“Communionis notio” (28.05.1992)

Congregação para a Doutrina da Fé
CARTA AOS BISPOS DA IGREJA CATÓLICA SOBRE ALGUNS ASPECTOS DA IGREJA ENTENDIDA COMO COMUNHÃO

INTRODUCÃO

1. O conceito de comunhao (koinonía), já posto de manifesto nos textos do Concílio Vaticano II(1), é muito adequado para exprimir o núcleo profundo do Mistério da Igreja e pode ser, certamente, a chave de leitura para uma renovada eclesiologia católica(2). O aprofundamento da realidade da Igreja como Comunhao é, na verdade, uma tarefa particularmente importante, que oferece amplo espaço para a reflexao teológica sobre o mistério da Igreja, “cuja natureza admite sempre novas e mais profundas pesquisas”(3). Algumas visoes eclesiológicas, porém, apresentam uma insuficiente compreensao da Igreja enquanto mistério de comunhao, especialmente pela falta de uma adequada integraçao do conceito de comunhao com os de Povo de Deus e de Corpo de Cristo, e também por um insuficiente relevo dado à relaçao entre a Igreja como comunhao e a Igreja como sacramento.

2. Tendo em conta a importância doutrinal, pastoral e ecuménica dos diversos aspectos que dizem respeito à Igreja entendida como Comunhao, com a presente Carta, a Congregaçao para a Doutrina da Fé considerou oportuno recordar brevemente e esclarecer, sempre que necessário, alguns dos elementos fundamentais que devem ser considerados pontos firmes, inclusivamente no desejado trabalho de aprofundamento teológico.

I – A IGREJA, MISTÉRIO DE COMUNHÃO

3. O conceito de comunhao está “no coraçao da autoconsciência da Igreja”(4), enquanto Mistério da uniao pessoal de cada homem com a Trindade divina e com os outros homens, iniciada na f(5), e orientada para a plenitude escatológica na Igreja celeste, embora sendo já desde o início uma realidade na Igreja sobre a terra(6).

Para que o conceito de comunhao, que nao é unívoco, possa servir como chave interpretativa da eclesiologia, deve ser entendido no contexto dos ensinamentos bíblicos e da tradiçao patrística, nos quais a comunhao implica sempre uma dupla dimensao: vertical (comunhao com Deus) e horizontal (comunhao entre os homens). É essencial à visao crista da comunhao reconhecê-la, antes do mais, como dom de Deus, como fruto da iniciativa divina cumprida no mistério pascal. A nova relaçao entre o homem e Deus, estabelecida em Cristo e comunicada nos sacramentos, expande-se ainda a uma nova relaçao dos homens entre si. Consequentemente, o conceito de comunhao deve ser também capaz de exprimir a natureza sacramental da Igreja enquanto estamos “longe do Senhor”(7), assim como a peculiar unidade que faz dos fiéis os membros de um mesmo Corpo, o Corpo místico de Cristo(8), uma comunidade organicamente estruturada(9), “um povo congregado na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo”(10), e dotado ainda com os meios adequados à uniao visível e social(11).

4. A comunhao eclesial é ao mesmo tempo invisível e visível. Na sua realidade invisível, é a comunhao de cada homem com o Pai por Cristo no Espírito Santo, e com os outros homens que comparticipam na natureza divina(12), na paixao de Cristo(13), na mesma fé(14), no mesmo espírito(15). Na Igreja sobre a terra, entre esta comunhao invisível e a comunhao visível na doutrina dos Apóstolos, nos sacramentos e na ordem hierárquica, existe uma íntima relaçao. Mediante estes dons divinos, realidades bem visíveis, Cristo exercita de vários modos na história a Sua funçao profética, sacerdotal e real pela salvaçao dos homens(16). Esta relaçao entre os elementos visíveis e os elementos invisíveis da comunhao eclesial é constitutiva da Igreja como Sacramento de salvaçao.

Desta sacramentalidade deriva o facto de a Igreja nao ser uma realidade voltada sobre si mesma, mas permanentemente aberta à dinâmica missionária e ecuménica, porque enviada ao mundo para anunciar e testemunhar, actualizar e expandir o mistério de comunhao que a constitui: a fim de reunir todos e tudo em Cristo(17); de ser para todos “sacramento inseparável de unidade”(18).

