lucas, liga a experiência do reino de Deus com as curas e os exorcismos de Jesus: “Se eu, no entanto, expulso os demônios pelo Espírito de Deus, é porque já chegou até vós o reino de Deus” (Mt 12,28; Lc 11,20). A famosa palavra de Lc 17,20-21 “O reino de Deus não vem ostensivamente. Nem se poderá dizer: ‘Está aqui’ ou ‘Está ali’, pois o reino de Deus está no meio de vós”, reafirma também o caráter presente e inesperado do reino de Deus.

Manifesta-se aqui uma dinâmica importante com implicações para a vida moral cristã. A futura realidade do reino de Deus invade (e determina) a situação presente. O verdadeiro e definitivo destino da humanidade com Deus, quando o mal estará vencido, a justiça restabelecida e o anelo humano de vida e de paz plenamente realizado, continua uma esperança para o futuro. Mas os contornos desse futuro – um futuro que revela o pleno intento da vontade de Deus para a humanidade – ajudam a definir o que deveria ser a vida humana já no presente. Portanto, valores e virtudes, que nos tornam conformes à vontade de Deus e que serão plenamente afirmados e revelados no futuro reino de Deus, devem ser praticados agora na medida em que for possível nas circunstâncias pecaminosas e imperfeitas da vida no tempo atual, como ensinam as parábolas do joio e do trigo e da rede (Mt 13,24-30.36-43.47-50). Isso representa a dimensão também essencialmente escatológica da vida e da ética cristã.

Jesus não só proclama a proximidade do reino de Deus (Mt 4,17) mas ensina também a pedir “venha o teu reino” e “seja feita a tua vontade, como no céu, assim também na terra” (Mt 6,10). Tal anseio de que Deus venha e que a realidade humana seja formada pela vontade de Deus manifesta também a base estritamente teológica da ética cristã, dimensão que ressoa em toda a tradição bíblica: “Sede santos, porque eu, o SENHOR, vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2).

c.. O reino de Deus, a nova aliança e a pessoa de Jesus

44. O reino de Deus não vem nas manifestações habituais de realeza, mas só pode ser descoberto mediante a atenção a Jesus e à sua missão e mediante as virtudes características das quais ele dá exemplo no seu ministério. São as ações de Jesus, que nos ditos relembrados acima (Mt 12,28; Lc 11,20), estão ligadas com a atual experiência do reino de Deus. Seus exorcismos e suas curas operam uma genuína derrota do mal e do poder do Maligno sobre o corpo e sobre a pessoa humana e geram uma experiência de libertação relacionada com o reino de Deus. O ministério de Jesus exprime também a sua compaixão pelas multidões de doentes que vão ter com ele (cf Mt 9,35-36) e a acolhida desses míseros no reino de Deus (Mt 4,23-25; 15,29-31); ambas as perspectivas são apresentadas como típicas no ensinamento de Jesus sobre o reino de Deus (cf. por exemplo as parábolas sobre a misericórdia em Lc 15 e sobre o banquete em Lc 14).

Embora o termo “nova aliança” seja raro nos sinóticos, ela encontra-se relacionada com o reino de Deus. Na instituição da eucaristia, Jesus diz: “Este é o meu sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos, para a remissão dos pecados”, e logo acrescenta: “Eu vos digo: de hoje em diante não beberei deste fruto da videira, até o dia em que, convosco, beberei o vinho novo no reino de meu Pai” (Mt 26,28-29). No banquete do reino, na perfeita comunhão com Jesus e com o Pai, a nova aliança alcança a sua plenitude e é inteiramente realizada a promessa: “Eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo” (Jr 31,33b; cf. Ap 21,3).

Por meio de Jesus, Deus realiza também dois outros traços característicos da ‘nova aliança’, sem que o termo aí se encontre explicitamente. Trata-se do perdão dos pecados (iniqüidades) e do conhecimento de Deus (cf. Jr 31,34).

Num episódio referido por todos os três sinóticos, Jesus apresenta a missão aos pecadores como parte essencial da tarefa que Deus lhe confiou (Mt 9,2-13 e paralelos): Jesus perdoa os pecados a um paralítico que com grande fé e esforço é trazido para junto dele, e provoca a indignação profunda de alguns escribas. Só num segundo momento cura o paralítico com a sua palavra e interpreta essa cura como confirmação da sua autoridade de poder perdoar os pecados. Reafirma a seguir o fato de que essa autoridade não está restrita a um único caso mas fundamenta a sua missão universal: “Não são as pessoas com saúde que precisam de médico, mas as doentes. Ide, pois, aprender o que significa: Misericórdia eu quero, não sacrifícios. De fato, não são justos que vim chamar, mas pecadores” (Mt 9,12-13). É pela vontade de Deus que Jesus veio, e é Deus que quer misericórdia. Mediante Jesus, é Deus que manifesta a sua misericórdia e concede o perdão dos pecados, realizando uma característica fundamental da nova aliança (cf. Jr 31,34b).

A outra promessa “Todos me conhecerão” (Jr 31,34a) é realizada em Jesus de modo eminente. Do seu relacionamento com Deus ele diz: “Tudo me foi entregue por meu Pai; e ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,27; Lc 10,22; cf. Jr 22,16). Jesus, como Filho de Deus, é habilitado pelo Pai a um exclusivo conhecimento de Deus como Pai; ele também recebeu a exclusiva incumbência de revelá-lo, isto é, de fazer conhecer Deus como Pai. Assim, a promessa de Jr 31,34a é precisada e concretizada: através de Jesus, Filho de Deus e perfeito conhecedor do Pai, obtém-se acesso ao íntimo e perfeito conhecimento de Deus. Esse conhecimento é também necessário para uma adequada compreensão do ‘reino de Deus’, que constitui o conteúdo central do anúncio de Jesus e que Jesus às vezes chama também de “o reino do seu (ou ‘meu’) Pai” (Mt 13,43; 26,29).

