Como pode Maria, uma criatura, ser “Mãe de Deus”?

– “Como pode Maria, uma criatura, ser ‘Mãe de Deus’?” (Metodista – São Gonçalo-RJ).

A afirmação de que “Maria é Mãe de Deus” pode parecer paradoxal: seria Maria anterior a Deus? Algo mais do que o próprio Deus? O aparente paradoxo, porém, é mera consequência do mistério de Cristo ou da reta fé em Cristo.

Merece atenção o fato de que os teólogos começaram a focalizar a Maternidade Divina por ocasião de seus estudos sobre Cristo; foi, pois, por causa de Cristo, e para corroborar verdades concernentes a Cristo, que Maria se tornou objeto de consideração especial da teologia e da piedade cristãs, tão intimamente está ela associada a Jesus! É o que passamos a ver.

No início do séc. V, em Constantinopla, o Patriarca Nestório pôs-se a explicar de modo errôneo o mistério de Cristo; atribuía a Jesus duas naturezas e duas personalidades, afirmando assim uma união assaz vaga entre o Divino e o humano no Redentor. O Filho de Deus estaria contido no homem Jesus como a estátua está no templo. A consequência disto era que Maria não deveria ser chamada “Mãe de Deus” (“Theotókos”), como se fazia desde tempos remotos; seria apenas a mãe do homem Jesus, ao qual sobreveio a pessoa do Filho de Deus para nele habitar em união meramente moral, em concórdia semelhante à que se pode dar entre duas pessoas justapostas. No máximo – dizia Nestório – Maria poderia ser dita “Mãe de Cristo” (“Christotókos”), pois gerou uma pessoa humana que, uma vez unida a Deus, se chama “Cristo”. O Patriarca assim resumia toda a sua doutrina na negação da Maternidade Divina de Maria; rejeitando o título “Theotókos”, julgava ter afirmado sua nova Cristologia.

A tese de Nestório, porém, não satisfazia aos dados da Revelação, a qual afirma união muito mais íntima entre o humano e o Divino em Cristo; a nossa Redenção implica uma consagração muito mais rica do humano. Em consequência, os bispos e teólogos da Igreja reunidos no Concilio Geral de Éfeso (Ásia Menor), em 431, declararam, inspirando-se na fé tradicional, haver em Cristo duas naturezas, sim – a divina e a humana – mas uma só Pessoa – a Divina.

O que significa exatamente esta fórmula?

Por “natureza” entende-se a essência de um ser, aquela estrutura íntima que faz que ele seja tal e atue como tal; é, pois, em linguagem técnica, o princípio radical da atividade de um ser. A natureza do homem, por exemplo, aquilo que faz que ele seja homem, não é nem a sua estatura ereta, nem a sua linguagem, mas a sua racionalidade; é desta que decorre o modo de agir característico do homem no conjunto das criaturas. Todos os homens têm necessariamente a mesma natureza, como se entende; caso contrário, deixariam de ser homens.

Sabemos, porém, que na realidade concreta não se encontram animais racionais simplesmente ditos, indiferenciados uns dos outros; o ser racional só subsiste revestido de notas que o individualizam e o distinguem dos outros indivíduos possuidores da mesma natureza. Sim; Pedro, Paulo e João são homens, têm a mesma natureza humana, mas cada um tem sua personalidade própria, que o individualiza; é somente debaixo de tais personalidades individuais que a natureza se encontra no mundo.

Distingue-se, portanto, da “natureza” a “personalidade”. Esta é o que dá subsistência real àquela; é o Eu que, com suas modalidades individuais, utiliza as faculdades da natureza ou do fundo comum a todos os homens.

Pois bem: a fé ensina que em Cristo havia “duas naturezas” ou “dois princípios de ação” — o Divino e o humano — não mutilados, mas íntegros. Acrescenta, porém, que a natureza humana em Cristo não subsistia por efeito de uma personalidade humana e, sim, porque a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade lhe dava subsistência ou personalidade; esta mesma Pessoa, em virtude da Encarnação, passou a subsistir em duas naturezas: a Divina, na qual se achava desde toda a eternidade, e a humana, que ela tomou no seio de Maria Santíssima. Tão íntima era a união do humano com o Divino em Cristo que o “Eu” de Jesus não era um “Eu humano”, mas “Eu divino”.

Destas premissas se conclui que Maria pode e deve ser dita “Mãe de Deus”. De fato, pelo Santo Evangelho sabemos que ela gerou a Cristo, esse indivíduo que subsistia em virtude de uma personalidade divina. Ora, visto que quem gera, gera uma pessoa, não uma natureza abstrata, Maria, gerando a natureza humana de Cristo, gerou também a personalidade divina que lhe estava unida; gerou-a não de maneira a lhe dar o ser simplesmente, mas gerou-a como Pessoa Divina subsistente na natureza humana.

Não basta, portanto, dizer que Maria é “Mãe de Cristo” (na acepção nestoriana). Quem lhe denega o título de “Mãe de Deus”, nega ao mesmo tempo o mistério de Cristo e a sublime maneira pela qual o Pai Eterno quis realizar a Redenção do nosso gênero; esta não implica menos do que a divinização da natureza humana, segundo a bela concepção dos Santos Doutores:

– “Para que os homens nascessem de Deus, nasceu Deus primeiramente dos homens. Cristo é Deus e Cristo nasceu dos homens. Na terra só procurou mãe, porque já tinha Pai no céu. Nasceu de Deus aquele por quem havíamos de ser formados; e nasceu da mulher aquele por quem havíamos de ser reformados (…) O Verbo quis nascer do homem (…) para que tu realmente nascesses de Deus e dissesses a ti mesmo: ‘Não foi em vão que Deus quis nascer do homem. Apreciou-me como se eu fosse coisa importante, a ponto de me tornar imortal, nascendo Ele mortalmente por meu amor’” (Santo Agostinho, Comentário em São João, Tratado 2,1).

Vê-se assim que a fórmula “Maria, Mãe de Deus” vem a ser uma breve síntese das verdades centrais da fé católica.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 6:1957 – out/1957
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