5. A comunhao eclesial, na qual cada um se insere pela fé e pelo Baptismo(19), tem a sua raiz e o seu centro na Sagrada Eucaristia. Na realidade, o Baptismo é incorporaçao num corpo edificado e vivificado pelo Senhor ressuscitado mediante a Eucaristia, de tal maneira que este corpo pode ser verdadeiramente chamado Corpo de Cristo. A Eucaristia é fonte e força criadora de comunhao entre os membros da Igreja precisamente porque une cada um deles com o próprio Cristo: “na fracçao do pao eucarístico, participando nós realmente no Corpo do Senhor, somos elevados à comunhao com Ele e entre nós: ‘Visto que há um só pao, nós, embora muitos, formamos um só corpo, nós todos que participamos dum mesmo pao’ (1 Cor. 10, 17)”(20).

Por isso, a expressao paulina a Igreja é o Corpo de Cristo significa que a Eucaristia, na qual o Senhor nos dá o seu Corpo e nos transforma num só Corpo(21), é o lugar onde permanentemente a Igreja se exprime na sua forma mais essencial: presente em toda a parte e, no entanto, sendo só uma, como um é Cristo.

6. A Igreja é Comunhao dos santos, segundo a expressao tradicional que encontramos nas versoes latinas do Símbolo apostólico a partir do final do século IV(22). A comum participaçao visível nos bens da salvaçao (as coisas santas), especialmente na Eucaristia, é raiz da comunhao invisível entre os participantes (os santos). Esta comunhao comporta uma solidariedade espiritual entre os membros da Igreja, enquanto membros de um mesmo Corpo(23), e tende à sua efectiva uniao na caridade, constituindo “um só coraçao e uma só alma”(24). A comunhao conduz, de igual modo, à uniao na oraçao(25), inspirada em todos por um mesmo Espírito(26), o Espírito Santo “que penetra e une toda a Igreja”(27).

Esta comunhao, nos seus elementos invisíveis, existe nao apenas entre os membros da Igreja peregrinante na terra, mas também entre estes e todos aqueles que, tendo deixado este mundo na graça do Senhor, fazem parte da Igreja celeste ou serao nela incorporados depois de uma plena purificaçao(28). Isto significa, aliás, que existe uma mútua relaçao entre a Igreja peregrina sobre a terra e a Igreja celeste na missao histórico-salvífica. Dela resulta a importância eclesiológica nao só da intercessao de Cristo a favor dos seus membros(29), mas também da dos santos e, num modo eminente, da Santíssima Virgem Maria(30). A essência da devoçao aos santos, tao presente na piedade do povo cristao, corresponde assim à profunda realidade da Igreja como mistério de comunhao.

II – IGREJA UNIVERSAL E IGREJAS PARTICULARES

7. A Igreja de Cristo, que no Símbolo confessamos una, santa, católica e apostólica, é a Igreja universal, ou seja, a universal comunidade dos discípulos do Senhor(31), que se torna presente e operante na particularidade e diversidade das pessoas, grupos, tempos e lugares. Entre estas múltiplas expressoes particulares da presença salvífica da única Igreja de Cristo, encontram-se desde a época apostólica as que em si mesmas sao Igrejas(32), porque, embora particulares, nelas se torna presente a Igreja universal com todos os seus elementos essenciais(33). Sao por isso constituídas “à imagem da Igreja universal”(34), e cada uma delas é “uma porçao do Povo de Deus confiada à cura pastoral do Bispo coadjuvado pelo seu presbitério”(35).

8. A Igreja universal é assim o Corpo das Igrejas(36), pelo que é possível aplicar de modo analógico o conceito de comunhao também à uniao entre as Igrejas particulares e entender a Igreja universal como uma Comunhao de Igrejas. As vezes, porém, a ideia de “comunhao de Igrejas particulares” é apresentada de tal modo que enfraquece a concepçao da unidade da Igreja, sob o plano visível e institucional. Chega a afirmar-se que cada Igreja particular é um sujeito em si mesmo completo, e que a Igreja universal é o resultado do reconhecimento recíproco das Igrejas particulares. Esta unilateralidade eclesiológica, redutiva tanto do conceito de Igreja universal como do de Igreja particular, manifesta uma insuficiente compreensao do conceito de comunhao. Como a história aliás o demonstra, quando uma Igreja particular procurou alcançar a sua própria auto- suficiência, debilitando a sua real comunhao com a Igreja universal e com o seu centro vital e visível, enfraqueceu também a sua unidade interna e, além disso, viu-se em perigo de perder a própria liberdade perante as mais diversas forças de sujeiçao e de exploraçao(37).