O perdão dos pecados, ou seja, a reconciliação com Deus, e depois o conhecimento de Deus e a comunhão com Deus, aparecem como os empenhos principais da atividade de Jesus segundo a apresentação sinótica. Estão inseridos no anúncio do reino de Deus mas correspondem também aos traços característicos da nova aliança de Jr 31,31-34. Jesus como Filho conhece o Pai de um modo completo e exclusivo e vive na mais íntima união com Ele. Este seu particular relacionamento com Deus está na base das suas principais tarefas. A sua atividade manifesta igualmente de que modo concreto Deus comunica o seu definitivo dom e cumpre a sua promessa da nova aliança: através do mediador Jesus, que de tais qualidades dispõe.

A posição central de Jesus para o relacionamento do ser humano com Deus tem como conseqüência a sua posição central para a vida moral. Ele representa na sua pessoa não só o reino de Deus e a nova aliança, mas também a Lei, porque se deixa conduzir no modo mais perfeito pela vontade de seu Pai (Mt 26,39.42), até à manifestação máxima do seu amor, ao derramamento do seu sangue. Deve-se portanto agir no seu Espírito e seguir o seu exemplo, para andar sobre o caminho de Deus.

3.1.2. O anúncio do reino de Deus e suas implicações morais

45. Jesus anuncia o evangelho de Deus, dizendo: “Completou-se o tempo, e o reino de Deus está próximo”, e logo acrescenta a exortação para o nosso agir: “Convertei-vos e crede na boa-nova!” (Mc 1,15). Anuncia a proximidade do reino de Deus, a fim de que ele seja escutado e acolhido na conversão e na fé. É preciso uma mudança de mentalidade, um novo pensar e ver, determinado pelo reino de Deus, que numa fé consciente é reconhecido na sua plena realidade.

Tarefa principal da missão de Jesus é revelar Deus, o Pai (Mt 11,27), e o seu reino, o seu modo de agir. Essa revelação verifica-se ao longo de toda a missão de Jesus, mediante o seu anúncio, as suas obras de poder, a sua paixão e a sua ressurreição.

Fazendo isso, Jesus ao mesmo tempo revela as normas do justo agir humano. Afirma essa conexão em modo explícito e exemplar ao dizer: “Sede, portanto, perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48); conclui e fundamenta assim o seu ensinamento sobre o amor dos inimigos (Mt 5,43-48) e toda a secção das antíteses (Mt 5,21-48). Destaquemos alguns aspectos.

a. Jesus como guia

46. Jesus manifesta a sua autoridade de mostrar o justo caminho para o agir humano, especificamente no chamado dos discípulos. Todos os quatro evangelhos relatam o chamado no início do ministério de Jesus (Mt 4,18-22; Mc 1,16-20; Lc 5,1-11; Jo 1,35-51). Com o convite-ordem “Segui-me!” (Mc 1,17) ele apresenta-se como guia que conhece tanto a meta como o caminho para aí chegar e oferece aos chamados a comunhão de vida consigo e o exemplo do caminho por ele percorrido. Concretiza assim o imperativo precedente “Convertei-vos e crede!” (1,15), e seus discípulos vivem a conversão e a fé aceitando seu convite e entregando-se à sua guia.

O caminho traçado por Jesus não se apresenta como uma norma autoritária imposta de fora: o próprio Jesus percorre esse caminho e não pede outra coisa ao discípulo senão seguir o seu exemplo. Seu relacionamento com os discípulos, além disso, não consiste num adestramento asséptico e desinteressado: chama-os de “filhinhos” (Jo 13,33; 21,6), “amigos” (Jo 15,14-15), “irmãos” (Mt 12,50; 28,10; Jo 20,17); e não só a eles; pois convida todos os homens e todas as mulheres a virem a ele e a entrarem numa estreita e cordial comunhão de vida com ele (Mt 11,28-30). Nessa comunhão de vida eles aprendem o justo comportamento com Jesus, participam do seu Espírito, caminham juntamente com ele.

O relacionamento Jesus-discípulos não é uma questão com prazo, mas antes é o modelo para todas as gerações. Quando Jesus manda os onze discípulos para a missão universal, refere-se à sua autoridade plenipotenciária e diz-lhes: “Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra. Ide, pois, fazer discípulos entre todas as nações, e batizai-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-lhes a observar tudo o que vos tenho ordenado. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,18-20). Todos os membros de todos os povos, até o fim dos tempos, estão destinados a tornarem-se discípulos de Jesus. O relacionamento e a experiência com a pessoa de Jesus, que os primeiros discípulos vivenciaram, e o ensinamento que Jesus lhes transmitiu, são válidos e exemplares para todos os tempos.

b. As bem-aventuranças (atitudes particularmente sublinhadas)

47. Uma série de virtudes ou de atitudes fundamentais encontram-se nas bem-aventuranças. Mateus refere oito e Lucas quatro, no início do primeiro e mais longo discurso de Jesus (cf. Mt 5,3-10; Lc 6,20-22), apresentando-as como uma espécie de síntese do seu ensinamento. As bem-aventuranças são uma forma literária utilizada no Antigo Testamento e também em outras partes do Novo Testamento. Nelas, alegria e felicidade são atribuídas a certas pessoas e atitudes, normalmente em conexão com uma promessa de futura bênção. Em ambos os evangelhos a primeira bem-aventurança refere-se aos pobres e a última aos perseguidos: Jesus declara-os proprietários do reino de Deus, criando assim uma estreita conexão entre o tema central do seu anúncio e as atitudes por ele acentuadas.

