Colaboramos ou não para nossa salvação?

Por Alessandro Lima

Vimos que Deus nos salva, isto é, nos recupera para sermos santos, fiéis cumpridores de Sua vontade. É para esta santificação que a Sua Graça nos é concedia por meio da Fé em Jesus Cristo. Esta ação da Graça de Deus O faz real salvador do homem.

Um médico que aceita receber um doente e diz a ele “você não está mais doente” sem tê-lo curado realmente não foi médico para aquele doente. Ainda, um mecânico que aceite receber um carro cheio de problemas, não foi mecânico se não tiver concertado o que havia de errado no carro.

O médico que cura o doente o faz esperando que ele viva uma vida saudável. Nenhum médico visa a plena saúde do enfermo para que este se entregue a uma vida desregrada. Também o mecânico quando concerta um carro, visa o seu bom funcionamento na mão de seu dono. Por isso que S. Paulo disse que o justo é obra de Deus para as boas obras (cf. Ef 2,10).

Conseqüentemente aquele que tem fé em Jesus Cristo e recebeu a Graça de Deus para cumprir as boas obras da Lei e não as cumpre, não pode ser considerado justo, mas culpado. Isso podemos testificar na carta de S. Paulo aos Romanos: “Porque diante de Deus não são justos os que ouvem a lei, mas serão tidos por justos os que praticam a lei” (Rm 2,13).

A Graça de Deus não tolhe o livre-arbítrio do homem, isto é, ela não age no homem de forma imperativa. A ação regeneradora da Graça, isto é, santificante, ajuda a vontade humana a cumprir a vontade de Deus, para que o homem querendo fazer o bem possa realmente fazê-lo, mas pelo ato livre de sua vontade. Por isso dizemos que a Graça não elimina a liberdade da vontade, mas a torna realmente livre.

Portanto, se o cumprimento da Lei depende da livre vontade do homem (ajudada pela Graça), este pode ou não colaborar para a sua justificação (6).

Justo é aquele que cumpre a Lei

Nesta disposição das coisas percebemos a sabedoria de Deus. Se a justificação dependesse somente do homem e não também da Graça que é concedida mediante a Fé em Jesus Cristo, o homem poderia gloriar-se de si mesmo e Deus não seria seu salvador. Se a Graça age de forma imperativa no homem, aqueles que não creram poderiam dizer que não são culpados, pois Deus não lhes concedeu a Graça de crer e cumprir a Sua justiça. Porém, a Sua Graça Deus concede a todos e esta respeita a livre escolha de cada um.

Devemos lembrar que a Graça não santifica totalmente o homem de uma ora para outra, esta regeneração é gradativa, “nosso interior renova-se de dia para dia” (cf. 2Cor 4,16).

Como vimos é justo aquele que cumpre a Lei (cf. Rm 2,13), não somente aquele que crê. A colaboração do homem para a sua justificação é ainda mais clara aqui:

A circuncisão, em verdade, é proveitosa se guardares a lei. Mas, se fores transgressor da lei, serás, com tua circuncisão, um mero incircunciso. Se, portanto, o incircunciso observa os preceitos da lei, não será ele considerado como circunciso, apesar de sua incircuncisão? Ainda mais, o incircunciso de nascimento, cumprindo a lei, te julgará que, com a letra e com a circuncisão, és transgressor da lei. Não é verdadeiro judeu o que o é exteriormente, nem verdadeira circuncisão a que aparece exteriormente na carne. Mas é judeu o que o é interiormente, e verdadeira circuncisão é a do coração, segundo o espírito da lei, e não segundo a letra. Tal judeu recebe o louvor não dos homens, e sim de Deus” (Rm 2,25-29)

Lembremos que esta colaboração só se dá com verdadeira liberdade da vontade, o que depende da Graça de Deus e não dos méritos próprios do homem (para que este não se glorie).

A Graça nos regenera e renova pela ação do Espírito Santo. É através do Espírito Santo que somos revestidos pela Glória de Deus, ação esta que nos devolve a dignidade perdida no Éden.

É isto que S. Paulo ensina a seu discípulo Tito:

[Somos justificados] E, não por causa de obras de justiça que tivéssemos praticado, mas unicamente em virtude de sua misericórdia, ele [Cristo] nos salvou mediante o batismo da regeneração e renovação, pelo Espírito Santo” (Tito 3,5).