9. Para compreender o verdadeiro sentido da aplicaçao analógica do termo comunhao no conjunto das Igrejas particulares, é necessário, em primeiro lugar, ter em conta que estas, porque sao partes da única Igreja de Cristo(38), têm com o todo, isto é, com a Igreja universal, uma peculiar relaçao de “mútua interioridade”(39), porque em cada Igreja particular “está verdadeiramente presente e actua a Igreja de Cristo, Una, Santa, Católica e Apostólica”(40). Por isso, a Igreja universal nao pode ser concebida como a soma das Igrejas particulares nem como uma federaçao de Igrejas particulares”(41). Ela nao é o resultado da sua comunhao, mas, no seu essencial mistério, é uma realidade ontologicamente e temporalmente prévia a toda Igreja particular singular.

Na verdade, ontologicamente, a Igreja-mistério, a Igreja una e única segundo os Padres precede a criaçao(42) e dá à luz as Igrejas particulares como filhas, nelas se exprime, é mae e nao produto das Igrejas particulares. Além disso, temporalmente, a Igreja manifesta-se no dia de Pentecostes na comunidade dos cento e vinte que estavam reunidos à volta de Maria e dos doze Apóstolos, representantes da única Igreja e futuros fundadores das Igrejas locais, que têm uma missao orientada para o mundo: já entao a Igreja fala todas as línguas(43).

Dela, manifestada universal na origem, têm início as diversas Igrejas locais, como realizaçoes particulares de uma e única Igreja de Jesus Cristo. Nascendo na e da Igreja universal, nela e dela têm a sua eclesialidade. Por isso, a fórmula do Concílio Vaticano II: A Igreja na e a partir das Igrejas (Ecclesia in et ex Ecclesiis)(44), é inseparável destoutra: As Igrejas na e a partir da Igreja (Ecclesiae in et ex Ecclesia)(45). É evidente a natureza mistérica desta relaçao entre a Igreja universal e as Igrejas particulares, que nao pode comparar-se com a que existe entre o todo e as partes de qualquer grupo ou sociedade puramente humana.

10. Cada fiel, mediante a fé e o Baptismo, é inserido na Igreja una, santa, católica e apostólica. Nao se pertence à Igreja universal de modo mediato, através da pertença a uma Igreja particular, mas de modo imediato, ainda que o ingresso e a vida na Igreja universal se realizem necessariamente em uma Igreja particular. Na perspectiva da Igreja entendida como comunhao, a universal comunhao dos fiéis e a comunhao das Igrejas nao sao, pois, consequência uma da outra, mas constituem a mesma realidade encarada de perspectivas diversas.

Além disso, a pertença a uma Igreja particular nunca está em contradiçao com a realidade de que na Igreja ninguém é estrangeiro(46): especialmente na celebraçao da Eucaristia, cada um dos fiéis se encontra na sua Igreja, na Igreja de Cristo, prescindindo da sua pertença, sob o ponto de vista canónico, à diocese, paróquia ou outra comunidade particular onde tem lugar essa celebraçao. Neste sentido, permanecendo firmes as necessárias determinaçoes de dependência jurídica(47), quem pertence a uma Igreja particular, pertence a todas as Igrejas; já que a pertença à Comunhao, como pertença à Igreja, nunca é somente particular, mas, pela sua própria natureza, é sempre universal(48).

III – COMUNHÃO DAS IGREJAS, EUCARISTIA E EPISCOPADO

11. A unidade ou comunhao entre as Igrejas particulares na Igreja universal, está radicada, afora a mesma fé e o Baptismo comum, sobretudo na Eucaristia e no Episcopado.

Está radicada na Eucaristia, porque o sacrifício eucarístico, embora se celebre sempre numa comunidade particular, nunca é apenas uma celebraçao dessa comunidade: esta, de facto, recebendo a presença eucarística do Senhor, recebe o dom integral da salvaçao e manifesta-se assim, apesar da sua constante particularidade visível, como imagem e verdadeira presença da Igreja una, santa, católica e apostólica(49).