Em Mateus (5,3-10) as bem-aventuranças mencionam os ‘pobres no espírito’, isto é, aqueles que vivem numa situação precária e, sobretudo, sabem e reconhecem que nada têm por si mesmos e dependem em tudo de Deus; depois, os ‘aflitos’, que não se fecham em si mesmos mas participam, na compaixão, das necessidades e sofrimentos dos outros. Seguem os ‘mansos’, que não usam de violência mas respeitam o próximo assim como ele é. Os que têm ‘fome e sede da justiça’ desejam intensamente agir segundo a vontade de Deus na expectativa do reino. Os ‘misericordiosos’ ajudam ativamente os necessitados (cf. Mt 25,31-46) e estão prontos ao perdão (Mt 18,33). Os ‘puros de coração’ procuram a vontade de Deus com um empenho íntegro e indiviso. Os ‘promotores da paz’ fazem de tudo para manter e para restabelecer entre as pessoas a convivência inspirada no amor. Os ‘perseguidos por causa da justiça’ permanecem fiéis à vontade de Deus não obstante as graves dificuldades que essa atitude lhes traz.

Tais virtudes e atitudes correspondem ao ensinamento de Jesus em todos os evangelhos e refletem igualmente o comportamento do próprio Jesus. Por isso, o fiel seguimento de Jesus conduz a uma vida animada por essas virtudes.

Já recordamos a estreita conexão entre a atitude humana e o agir de Deus (reino de Deus) na primeira bem-aventurança e na última. Mas essa conexão encontra-se em todas as bem-aventuranças. Cada uma delas, talvez um pouco veladamente, na sua parte final, fala do ‘futuro agir’ de Deus: Deus os consolará, Deus os fará herdar a terra, Deus os saciará, Deus será misericordioso para com eles, Deus os admitirá à sua visão, Deus os reconhecerá como seus filhos. Nas bem-aventuranças Jesus não estabelece um código de normas e obrigações abstratas que se referem ao justo agir humano; mostrando o agir justo dos seres humanos, ele revela ao mesmo tempo o futuro agir de Deus. Por isso, as bem-aventuranças são uma das mais densas e explícitas revelações sobre Deus que se encontram nos evangelhos. Elas apresentam o futuro agir de Deus não só como recompensa do justo agir humano, mas também como base e motivo que torna possível e razoável o agir humano requerido. Ser ‘pobres no espírito’ ou fiéis na perseguição não são obrigações isoladas: quem aceita com fé a revelação de Jesus sobre o agir de Deus, condensada no anúncio do reino de Deus, torna-se capaz de não se fechar na própria autonomia e sim reconhecer sua completa dependência de Deus, capaz também de não querer salvar sua própria vida a qualquer custo mas enfrentar a perseguição.

Não podemos mencionar todas as atitudes justas que se manifestam no comportamento e no ensinamento de Jesus. Recordemos só a forte insistência de Jesus no perdão em relação àqueles que se tornaram nossos devedores (Mt 6,11.14-15; 18,21-35); a solicitude pelas crianças (Mc 9,35-37; 10,13-16) e a ternura pelos pequenos (Mt 18,10-14). O seguimento de Jesus manifesta-se, de modo especial, na atitude de não querer ser servidos mas estar prontos a servir. Jesus funda essa exigência explicitamente no exemplo dado por ele mesmo: “Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos” (Mc 10,45). O serviço de Jesus é sem limite e inclui o sacrifício da vida. A morte de Jesus na cruz por toda a humanidade é a expressão mais alta do seu amor. Por isso o convite ao discipulado não significa somente seguir Jesus no seu agir, no seu estilo de vida, no seu ministério, mas inclui o convite a participar nos seus sofrimentos e na sua cruz, a aceitar perseguições e até uma morte violenta. É o que se manifesta também na exigência que Jesus dirige a todos, aos discípulos e à multidão: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me!” (Mc 8,34)

3.2. O dom do Filho e suas implicações morais, segundo João

3.2.1. O dom do Filho, expressão do amor salvador de Deus

48. O Filho veio e vem porque é enviado pelo Pai: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). O Filho veio e continua a vir, como nos explica continuamente o Espírito que anuncia “o que há de vir” (16,13). Desde a sua primeira vinda, ele é movido pelo desejo de pôr-se ao lado do ser humano para fazê-lo superar a solidão. O ser humano tem necessidade dele, mesmo se não o sabe. A aceitação da sua vinda traz salvação.

a. A vinda de Jesus

A intervenção de Jesus introduz uma ordem nova no modo de viver do ser humano. O manifesto dessa transformação é visível no diálogo com Nicodemos (Jo 3,1-21), e o vocabulário preferencial é constituído, no quarto evangelho, pelas expressões sobre a vida nova ou o novo nascimento e, na primeira carta, pelas expressões sobre a situação de filhos de Deus, nascidos de Deus; em ambos os escritos, pelo vocabulário do “permanecer” (a partir da alegoria da videira e dos ramos), mas também pela contraposição entre a ordem da carne e a do espírito. A novidade que Jesus traz é fruto de um dom gratuito, que pede para ser aceito, e quem o recusa é culpado e põe-se fora da ordem da salvação. Se depois nos perguntamos por que motivo possa acontecer tal recusa, a referência é ainda àquele que trouxe tal novidade: em última instância, é a recusa da soberania amorosa de Deus, manifestada na intervenção do seu enviado.

b. Os sinais e discursos reveladores de Jesus

49. Um particular modo demonstrativo da intervenção de Jesus, produtora de novidade, é o ‘sinal’ (em grego semeion), dotado da particular força manifestada no milagre. A própria estrutura do milagre oferece indicações particularmente eficazes: de um ponto de partida de necessidade, medo ou perigo, ou mais amiúde de sofrimento, ocorre a passagem a uma situação de superação dessas formas de carência. Jesus faz passar da festa de núpcias na qual falta o vinho (a alegria), a núpcias que dispõem de vinho em abundãncia (2,1-11); da doença perigosa (4,46-54) ou crônica (5,1-9), à saúde completa; da fome da grande multidão, à sua saciedade (6,1-15); da cegueira à luz (9,1-7) e do túmulo de morte, à vida recuperada (11,1-44). O significado dessas passagens é detalhadamente exposto em discursos de Jesus no que se refere à multiplicação dos pães (6,22-70), à cura do cego (9,8-41) e à ressurreição de Lázaro (11,1-44). Isso vem sintetizado por Jesus nos ditos singulares sobre sua própria pessoa: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome, e quem crê em mim nunca mais terá sede” (6,35). “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não caminha nas trevas, mas terá a luz da vida” (8,12). “Eu sou a porta. Quem entrar por mim será salvo; poderá entrar e sair, e encontrará pastagem” (10,9). “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas” (10,11; cf 10,14-15). “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais” (11,25-26). “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai, senão por mim” (14,6). “Eu sou a videira e vós, os ramos. Aquele que permanece em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; pois sem mim, nada podeis fazer” (15,5).

