Cerca de 400 mil anglicanos descontes com canterbury solicitam “união plena” com roma

A Comunhão Tradicional Anglicana (TAC), com centenas de paróquias em todo o mundo, poderá “retornar a Roma” em bloco. Porém, sob qual fórmula?

Mulheres-sacerdotisas, caos doutrinário, bispos ativistas homossexuais, ideologia de gênero, desprezo da liturgia… Muitos anglicanos se cansaram da desordem na Comunhão Anglicana e organizaram suas próprias congregações independentes de Canterbury. Uma destas é a Comunhão Tradicional Anglicana (TAC), que escreveu uma carta a Roma, “buscando a união plena, corporal e sacramental”. O que decidirá Bento XVI?

A TAC expediu o seguinte comunicado à imprensa e em sua página na Internet (http://www.acahome.org/tac/index.htm):

“O Colégio dos Bispos da Comunhão Tradicional Anglicana-TAC, reuniu-se em Sessão Plenária em Portsmouth, Inglaterra, na primeira semana de outubro de 2007. Os Bispos e Vigários Gerais unanimemente acordaram o texto de uma carta à Sé Romana buscando a união plena, corporal e sacramental. A carta foi assinada solenemente por todo o Colégio e confiada ao Primaz e a dois Bispos eleitos pelo Colégio, para que seja apresentada na Santa Sé. A carta foi cordialmente recebida pela Congregação para a Doutrina da Fé. O Primaz da TAC determinou que nenhum membro do Colégio concederá entrevistas até que a Santa Sé tenha apreciado a carta e haja uma resposta”.

O Primaz a que se refere o texto é John Hepworth, australiano, Arcebispo da Igreja Católica Anglicana da Austrália, uma denominação anglicana fora da comunhão com a Sé de Canterbury. Na Austrália, conta apenas com 25 paróquias. Porém, como Primaz da TAC, ao entregar em Roma a carta que solicita a união plena, tem em suas mãos o destino espiritual de 400 mil fiéis anglicanos tradicionais em todo o mundo. Agora a bola está nas mãos da Santa Sé, que pode levar algum tempo… Talvez muito tempo.

QUEM É A COMUNHÃO TRADICIONAL ANGLICANA-TAC?

Trata-se de um conjunto de igrejas de tradição anglicana que rejeitou fazer parte da Comunhão Anglicana por diversos motivos doutrinários, sobretudo a ordenação de mulheres (primeiro como sacerdotisas e, posteriormente, como bispas – o que é mais grave por razões organizacionais). Um fiel da tradição apostólica pode evitar comparecer a uma celebração religiosa presidida por uma sacerdotisa, porém… como saberá se tal ou qual sacerdote foi “ordenado” por uma “bispa” e, portanto, se são verdadeiros e eficazes os sacramentos que recebe?

A Comunhão Anglicana Tradicional (TAC) afirma possuir cerca de 400 mil fiéis. Se viessem em bloco à plena comunhão com Roma, seria o maior “retorno à casa” de protestantes desde o surgimento do Protestantismo no século XVI. As igrejas integradas a esta comunhão são:

  • A Igreja Anglicana na América (95 paróquias, 4 dioceses nos Estados Unidos, 1 diocese em Porto Rico e 1 diocese na Nicarágua, na América Central).
  • A Igreja Católica Anglicana do Canadá (43 paróquias no Canadá).
  • A Igreja Anglicana na África do Sul de Rito Tradicional (31 paróquias e 21 missões no sul da África).
  • A Igreja Católica Anglicana da Austrália (25 paróquias na Austrália, 1 na Nova Zelândia e 4 bispos).
  • A Igreja Anglicana Tradicional da Inglaterra (22 paróquias no Reino Unido)
  • A Igreja do Estreito de Torres (16 paróquias no Estreito de Torres, entre a Papua, no norte da Austrália e as ilhas da região; 3 bispos e 14 sacerdotes).
  • A Igreja da Irlanda de Rito Tradicional (3 comunidades em 3 condados da Irlanda).

E além destas, também:

  • 2 igrejas na África (a Igreja de Umzi Wase Tiyopia e a Igreja Anglicana Continuada da Zâmbia)
  • 3 igrejas na Ásia (a Igreja Anglicana da Índia, a Igreja Ortodoxa do Paquistão e a “Nippon Kirisuto Sei Ko Kai” no Japão, cujo número de paróquias não se encontra especificado na págida Web da Comunhão Anglicana Tradicional (http://www.acahome.org/tac/members/members.htm), sabendo-se porém que na Índia e na África podem possuir muitos fiéis.

A parábola do filho pródigo e a da ovelha perdida ensinam aos cristãos a alegrarem-se pelo retorno à casa de uma única ovelha, de um único filho. O que significaria, então, para a Igreja Católica a acolhida e pleno retorno de todas estas comunidades?