A redescoberta de uma eclesiologia eucarística, com os seus indubitáveis valores, exprime-se, porém, às vezes, com acentuaçoes unilaterais a respeito do princípio da Igreja local. Afirma-se que onde se celebra a Eucaristia, far-se-ia presente a totalidade do mistério da Igreja, de modo que deveria considerar-se nao-essencial qualquer outro princípio de unidade e de universalidade. Outras concepçoes, sob influxos teológicos diversos, tendem a radicalizar ainda mais esta perspectiva particular da Igreja, ao defenderem que é o próprio reunir-se em nome de Jesus (cfr. Mt 18, 20) que gera a Igreja: a assembleia que em nome de Jesus se torna comunidade, teria em si os poderes da Igreja, incluindo o relativo à Eucaristia; a Igreja, como dizem alguns, nasceria “das bases”. Estes e outros erros semelhantes nao têm em conta suficiente que é a própria Eucaristia que torna impossível toda a auto-suficiência da Igreja particular. Efectivamente, a unidade e a indivisibilidade do Corpo eucarístico do Senhor implicam a unicidade do seu Corpo místico, que é a Igreja una e indivisível. Do centro eucarístico surge a necessária abertura de cada comunidade celebrante, de cada Igreja particular: ao deixar-se atrair pelos braços abertos do Senhor consegue-se a inserçao no Seu Corpo, único e indiviso. Até por isto, a existência do ministério Petrino, fundamento da unidade do Episcopado e da Igreja universal, está em correspondência profunda com a índole eucarística da Igreja.

12. De facto, a unidade da Igreja está também radicada na unidade do Episcopado(50). Do mesmo modo que a própria ideia de Corpo das Igrejas demanda a existência de uma Igreja Cabeça das Igrejas, que é precisamente a Igreja de Roma, a qual “preside à comunhao universal da caridade”(51), assim também a unidade do Episcopado comporta a existência de um Bispo Cabeça do Corpo ou Colégio dos Bispos, que é o Romano Pontífice(52). Da unidade do Episcopado, como da unidade de toda a Igreja, “o Romano Pontífice, enquanto sucessor de Pedro, é perpétuo e visível princípio e fundamento”(53). Esta unidade do Episcopado perpetua-se ao longo dos séculos mediante a sucessao apostólica e é também fundamento da própria identidade da Igreja de todos os tempos com a Igreja edificada por Cristo sobre Pedro e os outros Apóstolos(54).

13. O Bispo é princípio e fundamento visível da unidade na Igreja particular confiada ao seu ministério pastoral(55), mas para que cada Igreja particular seja plenamente Igreja, isto é, presença particular da Igreja universal com todos os seus elementos essenciais, constituída portanto à imagem da Igreja universal, nela deve estar presente, como elemento próprio, a suprema autoridade da Igreja: o Colégio episcopal “juntamente com a sua Cabeça, o Romano Pontífice, e nunca sem ele”(56). O Primado do Bispo de Roma e o Colégio episcopal sao elementos próprios da Igreja universal “nao derivados da particularidade das Igrejas”(57), mas interiores a cada Igreja particular. Portanto, “devemos ver o ministério do sucessor de Pedro, nao só como um serviço ‘global’ que atinge cada Igreja particular do ‘exterior’, mas como já pertencente a cada Igreja particular a partir ‘de dentro'”(58). De facto, o ministério do Primado comporta essencialmente uma potestade verdadeiramente episcopal, nao só suprema, plena e universal, mas também imediata, sobre todos, quer sejam Pastores ou outros fiéis(59). O facto do ministério do Sucessor de Pedro ser interior a cada Igreja particular é expressao necessária dessa fundamental mútua interioridade entre Igreja universal e Igreja particular(60).

14. Unidade da Eucaristia e unidade do Episcopado com Pedro e sob Pedro nao sao raizes independentes da unidade da Igreja, porque Cristo instituiu a Eucaristia e o Episcopado como realidades essencialmente vinculadas(61). O Episcopado é um só assim como uma só é a Eucaristia: o único Sacrifício do único Cristo morto e ressuscitado. A liturgia exprime de diversos modos esta realidade, manifestando, por exemplo, que cada celebraçao da Eucaristia é feita em uniao nao só com o próprio Bispo, mas também com o Papa, com a ordem episcopal, com todo o clero e com todo o povo(62). Toda celebraçao válida da Eucaristia exprime esta comunhao universal com Pedro e com toda a Igreja ou, como no caso das Igrejas cristas separadas de Roma, assim a reclama objectivamente(63).

IV – UNIDADE E DIVERSIDADE NA COMUNHÃO ECLESIAL

15. “A universalidade da Igreja, por um lado, comporta a mais sólida unidade e, por outro, uma pluralidade e uma diversificaçao, que nao obstaculizam a unidade, mas lhe conferem o carácter de ‘comunhao'”(64). Esta pluralidade refere-se quer à diversidade de ministérios, de carismas, de formas de vida e de apostolado no interior de cada Igreja particular, quer à diversidade de tradiçoes litúrgicas e culturais entre as diversas Igrejas particulares(65).