Nesses ditos, Jesus exprime o que Deus Pai entregou à humanidade na pessoa do Filho. Jesus é pão, luz, porta, pastor, ressurreição e vida, caminho, verdade e vida, e videira. Ao mesmo tempo, diz o que os homens devem fazer para poderem usufruir dos bens da sua presença: vir a ele, crer nele, segui-lo, permanecer nele. Revela ainda quais são os bens comunicados por ele: a vida, a saída das trevas e a orientação completa, a superação da morte mediante a ressurreição, o conhecimento do Pai e a plena comunhão com ele. Embora os termos sejam um pouco diversos, encontramos os dons da nova aliança, isto é, o conhecimento de Deus (luz, verdade) e a Lei (porta, pastor, caminho) e, como fruto e conseqüência, a Vida. Tudo isso está presente na pessoa de Jesus e é comunicado por ele de um modo interno e orgânico, simbolizado pelo relacionamento entre a videira e os ramos.

3.2.2. O comportamento do Filho e suas implicações morais

50. Diante do comparecimento do Filho de Deus na história, o ser humano é convidado a exprimir sua total aceitação e abrir-se à salvação. A aceitação manifesta-se como adesão à vida, em cada uma de suas atitudes.

a. Seguir o exemplo do Filho

Modelo dessa atitude é o comportamento do próprio Filho, que faz coincidir a sua vontade com a vontade do Pai, na aceitação e no cumprimento de sua missão: sua comida é fazer a vontade do Pai (4,34), ele faz sempre as coisas que lhe são agradáveis, e observa a sua palavra (8,29.55), diz as coisas que o Pai lhe mandou dizer (12,49). Da parte de Jesus, cada ensinamento seu sugere um comportamento. Até essas conseqüências chega o empenho dos “adoradores em espírito e verdade” (4,24).

Contemporaneamente ao que ele diz, tudo o que faz é normativo, pela força exemplar de tudo o que ele realiza. Em particular, a aplicação acontece pela sua atitude de serviço (recorde-se o lava-pés: “Dei-vos o exemplo” 13,15) e pela vida que ele entrega (15,13: “dar a vida por seus amigos”; o enunciado é contido numa sentença genérica mas em apoio à injunção precedente, “que vos ameis… como eu vos amei”). Por causa da autoridade de Jesus, o seu comportamento torna-se fundamento de obrigação moral, critério de escolha: é o “como” da imitação. Igualmente fundamental é o seu mandamento, que oferece a plataforma para a verificação do amor autêntico do discípulo (“quem acolhe os meus mandamentos e os observa, esse me ama” 14,21). O cume da imitação verifica-se na missão que o discípulo realiza “como” se realizou a de Jesus (20,21), como prova do amor que o discípulo nutre para com seu Senhor (21,19).

A parênese joanina apresenta Jesus como referência de comportamento, em continuação com o ensinamento do próprio Jesus. “Quem diz que permanece em Deus deve, pessoalmente, caminhar – “comportar-se” – como Jesus caminhou” (1Jo 2,6).

b. Fé em Jesus e amor aos irmãos

51. A vinda de Jesus trouxe novidade: a novidade antropológica e soteriológica torna possível e requer novidade de comportamento. A fé é a grande ‘novidade’ de atitude que se requer do homem: fé é deixar a si mesmo e ‘ir’ a Jesus, abandonar a ilusão da própria auto-suficiência e reconhecer-se cegos, necessitados de Jesus luz, mudar a atitude habitual de “julgar segundo as aparências”, zerar diante do Enviado divino a própria autonomia, para obter a própria liberdade (de filho) e vencer o pecado.

Com a fé, o amor aos irmãos. É, também isto, concreta inserção no mistério de Jesus, originado no amor do Pai. O Pai ama Jesus, Jesus ama os discípulos, os discípulos devem amar-se uns aos outros. Realidade ‘nova’, tem a força de tornar-se sinal (Jo 13,36) e de fazer superar a morte (1Jo 3,14). O amor é ‘fruto’ da fé (Jo 15,8).

Quem crê em Jesus e ama os irmãos, “não peca”, isto é, não vive em pecado (1Jo 3,6), embora todos tenhamos faltas e nesse sentido somos todos pecadores, porém “o Sangue de Jesus, o Filho de Deus, purifica-nos de todo pecado” (1Jo 1,7).

Quem crê em Jesus e ama os irmãos “conhece a Deus” verdadeiramente, porque só conhece a Deus “quem observa os seus mandamentos” (1Jo 2,3), quem faz aquilo que Jesus fez: “Ele deu a vida por nós; por isso também nós devemos dar a vida pelos irmãos” (1Jo 3,16). Pelo contrário, “quem não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor” (1Jo 4,8).

Quem crê em Jesus e ama os irmãos compreendeu verdadeiramente que “Deus é amor” (1Jo 4,16), verdade suma que será reconhecida por todos somente na medida em que os que crêem se amarem uns aos outros, especialmente aos necessitados, “não somente em palavras mas em obras”. Por outro lado, “quem ao irmão em necessidade fecha o coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?” (1Jo 3,17-18).