Alguém poderia pensar que S. Paulo esteja eliminando até mesmo as obras realizadas com a ajuda da Graça. Veja que o Apóstolo usa o verbo no passado (“tivéssemos praticado”), fazendo referência às obras praticadas antes da Fé. Devemos lembrar que o próprio apóstolo diz que ninguém é justo se não praticar as obras da Lei (cf. Rm 2,13.25-29).

Vejamos agora um interessante trecho da carta de S. Tiago:

“Crês que há um só Deus. Fazes bem. Também os demônios crêem e tremem. Queres ver, ó homem vão, como a fé sem obras é estéril? Abraão, nosso pai, não foi justificado pelas obras, oferecendo o seu filho Isaac sobre o altar? Vês como a fé cooperava com as suas obras e era completada por elas. Assim se cumpriu a Escritura, que diz: Abraão creu em Deus e isto lhe foi tido em conta de justiça, e foi chamado amigo de Deus (Gn 15,6)“. (Tg 2,19-22) (grifos meus).

Aqui também as obras a que S. Tiago se refere são as obras motivadas pela fé, e não as obras antes da fé. Isto atestamos nas palavras “vês como a fé cooperava com as SUAS OBRAS e era completada por elas”.

A mesma catequese é confirmada por S. João: “Mas aquele que pratica a verdade, vem para a luz. Torna-se assim claro que as suas obras são feitas em Deus” (Jo 3,21).

A Graça nos encaminha à salvação na Fé em Jesus Cristo concedendo à natureza humana o poder de cumprir a Lei. Por isso mais uma vez ensinou S. Paulo: “Poderoso é Deus para cumular-vos com toda a espécie de benefícios, para que tendo sempre e em todas as coisas o necessário, vos sobre ainda muito para toda espécie de boas obras” (2Cor 9,8). Ainda em Hebreus: “Olhemos uns pelos outros para estímulo à caridade e às boas obras” (Hb 10,24).

Por isso Cristo se manifestou, porque sem Ele a Graça não viria e as obras da carne não seriam destruídas. É o que nos ensina S. João: “Aquele que peca é do demônio, porque o demônio peca desde o princípio. Eis por que o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do demônio” (1Jo 3,8).

Vê-se desta forma que as obras da Fé fortalecem a Fé, colaborando para a salvação. Não que tenhamos que completar alguma coisa ao Sacrifício de Cristo, mas a porta do céu aberta pela morte e ressurreição do Senhor, espera que o homem por sua livre-vontade e colaboração (auxiliadas pela Graça) queira nela adentrar. É desta forma que a nossa salvação também depende de nós.

Ora, se somos obras de Deus criados para a prática das boas obras (Ef 2,10) e só é justo quem for cumpridor da Lei (cf. Rm 2,13.25-29), conseqüentemente Deus nos julgará por nossas obras na fé, pois são elas que dão testemunho de nossa fé em Jesus Cristo (cf. Tg 2,19-22).

O Juízo de Deus

Certa vez Nosso Senhor disse: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que não der fruto em mim, ele o cortará; e podará todo o que der fruto, para que produza mais fruto” (Jo 15,1-2).

As palavras acima são fabulosas, pois nelas se encontra o centro da teologia da Graça e da Justificação.

Elas ensinam que os cristãos dão frutos por estarem ligados a Cristo. Como já vimos é a Graça do Espírito Santo que possibilita esta ligação, pois sem ela ninguém é cumpridor da vontade de Deus. Também ensinam que “todo ramo que não der fruto [em Cristo][…] ele o cortará”.

Ainda: “O machado já está posto à raiz das árvores. E toda árvore que não der fruto bom será cortada e lançada ao fogo” (Lc 3,9).

Ora, isto mostra o que é avaliado por Deus para condenar ou salvar alguém: as suas obras motivadas pela Fé em Cristo.

Como se vê isto não tem nada a ver com uma “doutrina do galardão” (cf. Lc 6,23), muito difundida entre os protestantes, onde Deus recompensará uns e outros conforme o que receberam e fizeram. Com efeito, os salvos serão recompensados segundo suas obras (cf. Mt 16,27; Ap 22,12). Porém, TODOS serão julgados conforme as obras que fizeram (cf. Mt 25; Lc 12,36-59).