A promoçao da unidade que nao obstaculiza a diversidade, como também o reconhecimento e a promoçao duma diversificaçao que nao impede a unidade mas até a enriquece, sao tarefa primordial do Romano Pontífice para toda a Igreja(66) e, salvo o direito geral da própria Igreja, de cada Bispo na Igreja particular confiada ao seu ministério pastoral(67). Mas a edificaçao e salvaguarda desta unidade, à qual a diversificaçao confere o carácter de comunhao, é também tarefa de todos na Igreja, porque todos sao chamados a construí-la e a respeitá-la em cada dia, sobretudo mediante a caridade que é “o vínculo da perfeiçao”(68).

16. Para ter uma visao mais completa deste aspecto da comunhao eclesial -unidade na diversidade-, é necessário considerar que existem instituiçoes e comunidades estabelecidas pela Autoridade Apostólica para tarefas pastorais peculiares. Estas enquanto tais pertencem à Igreja universal, nao deixando os seus membros de ser também membros das Igrejas particulares onde vivem e actuam. Esta pertença às Igrejas particulares, com a flexibilidade que lhe é própria(69), tem diversas expressoes jurídicas. Isto nao só nao prejudica a unidade da Igreja particular fundamentada no Bispo, mas, ao contrário, contribui para conferir a esta unidade a diversificaçao interior própria da comunhao(70).

No contexto da Igreja entendida como comunhao, devem ser considerados também os diversos institutos e sociedades, manifestaçao dos carismas de vida consagrada e de vida apostólica, com os quais o Espírito Santo enriquece o Corpo Místico de Cristo: embora nao pertencendo à estrutura hierárquica da Igreja, pertencem à sua vida e à sua santidade(71).

Pelo seu carácter supradiocesano, radicado no ministério Petrino, todas estas realidades eclesiais sao também elementos ao serviço da comunhao entre as diversas Igrejas particulares.

V – COMUNHÃO ECLESIAL E ECUMENISMO

17. “Com aqueles que, estando baptizados, se honram com o nome de cristaos, mas nao professam a fé integral ou nao conservam a unidade da comunhao sob o Sucessor de Pedro, a Igreja reconhece-se unida por muitos motivos”(72). Nas Igrejas e Comunidades cristas nao católicas existem, na verdade, muitos elementos da Igreja de Cristo que permitem reconhecer com alegria e esperança uma certa comunhao, embora nao perfeita(73).

Esta comunhao existe especialmente com as Igrejas orientais ortodoxas, as quais, apesar de separadas da Sede de Pedro, permanecem unidas à Igreja Católica mediante estreitíssimos vínculos, como sao a sucessao apostólica e a Eucaristia válida, e merecem portanto o título de Igrejas particulares(74). De facto, “com a celebraçao da Eucaristia do Senhor nestas Igrejas particulares, a Igreja de Deus é edificada e cresce”(75), já que em cada celebraçao válida da Eucaristia se torna verdadeiramente presente a Igreja una, santa, católica e apostólica(76).

No entanto, dado que a comunhao com a Igreja universal, representada pelo Sucessor de Pedro, nao é um complemento externo da Igreja particular, mas um dos seus elementos constitutivos internos, a situaçao dessas veneráveis comunidades cristas implica também uma ferida na sua condiçao de Igreja particular. A ferida é ainda mais profunda nas comunidades eclesiais que nao conservaram a sucessao apostólica e a Eucaristia válida. Por outro lado, este facto comporta ainda para a Igreja Católica, chamada pelo Senhor a ser para todos “um só rebanho e um só pastor”(77), uma ferida enquanto obstáculo para a realizaçao plena da sua universalidade na história.

18. Esta situaçao exige seriamente de todos um empenho ecuménico com vista à plena comunhao na unidade da Igreja; essa unidade “que Cristo desde o princípio doou à sua Igreja e que cremos subsistir, sem possibilidade de se perder, na Igreja Católica e esperamos que cresça cada dia mais até ao final dos séculos”(78). Neste empenho ecuménico, assumem prioritária importância a oraçao, a penitência, o estudo, o diálogo e a colaboraçao, para que numa renovada conversao ao Senhor se torne possível a todos reconhecer a perenidade do Primado de Pedro nos seus sucessores, os Bispos de Roma, e ver realizado o ministério petrino, tal como é entendido pelo Senhor, como universal serviço apostólico, que está presente no interior de todas as Igrejas e que, salvaguardada a sua substância de instituiçao divina, pode exprimir-se de diversos modos, de acordo com os lugares e os tempos, como atesta a história.