Não se trata de “apenas” 400 mil fiéis, o que já é grande número. Mas também uma quantidade importante de clérigos e pastores com experiência e fervor, comunidades já provadas, tanto na descristianizada Europa como no Terceiro Mundo, com impacto missionário, doutrina ortodoxa, devoção, ética pró-vida e pró-família, amor à Bíblia e à liturgia e uma dimensão multi-étnica e multi-cultural. Sem este perfil “robusto”, teriam permanecido com Canterbury.

Porém, o que é mais importante: ao buscar Roma, marca-se um caminho que deve ser seguido por milhares de outros cristãos de tradição anglicana, descontestes com os desvios antibíblicos do Anglicanismo “de gênero” e pró-homossexualista.

TODOS OS CAMINHOS LEVAM A ROMA: POR EXEMPLO, ESTES TRÊS

Existem 3 caminhos pelos quais centenas de milhares de anglicanos podem retornar à plena união com a Sé de Pedro:

1) O Caminho da Própria Vida: um cristão anglicano (de qualquer ramo) se cansa do caos doutrinário do Anglicanismo e “volta a Roma”. Procura uma paróquia católica e se submete a um curso de iniciação (em geral, nos países anglófonos, a “Iniciação Católica para Adultos”). É um passo individual, às vezes acompanhado por toda a família. Se é um sacerdote (casado ou não), pode pedir para que se lhe reconheçam ou se lhe confiram as ordens. Cada caso é um caso. Há uma freqüência constante destes casos todos os anos.

2) Outra situação: toda uma denominação anglicana que, porém, não se encontra na Comunhão Anglicana, solicita a plena comunhão com Roma. É o caso que estamos vendo ocorrer com a Comunhão Anglicana Tradicional (TAC): todo um bloco de igrejas anglicanas, que há anos romperam com Canterbury, pedem comunhão com Roma. Há muitas igrejas nesta situação de “Anglicanismo sem Canterbury”. Na Internet, em AnglicansOnLine.org, existe uma lista que inclui, além da TAC, outras 60 denominações anglicanas “sem comunhão com Canterbury” (ver, p.ex.: http://anglicansonline.org/communion/nic.html). Apenas nos Estados Unidos e Canadá, as chamadas igrejas anglicanas “continuadas” (ver http://en.wikipedia.org/wiki/Continuing_Anglican_Movement) somam mais de 650 paróquias. Se Roma acolher ao pedido da TAC é bem possível que algumas outras igrejas na mesma situação sejam atraídas.

3) Terceira possibilidade: grupos inteiros de anglicanos “ainda em comunhão com Canterbury” deixam a Comunhão Anglicana e voltam a Roma. São grupos anglocatólicos ou anglicanos tradicionais que durante décadas têm tentado obter algum espaço na Comunhão Anglicana, ou seja, para que pudessem ter suas próprias jurisdições sem mulheres bispas, pudessem fazer as coisas “à sua maneira” nas paróquias, se proibisse a ordenação de militantes homossexuais etc. Estre estes, instituições internacionais como “Forward in Faith” (http://www.forwardinfaith.com), com 800 paróquias em todo o mundo, segundo suas estimativas de 2005. [Tais grupos] olharão para Roma mais ou menos segundo a margem de manobra que o anglicanismo liberal (tal como o “Affirming Catholicism”, grupo este que, apesar de se apresentar como anglocatólicos, é favorável a mulheres bispas e bispos homossexuais) lhes permitir.

Em 2005, estimava-se em cerca de 4,2 milhões de católicos na Inglaterra e Gales contra 25 milhões de batizados anglicanos (dos quais apenas 1,7 milhão comparecem aos cultos dominicais anglicanos). Porém um forte fluxo imigratório tem ocorrido nos últimos anos. O vigário para os católicos polacos afirmou para o periódico “The Times” que estimava em cerca de 600 mil polacos (católicos, obviamente!) no Reino Unido, metade deles recém-chegados. A imigração está alterando o mapa religioso do país.

Além disso, tem aumentado o número de conversões do Anglicanismo para o Catolicismo desde que se iniciou [pela Igreja Anglicana] a ordenação de mulheres: Graham Leonard, ex-bispo anglicano de Londres, se converteu ao Catolicismo com sua esposa em 1995. Conversões recentes são também as dos ex-ministros britânicos John Gummer e Ann Widdecombe. Há algumas semanas foram recebidos na Igreja Católica Anita Henderson (esposa do bispo anglicano-irlandês de Tuam-Killala) [e Tony Blair (ex-primeiro-ministro da Inglaterra)].