Neste contexto Deus agirá como alguém que premia atletas. Nem todos os competidores serão considerados vencedores, tudo dependerá da forma como correram. Porém, os vencedores são premiados conforme sua vitória (medalha de ouro, prata ou bronze).

O fato do organizador da prova recompensar na justa medida os vencedores (galardão), não significa que todos que aceitaram correr serão vencedores (salvação).

Por isso S. Paulo ensinou: “Assim, eu corro, mas não sem rumo certo. Dou golpes, mas não no ar. Ao contrário, castigo o meu corpo e o mantenho em servidão, de medo de vir eu mesmo a ser excluído depois de eu ter pregado aos outros” (1Cor 9,26-27) (7).

O Apóstolo também sabia que o juízo de Deus se daria conforme as obras na fé em Cristo:

Mas, pela tua obstinação e coração impenitente, vais acumulando ira contra ti, para o dia da cólera e da revelação do justo juízo de Deus, que retribuirá a cada um segundo as suas obras: a vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem, buscam a glória, a honra e a imortalidade; mas ira e indignação aos contumazes, rebeldes à verdade e seguidores do mal” (Rm 2,5-8) (grifos meus).

S. João também confirma este ensinamento:

“Se invocais como Pai aquele que, sem distinção de pessoas, julga cada um segundo as suas obras, vivei com temor durante o tempo da vossa peregrinação” (1Pd 1,17) (grifos meus).

O próprio Senhor confirma no Apocalipse:

“Vi os mortos, grandes e pequenos, de pé, diante do trono. Abriram-se livros, e ainda outro livro, que é o livro da vida. E os mortos foram julgados conforme o que estava escrito nesse livro, segundo as suas obras. O mar restituiu os mortos que nele estavam. Do mesmo modo, a morte e a morada subterrânea. Cada um foi julgado segundo as suas obras” (Ap 20,12-13) (grifos meus).

“Farei perecer pela peste os seus filhos, e todas as igrejas hão de saber que eu sou aquele que sonda os rins e os corações, porque darei a cada um de vós segundo as suas obras” (Ap 2,23) (grifos meus).

Como se vê é claríssimo na Escritura a catequese sobre o juízo de Deus, que avalia as obras de cada um.

Logo a única garantia que podemos ter de nossa salvação é a perseverança na Graça de Deus. Com efeito, também disse o Senhor: “Então ao vencedor, ao que praticar minhas obras até o fim, dar-lhe-ei poder sobre as nações pagãs” (Ap 2,26) (grifos meus).

Desta forma, “Vedes como o homem é justificado pelas obras e não somente pela fé? Do mesmo modo Raab, a meretriz, não foi ela justificada pelas obras, por ter recebido os mensageiros e os ter feito sair por outro caminho? Assim como o corpo sem a alma é morto, assim também a fé sem obras é morta” (Tg 2,19-26) (grifos meus).

Penso que já termos repostas suficientes às últimas perguntas: 2) a salvação do crente depende ou não de seu testemunho de vida? 3) o crente pode ou não perder a sua salvação?

Se você ainda tem dúvida, S. Tiago ainda tem uma palavra para você: “De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso esta fé poderá salvá-lo?” (Tg 2,14).

Notas

(6) O termo “justificação” pode ser usado em dois sentidos. O primeiro é quando Deus perdoando os pecados do homem o declara seu amigo, isto é, justo. O outro é quando o homem já se encontra salvo, isto é, quando a justiça de Deus lhe alcançou. É neste último sentido que o termo é aqui empregado.

(7) Alguns dizem que S. Paulo se refere aqui não à sua salvação, mas ao seu ministério. Porém no verso 25 ele mostra o alvo da corrida – “uma coroa incorruptível” – forte alusão à salvação, conforme atestamos também em Ap 2,10.

Fragmento da obra “A Fé, a Graça, as Obras e a Salvação” publicada como ebook pelo Apostolado Veritatis Splendor, de autoria de Alessandro Lima*.

* O autor é arquiteto de software, professor, escritor, articulista e fundador do Apostolado Veritatis Splendor.

Facebook Comments

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.