CONCLUSÃO

19. A Santíssima Virgem Maria é modelo da comunhao eclesial na fé, na caridade e na uniao com Cristo(79). “Eternamente presente no mistério de Cristo”(80), Ela está, no meio dos apóstolos, no próprio coraçao da Igreja nascente(81) e da Igreja de todos os tempos. Na verdade, “a Igreja foi congregada na parte alta (do cenáculo) com Maria, que era a Mae de Jesus, e com os Seus irmaos. Nao se pode, portanto, falar de Igreja se aí nao estiver presente Maria, a mae do Senhor, com os Seus irmaos”(82).

Ao concluir esta Carta, a Congregaçao para a Doutrina da Fé, evocando as palavras finais da Constituiçao Lumen gentium(83), convida todos os Bispos e, por meio deles, todos os fiéis, especialmente os teólogos, a confiar à intercessao da Santíssima Virgem o seu empenho de comunhao e de reflexao teológica sobre a comunhao.

O Sumo Pontífice Joao Paulo II, no decurso da audiência concedida ao abaixo assinado Cardeal Prefeito, aprovou a presente Carta, decidida na reuniao ordinária desta Congregaçao, e ordenou a sua publicaçao.

Roma, Sede da Congregaçao para a Doutrina da Fé, 28 de Maio de 1992.