Essa dimensão antropológica da fé em Jesus coincide com a crítica profética à falsa religião, crítica que encontramos sintetizada em Os 6,6: “Eu quero amor (hesed, solidariedade e lealdade) e não sacrifícios; conhecimento de Deus (conhecimento que leva à justiça, cf Jr 22,15-16), mais que holocaustos”.

Assim, a ética joanina é a ética fundamental do Amor, que tem por modelo o dom da vida de Jesus, e que começa na casa da Fé – a fé cristológica – como testemunho para todos. Amor que é mandamento, instrução, Torá, como toda a ética bíblica. Amor que é o projeto de Deus para seus filhos, projeto que deve ser assumido decididamente, em luta contra o poder maligno que nos impele para a direção contrária. Ora, são esse Amor e essa Fé que “vencem o mundo” (1Jo 5,4).

c. A responsabilidade pelo mundo

52. A constante atenção à resposta que o indivíduo é chamado a dar à oferta de Deus em Cristo terá podido fazer pensar numa dimensão exclusivamente individual do empenho moral requerido pelo ensinamento joanino. A presença da comunidade, porém, corrige tal impressão: o mal tem dimensão coletiva (basta pensar na categoria “mundo”) e igualmente o bem tem uma proveniência e uma destinação também coletivas. É claramente identificável a comunidade dos que crêem, mas o é também a do “mundo” ao qual é destinada uma obra de salvação que envolve, junto com a intervenção de Jesus, também a participação dos seus. Se o amor mútuo ordenado por Jesus (Jo 13,34; 15,12-17; 1Jo 2,10-11; 3,11.23. 4,7-12) é mais imediatamente orientado para os irmãos na fé, a consciência da missão universal é decisiva para uma atitude de responsabilidade favorável, e não de condenação, em relação ao mundo.

Isso traz à luz também a importância que tem para João a práxis do amor em relação á salvação do mundo: a Igreja e o cristão são continuamente enviados ao mundo “para que o mundo creia”, e essa fé nasce precisamente de uma práxis do amor (“Nisto conhecerão todos…” 13,35). Não só cada cristão mas também a comunidade tem uma práxis nova, misteriosa (como o vento, que “não sabes de onde vem nem para onde vai” 3,8), que atrai sobre si a atenção do mundo de modo a levá-lo à fé e conseqüentemente a essa mesma práxis do amor.

3.3. O dom do Filho e suas implicações morais, segundo as cartas paulinas e outras

3.3.1. O dom de Deus segundo Paulo

53. Para o apóstolo Paulo, a vida moral não se compreende senão como uma resposta generosa ao amor e ao dom de Deus para nós. De fato, querendo fazer de nós seus filhos, Deus enviou seu Filho e enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho que clama: Abba, Pai (Gl 4,6; cf Ef 1,3-14), a fim de que não andemos mais como prisioneiros do pecado, mas ‘segundo o Espírito’ (Rm 8,5): “Se vivemos pelo Espírito, procedamos também de acordo com o Espírito” (Gl 5,25).

Os que crêem são por isso convidados a render graças constantemente a Deus (1Ts 5,18; Ef 5,20; Cl 3,15). Quando Paulo os exorta a viver uma vida digna da sua vocação, fá-lo sempre colocando diante de seus olhos o dom imenso de Deus para com eles, porque a vida moral não encontra seu verdadeiro e pleno sentido se não for vivida como uma oferta de si mesmos para responder ao dom de Deus (Rm 12,1).

3.3.2. O ensinamento moral de Paulo

54. Nos seus escritos, Paulo insiste no fato de que o agir moral do crente é um efeito da graça de Deus que o tornou justo e o faz perseverar. Porque Deus nos perdoou e nos tornou justos, ele tem prazer em nosso agir moral que dá testemunho da salvação atuando em nós.

a. A experiência do amor de Deus como base da moral

55. O que faz nascer a moral cristã não é uma norma externa mas sim a experiência do amor de Deus por cada um, uma experiência que o Apóstolo quer recordar nas suas cartas a fim de que suas exortações possam ser compreendidas e acolhidas. Ele funda seus conselhos e exortações sobre a experiência feita em Cristo e no Espírito, sem nada impor de fora. Se os crentes devem deixar-se iluminar e guiar por dentro e se as exortações e os conselhos não podem fazer outra coisa senão pedir-lhes que não esqueçam o amor e o perdão recebidos, a razão consiste no fato de que eles experimentaram a misericórdia de Deus no seu confronto, em Cristo, e que estão intimamente unidos a Cristo e receberam o seu Espírito. Poder-se-ia assim formular o princípio que guia as exortações de Paulo: quanto mais os que crêem são guiados pelo Espírito, tanto menos é preciso dar-lhes regras para a ação.

Uma confirmação do procedimento de Paulo apresenta-se no fato de que ele não inicia suas cartas com exortações morais e não responde diretamente aos problemas dos seus destinatários. Ele põe sempre uma distância entre os problemas e as suas respostas. Retoma as grandes linhas do seu Evangelho (por exemplo, Rm 1-8) e mostra como seus destinatários devem desenvolver o seu modo de compreender o Evangelho e então chega progressivamente a formular os seus conselhos para as diversas dificuldades das jovens igrejas (por exemplo, Rm 12-15).

É possível perguntar-se se Paulo também hoje escreveria dessa maneira, se é verdade que uma maioria dos cristãos talvez não tenha feito a experiência da generosidade infinita de Deus nas suas vidas e se encontram antes na situação de um cristianismo puramente ‘sociológico’.