UMA POSSIBILIDADE: O “USO ANGLICANO” NA IGREJA CATÓLICA

Em finais da década de 1970, um grupo de clérigos episcopalianos (=anglicanos dos Estados Unidos) pediram ao papa Paulo VI que fossem admitidos como sacerdotes católicos. Porém, eram casados e tinham filhos. Não houve resposta até 1980, quando João Paulo II estabeleceu um procedimento para que os clérigos episcopalianos casados, com família constituída, fossem ordenados sacerdotes católicos. De 1983 para cá, cerca de 75 clérigos episcopalianos casados foram ordenados sacerdotes católicos nos Estados Unidos.

No Reino Unido, desde 1990, cerca de 600 clérigos anglicanos foram ordenados como sacerdotes católicos, dos quais 150 eram casados, segundo um artigo de Dwight Longenecker publicado na CrisisMagazine.com (http://www.crisismagazine.com/june2007/longenecker.htm); o próprio articulista, aliás, era um pai de família, ex-ministro anglicano e atualmente sacerdote católico.

A Igreja Católica não admite que a ordem sacerdotal recebida por um clérigo anglicano/episcopalino seja verdadeiramente ordem sacerdotal. Falta-lhe a constância, pelo menos. Porém, suas atividades e experiências como clérigos anglicanos/episcopalianos são tão próximas das do Catolicismo que resultam em candidatos muito aceitáveis para serem ordenados sacerdotes católicos.

Nos Estados Unidos rege, desde 1980, a “Provisão Pastoral” de João Paulo II, que estabelece o “uso anglicano” dentro da Igreja Católica de Rito Latino. Apenas sete paróquias americanas a utilizam. Em geral, são comunidades que passaram do Anglicanismo para o Catolicismo, permitindo-lhes manter a liturgia ao estilo anglicano antigo: a Missa é oficiada pelo sacerdote olhando para o altar, comunga-se de joelhos e, no mais, se assemelha a uma Missa do século XVI (porém, em inglês e não em latim).

O último caso registrado foi o da Sociendade São Tomás Moro, em Scranton, Pennsylvânia: vinte famílias episcopalianas que se tornaram católicas e mais seu pastor episcopaliano, o qual foi ordenado sacerdote católico (o padre Eric Bergman). A Missa segue o “uso anglicano” na Paróquia Católica de Santa Clara.

Em novembro de 2006, o Arcebispo Myers (como delegado dos Bispos católicos norte-americanos) e a Sociedade do Uso Anglicano (http://anglicanuse.org; que visa promover o “uso anglicano”), se reuniram e trataram das possibilidades de se potencializar este uso. Por um lado, ajudará ao clero episcopaliano que quer se tornar católico (um clero que muitas vezes é casado e tem filhos, o que implica despesas financeiras); por outro lado, se pede para que o clero provindo do Episcopalianismo seja ordenado para “o uso anglicano”, mesmo quando não chega acompanhado por um grupo de fiéis anglicanos, convertidos juntamente com ele.

A Sociedade do Uso Anglicano acredita que os fiéis chegarão. E que os sacerdotes também. Muitos anglicanos e episcopalianos que olham no sentido de Roma querem fugir do liberalismo moral, da má liturgia, do fideísmo… Procuram a beleza – o que encontram no luxuoso “uso anglicano”, mais do que na missa nova pós-Vaticano II. Sentiriam-se melhor se pudessem manter a liturgia anglicana quando “retornassem a Roma”.

O que acontecerá com todas essas paróquia da TAC que solicitam agora a comunhão com Roma? Lhes será exigido que abandonem suas liturgias anglicanas? Não poderia ser adaptada tanto para a Austrália quanto para a Índia, África do Sul etc. a mesma provisão que rege o uso anglicano nos Estados Unidos?

Com mais de 60 denominações anglicanas desvinculadas de Canterbury e com centenas de paróquias ainda ligadas a Canterbury, porém cada vez mais descontentes, o uso anglicano seria uma opção de ponte.

Bento XVI e o Vaticano têm demonstrado serem capazes de tratar com grupos tradicionalistas católicos, que têm voltado à união com a Sé de Pedro. Provavelmente, então, veremos nos próximos anos muitas comunidades anglicanas encontrarem o seu lugar dentro da Igreja Católica.

E, por meio delas, vale a pena olhar para o restante do mundo protestante. Muitos evangélicos pró-vida e pró-família há anos enxergam Roma como aliada e não como inimiga. Também existem pontes ecumênicas importantes no mundo como a experiência carismática católica e a protestante, as iniciativas de evangelização conjunta, ou do trabalho social contra a pobreza. À medida que a incerteza teológica divide os protestantes em liberais e conservadores, em um Cristianismo fracionado, Roma aparece cada vez mais como a aposta mais clara do desejo de Jesus: “Pai, que todos sejam um”.

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