Joseph Card. Ratzinger
Prefeito

+ Alberto Bovone
Arceb. Tit. de Cesareia de Numidia
Secretário

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NOTAS:
(1) Cfr. Const.Lumen gentium, nn. 4, 8, 13-15, 18, 21, 24-25; Const. Dei Verbum, n. 10; Const. Gaudium et Spes, n. 32; Decr. Unitatis redintegratio, nn. 2-4, 14-15, 17-19, 22. * (2) Cfr. SINODO DOS BISPOS, II Assembleia extraordinária (1985), Relatio finalis, II, C), 1. * (3) PAULO VI, Discurso de abertura do segundo período do Conc. Vaticano II, 29-IX-1963: AAS 55 (1963) p. 848. Cfr., por exemplo, as perspectivas de aprofundamento indicadas pela COMISSÃO TEOLOGICA INTERNACIONAL, in Themata selecta de ecclesiologia, “Documenta (1969-1985)”, Lib. Ed. Vaticana 1988, pp. 462-559. * (4) JOÃO PAULO II, Discurso aos Bispos dos Estados Unidos da América, 16-IX-1987, n. 1: “Insegnamenti di Giovanni Paolo II” X, 3 (1987) p. 553. * (5) 1 Jo 1, 3: “o que vimos e ouvimos, vo-lo anunciamos, para que vós também tenhais comunhao connosco, e para que a nossa comunhao seja com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo”. Cfr. ainda 1 Cor 1, 9; JOÃO PAULO II, Ex. Ap. Christifideles laici, 30-XII-1988, n. 19; SINODO DOS BISPOS (1985), Relatio Finalis, II, C), 1. * (6) Cfr. Fil 3, 20-21; Col 3, 1-4; Const. Lumen Gentium, n. 48. * (7) 2 Cor 5, 6; Cfr. Const. Lumen gentium, n. 1. * (8) Cfr. ibidem, n. 7; Pio XII, Enc. Mystici Corporis, 29-VI-1943: AAS 35 (1943) pp. 200ss. * (9) Cfr. Lumen gentium, n. 11/a. * (10) S. CIPRIANO, De Oratione Dominica, 23: PL 4, 553; cfr. Const. Lumen gentium, n. 4/b. * (11) Cfr. Const. Lumen gentium, n. 9/c. * (12) Cfr. 2 Pd 1, 4. * (13) Cfr. 2 Cor 1, 7. * (14) Cfr. Ef 4, 13; Filem 6. * (15) Cfr. Fil 2, 1. * (16) Cfr. Const. Lumen Gentium, nn. 25-27. * (17) Cfr. Mt 28, 19-20; Jo 17, 21-23; Ef 1, 10; Const. Lumen gentium, nn. 9/b, 13 e 17; Decr. Ad gentes, nn. 1 e 5; ST. IRINEU, Adversus haereses, III, 16, 6 e 22, 1-3: PG 7, 925-926 e 955-958. * (18) S. CIPRIANO, Epist. ad Magnum, 6: PL 3, 1142. * (19) Ef 4, 4-5: “Há um só corpo e um só Espírito, como também vós fostes chamados a uma só esperança pela vossa vocaçao. Há um só Senhor, uma só fé, um só baptismo”. Cfr. também Mc 16, 16. * (20) Const. Lumen gentium, n. 7/b. A Eucaristia é o sacramento “mediante o qual a Igreja se consocia no tempo presente” (STO. AGOSTINHO, Contra Faustum, 12, 20: PL 42, 265). “A nossa participaçao no corpo e sangue de Cristo nao tende senao a transformar-nos naquilo que recebemos” (S. LEÃO MAGNO, Sermo 63, 7: PL 54, 357). * (21) Cfr. Const. Lumen gentium, nn. 3 e 11/a; S. JOÃO CRISOSTOMO, In 1 Cor. hom., 24, 2: PG 61, 200. * (22) Cfr. Denz.-Schön. 19, 26-30. * (23) Cfr. 1 Cor 12, 25-27; Ef 1, 22-23; 3, 3-6. * (24) At 4, 32. * (25) Cfr. At 2, 42. * (26) Cfr. Rom 8, 15-16.26; Gal 4, 6; Const. Lumen gentium, n. 4. * (27) S.TOMÃS DE AQUINO, De Veritate, q. 29, a. 4 c. De facto, “elevado na cruz e glorificado, o Senhor Jesus comunicou o Espírito prometido, por meio do qual chamou e reuniu na unidade da fé, da esperança e da caridade o povo da Nova Aliança, que é a Igreja” (Decr. Unitatis redintegratio, n. 2/b). * (28) Cfr. Const. Lumen gentium, n. 49. * (29) Cfr. Hebr 7, 25. * (30) Cfr. Const. Lumen gentium, nn. 50 e 66. * (31) Cfr. Mt 16, 18; 1 Cor 12, 28; etc. * (32) Cfr. At 8, 1; 11, 22; 1 Cor 1, 2; 16, 19; Gal 1, 22; Apoc 2, 1.8; etc. * (33) Cfr. PONTIFICIA COMISSÃO BIBLICA, Unité et diversité dans l’Église, Lib. Ed. Vaticana, 1989, especialmente, pp. 14-28. * (34) Const. Lumen gentium, n. 23/a; cfr. Decr. Ad Gentes, n. 20/a. * (35) Decr. Christus Dominus, n. 11/a. * (36) Const. Lumen gentium, n. 23/b. Cfr. STO. HILÃRIO DE POITIERS, In Psalm., 14, 3: PL 9, 301; S. GREGORIO MAGNO, Moralia, IV, 7, 12: PL 75, 643. * (37) Cfr. PAULO VI, Ex. Ap. Evangelii nuntiandi, 8-XII-1975, n. 64/b. * (38) Decr. Christus Dominus, n. 6/c. * (39) JOÃO PAULO II, Discurso à Cúria Romana, 20-XII-1990, n. 9: “L’Osservatore Romano”, 21- XII-1990, p. 5. * (40) Decr. Christus Dominus, n. 11/a. * (41) JOÃO PAULO II, Discurso aos Bispos dos Estados Unidos da América, 