Nesse contexto, faz-se também outra pergunta: se, com o passar dos séculos, se criou uma separação grande demais entre os imperativos morais, apresentados aos fiéis, e as suas raízes evangélicas. Em todo caso, é hoje importante formular de novo a relação entre as normas e as suas motivações evangélicas, para fazer melhor compreender como a apresentação das normas morais depende da apresentação do Evangelho.

b. O relacionamento com Cristo como fundamento do agir do cristão

56. O que determina para Paulo o agir moral não é uma concepção antropológica, isto é, uma certa idéia do homem e da sua dignidade, mas antes o relacionamento com Cristo. Se Deus justifica cada pessoa humana somente mediante a fé, sem as obras da Lei, isso não acontece a fim de que todos continuem a viver no pecado: “Nós, que já morremos para o pecado, como vamos continuar vivendo nele?” (Rm 6,2). Mas a morte ao pecado é uma morte com Cristo. Encontramos aqui uma primeira formulação do fundamento cristológico do agir moral dos crentes, fundamento expresso como união que implica uma separação: unidos a Cristo, os crentes estão de agora em diante separados do pecado. Importante é a assimilação do itinerário dos crentes ao de Cristo. Em outras palavras: os princípios do agir moral não são abstratos mas vêm antes de um relacionamento com Cristo, que nos fez morrer juntamente com ele ao pecado: o agir moral está diretamente fundado sobre a união com Cristo e sobre a inabitação do Espírito, do qual ele vem e do qual é expressão. Assim, esse agir não é, fundamentalmente, ditado por normas exteriores, mas provém do forte relacionamento que no Espírito liga os crentes a Cristo e a Deus.

Paulo tira também implicações morais da sua afirmação única e característica de que a Igreja é o “corpo de Cristo”. Para o Apóstolo, isso é mais do que uma simples metáfora e chega a um status quase metafísico. Como o cristão é membro do corpo de Cristo, cometer fornicação é juntar o corpo da prostituta ao corpo de Cristo (1Cor 6,15-17); como os cristãos formam o único corpo de Cristo, a variedade dos dons dos membros deve ser usada em harmonia e com mútuo respeito e amor, dando especial atenção aos membros mais vulneráveis (1Cor 12-13); celebrando a Eucaristia, os cristãos não devem violar ou desprezar o corpo de Cristo, ofendendo os membros mais pobres (1Cor 11,17-34; cf. abaixo, as implicações morais da Eucaristia, nn. 77-79).

c. Comportamentos principais para com o Cristo Senhor

57. Dado que o relacionamento com Cristo é tão fundamental para o agir moral dos crentes, Paulo esclarece quais são os justos comportamentos diante do Senhor.

Não freqüentemente, mas em dois textos conclusivos dos escritos paulinos, se diz que é preciso amar o Senhor Jesus Cristo: “Se algum de vós não ama o Senhor, que seja excluído!” (1Cor 16,22) e “A graça esteja com todos aqueles que amam nosso Senhor Jesus Cristo imperecivelmente” (Ef 6,24).

É claro que esse amor não é um sentimento inoperante, mas deve concretizar-se em ações. A concretização pode vir do título mais freqüente de Cristo, o de ‘Senhor’. A denominação ‘senhor’ é oposta à de ‘escravo”, ao qual compete servir. Sabemos também que ‘Senhor’ é um título divino passado a Cristo. De fato, os cristãos são chamados a “servir o Senhor” (Rm 12,11; 14,18; 16,18). Esse relacionamento dos crentes com Cristo Senhor influi fortemente nas suas relações mútuas. Não é justo comportar-se como juiz de um servo que pertence ao mesmo Senhor (Rm 14,4.6-9). As relações entre aqueles que, na sociedade antiga, são escravos e são senhores, ficam relativizadas (1Cor 7,22-23); Fm; cf Cl 4,1; Ef 6,5-9). A alguém que é servo do Senhor convém, por amor de Cristo, servir aqueles que pertencem a esse Senhor (2Cor 4,5).

Uma vez que com ‘Senhor’ passou um título divino a Cristo, podemos observar que as atitudes do crente do Antigo Testamento em relação a Deus passam também a Cristo: nele se crê (Rm 3,22.26; 10,14; Gl 2,16.20; 3,22.26; cf Cl 2,5-7; Ef 1,15); nele se espera (Rm 15,12; 1Cor 15,19); ele é amado (1Cor 16,22; cf. Ef 6,24); a ele se obedece (2Cor 10,5).

O agir justo, que corresponde a essas atitudes em relação ao Senhor, pode ser deduzido da sua vontade que se manifesta nas suas palavras, mas especialmente do seu exemplo.

d. O exemplo do Senhor

58. As instruções morais de Paulo são de gênero diverso. Ele diz com grande clareza e força que comportamentos são perniciosos e excluem do reino de Deus (cf. Rm 1,18-32; 1Cor 5,11; 6,9-10; Gl 5,14); refere-se raramente à lei mosaica como modelo de comportamento (cf. Rm 13,8-10; Gl 5,14); não ignora os modelos morais dos estóicos – aquilo que os homens do seu tempo consideravam com bom ou mau; além disso, transmite algumas disposições de Cristo sobre problemas concretos (1Cor 7,10; 9,14; 14,37); e refere-se também à “lei de Cristo” que diz: ”Carregai os fardos uns dos outros!” (Gl 6,2).

Mais freqüentes são as referências ao exemplo de Cristo, que se deve imitar e seguir. De um modo geral, Paulo diz: “Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo” (1Cor 11,1). Exortando à humildade e a não procurar só o próprio interesse (2,4), admoesta os filipenses: “Haja entre vós o mesmo sentir e pensar que no Cristo Jesus!” (2,5) e descreve todo o caminho do abaixamento e da glorificação de Cristo (2,6-11). Apresenta ainda como exemplar a generosidade de Cristo, que “se fez pobre para tornar-nos ricos” (2Cor 8,9), e a sua doçura e mansidão (2Cor 10,1).

Paulo põe especialmente em relevo a força envolvente do amor de Cristo, que atinge seu cumprimento na paixão. “O amor de Cristo nos impele, considerando que um só morreu por todos e, portanto, todos morreram. De fato, Cristo morreu por todos, para que os que vivem já não vivam para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2Cor 5,14-15). Seguindo Jesus não é mais possível uma “vida própria” segundo os próprios projetos e desejos, mas só uma vida em união com Jesus. Paulo assinala para si mesmo uma vida assim: “Eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim. Minha vida atual na carne, eu a vivo na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20). Essa atitude encontra-se igualmente na exortação da carta aos efésios: “Caminhai no amor, como Cristo também nos amou e se entregou a Deus por nós como oferenda e sacrifício de suave odor” (Ef 5,2; cf. Ef 3,17; 4,15-16).

c. O discernimento da consciência guiada pelo Espírito

59. Embora Paulo peça poucas vezes aos crentes que tenham discernimento, ele o faz de tal modo que os leva a entender que todas as decisões devem ser tomadas com discernimento, como demonstra o início da parte exortativa da carta aos romanos (Rm 12,2). Os cristãos devem discernir, porque muitas vezes as decisões a tomar não são absolutamente evidentes e claras. O discernimento consiste em examinar, sob a guia do Espírito, o que é melhor e perfeito em cada circunstância (cf. 1Ts 5,21; Fl 1,10; Ef 5,10). Pedindo aos crentes que tenham discernimento, o Apóstolo torna-os responsáveis e sensíveis à voz discreta do Espírito neles. Paulo está convencido de que o Espírito, que se manifesta no exemplo de Cristo e que está vivo nos cristãos (cf. Gl 5,25; Rm 8,14), lhes dará a capacidade de decidir o que seja mais conveniente em cada ocasião.

3.3.3. O seguimento de Cristo nas cartas de Tiago e de Pedro

60. Essas cartas pertencem às chamadas “cartas católicas”, que não são endereçadas a uma comunidade determinada mas se dirigem a um público mais amplo.

a. A carta de Tiago

Pressupondo a obra salvadora de Jesus, Tiago está especialmente interessado na vida moral dos membros da comunidade cristã. A carta põe no centro a verdadeira sabedoria que vem de Deus (1,5) e a contrapõe à falsa sabedoria, descrevendo as duas atitudes: “Essa não é a sabedoria que vem do alto. Ao contrário, é terrena, egoísta, demoníaca! Onde há inveja e rivalidade, aí estão as desordens e toda espécie de obras más. A sabedoria, porém, que vem do alto é, antes de tudo, pura, depois pacífica, modesta, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade e sem fingimento” (3,15-17).

A sabedoria do alto, o ensinamento moral revelado do alto, não é obra do ser humano mas de Deus. O homem pode somente analisá-lo, aprofundá-lo e pô-lo em prática. Trata-se de uma moral objetiva. Ao invés, a sabedoria “terrena, material e diabólica” (3,15) serve muitas vezes para justificar comportamentos amorais. A sabedoria terrena constitui uma tentação permanente do ser humano, quando quer decidir o que é o bem e o que é o mal.

A carta é também um manifesto pela justiça social, para a qual é fundamental a estima da dignidade de cada ser humano, especialmente do pobre, que de um modo particular está exposto às humilhações e desprezo da parte dos ricos e poderosos. Continua-se a defesa dos pobres já empreendida pelos profetas, especialmente por Amós e Miquéias, mas há também uma dimensão cristológica. O autor apela para “a fé no Senhor nosso Jesus Cristo, Senhor da glória” (2,1). A dignidade de Cristo glorioso é garantia da dignidade de cada cristão redimido com o sangue de Cristo e exclui os favoritismos.

Tiago insiste muito em refrear a língua (1,26; 3,1-12), a ponto de afirmar: “Aquele que não peca no uso da língua é um homem perfeito, capaz de refrear também o corpo todo” (3,2). Na Igreja têm uma particular responsabilidade os mestres (3,1), que podem criar tantas dissensões e divisões na comunidade cristã através do seu ensinamento (ou de seus escritos). Semelhante é a responsabilidade de todos aqueles que têm um forte e determinante influxo sobre a opinião pública.

b. A primeira carta de Pedro

61. O escrito fala amplamente de Jesus Cristo, da sua paixão e ressurreição e da sua futura vinda na glória, e deriva do seu caminho a justa impostação da vida cristã. O primeiro tema é o batismo (1,3-5), sinal de conversão e regeneração. A morte ao pecado deve ser total, como é total o renascimento para a vida nova. Os cristãos são regenerados “por meio da palavra de Deus” (1,23) e como “pedras vivas” constituem um “edifício espiritual, um sacerdócio santo, a fim de oferecer sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo” (2,5). Tais “sacrifícios espirituais” coincidem com toda a vida cristã enquanto animada e guiada pelo Espírito.

Os crentes não devem acomodar-se à sociedade pagã na qual vivem e na qual são “migrantes e forasteiros” (2,11). Devem abster-se “das paixões carnais” (2,11), do modo de viver pagão (cf 4,3) e conduzir os pagãos, mediante as suas boas obras, a “darem glória a Deus no dia do julgamento” (2,12). Não obstante a sua peculiaridade, eles são chamados a se inserirem na sociedade na qual vivem e a se submeterem “a toda autoridade humana, por amor ao Senhor” (2,13). Esta solícita participação na vida social manifesta-se também nas regras para os diversos relacionamentos (Estado, família, matrimônio) nos quais se vive (2,13—3,12).

Se, perseguidos, devem sofrer pela justiça, encorajados e sustentados considerando a morte violenta de Cristo (3,13; 4,1). Também nessas circunstâncias não devem fechar-se: “Estai sempre prontos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que a pedir. Fazei-o, porém, com mansidão e respeito” (3,15-16). Enquanto participam dos sofrimentos de Cristo são exortados: “Alegrai-vos, para que possais exultar de alegria quando se revelar a sua glória” (4,13).