16-IX-1987, n. 3: cit., p. 555. * (42) Cfr. PASTOR DE HERMAS, Vis. 2, 4: PG 2, 897-900; S. CLEMENTE ROMANO, Epist. II ad Cor., 14, 2: Funck, 1, 200. * (43) Cfr. At 2, 1 e ss.. STO. IRINEU, Adversus haereses, III, 17, 2 (PG 7, 929-930): “no Pentecostes (…) todas as naçoes (…) eram conscientes de que se haviam tranformado num coro admirável para entoar o hino de louvor a Deus em perfeito acordo, porque o Espírito tinha anulado as distâncias, eliminado as dissonâncias e transformado o consenso dos povos em primícias para oferecer ao Pai”. Cfr. também S. FULGENCIO DE RUSPE, Sermo 8 in Pentecoste, 2-3: PL 65, 743-744. * (44) Const. Lumen gentium, n. 23/a: “(as Igrejas particulares)… nas quais e a partir das quais existe só uma e única Igreja Católica”. Esta doutrina desenvolve na continuidade o que já havia afirmado antes, por exemplo, Pio XII, Enc. Mystici Corporis, cit., p. 211: “… a partir das quais existe e é composta a Igreja Católica”. * (45) Cfr. JOÃO PAULO II, Discurso à Cúria Romana, 20-XII-1990, n. 9: cit., p. 5. * (46) Cfr. Gal 3, 28. * (47) Cfr., por exemplo, C.I.C., can. 107. * (48) S. JOÃO CRISOSTOMO, In Ioann. hom., 65, 1 (PG 59, 361): “quem está em Roma sabe que os da India sao seus membros”. Cfr. Const. Lumen gentium, n. 13/b. * (49) Cfr. Const. Lumen gentium, n. 26/a; STO. AGOSTINHO, In Ioann. Ev. Tract., 26, 13: PL 35, 1612-1613. * (50) Cfr. Const. Lumen Gentium, nn. 18/b, 21/b, 22/a. Cfr. também S.CIPRIANO, De unitate Ecclesiae, 5: PL 4, 516-517; STO. AGOSTINHO, In Ioann. Ev. Tract., 46, 5: PL 35, 1730. * (51) STO. INÃCIO DE ANTIOQUIA, Epist. ad Rom., prol.: PG 5, 685; cfr. Const. Lumen Gentium, n. 13/c. * (52) Cfr. Const. Lumen Gentium, n. 22/b. * (53) Ibidem, n. 23/a. Cfr. Const. Pastor aeternus: Denz.-Schön. 3051-3057; S.CIPRIANO, De unitate Ecclesiae, 4: PL 4, 512-515. * (54) Cfr. Const. Lumen gentium, n. 20; STO. IRINEU, Adversus haereses, III, 3, 1-3: PG 7, 848- 849; S.CIPRIANO, Epist. 27, 1: PL 4, 305-306; STO. AGOSTINHO, Contra advers. legis et prophet., 1, 20, 39: PL 42, 626. * (55) Cfr. Const. Lumen Gentium, n. 23/a. * (56) Ibidem, n. 22/b; cfr. ainda n. 19. * (57) JOÃO PAULO II, Discurso à Cúria Romana, 20-XII-1990, n. 9: cit., p. 5. * (58) JOÃO PAULO II, Discurso aos Bispos dos Estados Unidos da América, 16-IX-1987, n. 4: cit., p. 556. * (59) Cfr. Const. Pastor aeternus, cap. 3: Denz-Schön 3064; Const. Lumen gentium, n. 22/b. * (60) Cfr. supra, n. 9. * (61) Cfr. Const. Lumen gentium, n. 26; STO. INÃCIO DE ANTIOQUIA, Epist. ad Philadel., 4: PG 5, 700; Epist. ad Smyrn., 8: PG 5, 713. * (62) Cfr. MISSAL ROMANO, Oraçao Eucarística III. * (63) Cfr. Const. Lumen gentium, n. 8/b. * (64) JOÃO PAULO II, Discurso na Audiência geral, 27-IX-1989, n. 2: “Insegnamenti di Giovanni Paolo II” XII,2 (1989) p. 679. * (65) Cfr. Const. Lumen gentium, n. 23/d. * (66) Cfr. ibidem, n. 13/c. * (67) Cfr. Decr. Christus Dominus, n. 8/a. * (68) Col 3, 14. S. TOMÃS DE AQUINO, Exposit. in Symbol. Apost., a. 9: “A Igreja é una (…) pela unidade da caridade, porque todos estao unidos no amor de Deus, e entre eles no amor mútuo”. * (69) Cfr. supra, n. 10. * (70) Cfr. supra, n. 15. * (71) Cfr. Const. Lumen gentium, n. 44/d * (72) Const. Lumen gentium, n. 15. * (73) Cfr. Decr. Unitatis redintegratio, nn. 3/a e 22; Const. Lumen gentium, n. 13/d. * (74) Cfr. Decr. Unitatis redintegratio, nn. 14 e 15/c. * (75) Ibidem, n. 15/a. * (76) Cfr. supra, nn. 5 e 14. * (77) Jo 10, 16. * (78) Decr. Unitatis redintegratio, n. 4/c. * (79) Cfr. Const. Lumen gentium, nn. 63 e 68; STO. AMBROSIO, Exposit. in Luc., 2, 7: PL 15, 1555; STO. ISAAC DE STELLA, Sermo 27: PL 194, 1778-1779; RUPERTO DE DEUTZ, De Vict. Verbi Dei, 12, 1: PL 169, 1464-1465. * (80) JOÃO PAULO II, Enc. Redemptoris Mater, 25-III-1987, n. 19. * (81) Cfr. At 1, 14: JOÃO PAULO II, Enc. Redemptoris Mater, cit., n. 26. * (82) S. CROMACIO DE AQUILEIA, Sermo 30, 1: “Sources Chrétiennes” 164, p. 134. Cfr. PAULO VI, Ex. Ap. Marialis cultus, 2-II-1974, n. 28. * (83) Cfr. Const. Lumen gentium, n. 69.

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