Ao lado dessas normas para a conduta num ambiente pagão, encontram-se as exortações para a vida comunitária, que deve ser marcada pela oração, caridade, hospitalidade, e pelo uso de todo carisma em favor da comunidade. Tudo se faça “a fim de que, em todas as coisas, Deus seja glorificado, por Jesus Cristo” (4,11).

3.4. A nova aliança e suas implicações morais, segundo a carta aos Hebreus

3.4.1. Cristo, mediador da nova aliança

62. Das trinta e três ocorrências do termo “aliança” no Novo Testamento, dezessete se encontram na carta aos hebreus. Ela apresenta explicitamente a aliança mosaica (9,19-21), cita integralmente a profecia de Jeremias (8,8-12), menciona Jesus como mediador da nova aliança (8,6; 9,15; 12,24) e fala da aliança ‘nova” (8,8; 9,15; 12,24), ‘melhor’ (7,22; 8,6) e ‘eterna’ (13,20). Na sua carta, o autor descreve a intervenção de Deus mediante seu Filho Jesus para a realização da nova aliança.

a. O mediador perfeito, novo Moisés

Para introduzir-nos num íntimo relacionamento consigo, Deus escolheu seu próprio Filho como mediador perfeito, último e definitivo. Já no prólogo se encontra a afirmação central: “Deus falou-nos por meio do Filho” (1,2).

O autor apresenta desde o início uma síntese da história da salvação: descreve a ação divina para estabelecer a aliança e indica os dois aspectos do mistério pascal: “Tendo completado a purificação dos pecados, sentou-se à direita da majestade divina, nas alturas” (1,3). O Filho superou o obstáculo que impedia o relacionamento de aliança e estabeleceu definitivamente a aliança entre Deus e nós.

Cristo, Filho de Deus (1,5-14) e irmão dos homens (2,5-18), é mediador da aliança na própria constituição do seu ser. Recebe o título de “sumo-sacerdote” (2,17), a quem compete a fundamental função de exercer a mediação entre Deus e os homens. A esse título são acrescentados dois adjetivos: “digno de fé” e “misericordioso”, que designam duas qualidades, essenciais e necessárias para estabelecer e manter uma aliança. ‘Digno de fé’ refere-se à capacidade de introduzir o povo na relação com Deus, e ‘misericordioso’ exprime a capacidade de compreensão e ajuda fraterna para os homens. O mistério de Cristo compreende a adesão a Deus e a solidariedade fraterna, dois aspectos de uma única disposição de aliança.

b. A “nova aliança”, fundada no sacrifício de Cristo

63. Quando Jeremias anunciou a nova aliança, não explicou de que modo seria instituída e qual seria o seu ato fundador. O autor da carta aos hebreus proclama com tom determinado, na frase central de toda a carta: “Cristo, porém, veio como sumo-sacerdote dos bens futuros. Ele entrou no Santuário através de uma tenda maior e mais perfeita, não feita por mãos humanas, nem pertencendo a esta criação. Ele entrou no Santuário, não com o sangue de bodes e bezerros, mas com seu próprio sangue, e isto, uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna” (9,11-12). Cristo entrou no verdadeiro santuário, foi introduzido na intimidade com Deus, abriu o caminho para Deus, estabeleceu a comunicação do homem com Deus, realizou a aliança definitiva. Com que meios? “Com seu próprio sangue”, isto é, por meio da sua morte violenta transformada em oferta; por meio da oferta de sua própria vida, transformada em meio de união perfeita com Deus e de solidariedade extrema com os seres humanos. Assim Cristo “obteve uma redenção eterna” para muitos, a libertação dos pecados, que é a condição fundamental para a instituição da nova aliança.

O autor descreve em 10,1-18 o efeito, o valor salvífico do sacrifício de Cristo, e apresenta-o como a intervenção decisiva que mudou radicalmente a situação dos homens em relação a Deus. Insiste na supressão das culpas: os pecados não são mais recordados (10,17), estão perdoados (10,18). As duas frases mais significativas que definem essa eficácia salvífica fazem-no do ponto de vista positivo do dom da santidade (10,10) e da perfeição (10,14).

Portanto, a oferta única de Cristo tem um duplo efeito: confere a perfeição a Cristo e confere-a também a nós. Na sua paixão e ressurreição Cristo era passivo e ativo: recebeu e realizou a perfeição, isto é, o relacionamento perfeito com Deus, e contemporaneamente comunicou-a a nós; ou melhor, recebeu a perfeição para no-la comunicar. Assim estabeleceu a nova aliança.

3.4.2. As exigências do dom da nova aliança

64. Aqueles que por causa da oferta de Cristo receberam o perdão dos pecados foram santificados, e assim passaram à nova aliança, encontram-se numa nova situação que de sua parte requer um novo comportamento. O autor circunscreve seus traços característicos e suas exigências em 10,19-25. O texto compreende duas partes: a primeira, de natureza descritiva (vv. 19-21) e a segunda, de natureza exortativa (vv. 22-25). A parte descritiva define a nova situação criada pela intervenção de Cristo. Apresenta assim a nova aliança acima de tudo como o dom maravilhoso que Deus nos fez em Cristo, e mostra que possuímos três realidades: um direito à entrada, um caminho, e uma guia (indicativo). A parte exortativa exprime as exigências e convida a assumir as três atitudes de fé, esperança e caridade; é preciso que o ser humano acolha ativamente o dom de Deus (imperativo). O texto apresenta de modo exemplar a conexão estreitíssima entre o dom antecedente divino e a tarefa consecutiva humana, entre o indicativo e o imperativo.

a. Progredir no relacionamento com Deus

65. Nós todos somos convidados a aproximar-nos de Deus, a entrar em íntimo contacto com ele. Acima de tudo requer-se uma adesão pessoal a Deus. Esta verifica-se praticando as virtudes teologais, que têm uma relação estreita e direta com a nova aliança.

A primei