Confissão, penitência e reconciliação

A penitência é “um Sacramento da Nova Lei, instituída por Cristo, em que é outorgado o perdão dos pecados cometidos após o Batismo, através da absolvição concedida pelo sacerdote àqueles que com verdadeiro arrependimento confessam seus pecados e prometem oferecer a satisfação pelos mesmos. É chamado ‘Sacramento’ e não uma simples função ou cerimônia, pois é um sinal interno instituído por Cristo para transmitir graça à alma. Como sinal externo, compreende as ações do penitente ao se apresentar ao sacerdote e acusar os seus pecados, além das ações do sacerdote ao pronunciar a absolvição e impor a satisfação”[1].

É importante notar que “a confissão não é realizada no segredo do coração do penitente, nem tampouco [confessado] a uma pessoa comum, tal como um amigo ou confidente, nem mesmo a um representante da autoridade humana, mas sim a um sacerdote devidamente ordenado com a jurisdição requerida e com o poder das chaves, isto é, o poder de perdoar os pecados, que Cristo outorgou à Sua Igreja”[2].

As finalidades do presente estudo consistem em aprofundarmos na fundamentação bíblica e histórica deste Sacramento e analisarmos à luz desta evidência os erros introduzidos na raiz da Reforma Protestante, como também as distorções históricas efetuadas pelas denominações surgidas a partir de então, a ponto de se converter em uma “história alternativa” totalmente diferente da real.

O FUNDAMENTO BÍBLICO

A faculdade que a Igreja tem para conceder em nome de Deus o perdão dos pecados provém do próprio Cristo, que conferiu esta faculdade aos seus Apóstolos quando disse-lhes: “A paz esteja convosco. Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”. Após dizer isto, soprou sobre eles e lhes disse: “Recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem perdoardes os pecados, estes serão perdoados. Aqueles a quem os retiverdes, estes serão retidos”[3]. Disse ainda a Pedro: “Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus; e o que desligares na terra será desligado nos céus”[4]; e também aos Apóstolos: “Eu vos asseguro: tudo o que ligares na terra será ligado no céu; e tudo o que desligares na terra será desligado no céu”[5].

O significado de ligar e desligar não se limita à autoridade de definir o que é lícito e o que não é no tocante a doutrina, mas também a faculdade de conceder o perdão dos pecados, já que o poder outorgado aqui não é limitado: “TUDO o que ligares”, “TUDO o que desligares”. Esse poder, por sua vez, é confirmado explicitamente por Cristo ao permitir ou reter os pecados.

OBJEÇÕES PROTESTANTES

Existem diversas objeções da parte das diferentes denominações protestantes acerca do Sacramento da Penitência. O Protestantismo em geral declara que não é necessária a intervenção humana para que Deus perdoe o pecado e que este deve ser confessado em particular apenas [e diretamente] para Deus.

Um exemplo que retirei do “Manual Prático para a Obra do Evangelismo Pessoal” afirma:

– “Não encontramos nas Santas Escrituras nenhuma linha que ordene ao Cristianismo confessar seus pecados diante de um homem”[6].

Outro exemplo encontramos nos comentários de um dos numerosos apologistas protestantes da Internet, que escreve mais com paixão do que com sabedoria:

– “Jesus Cristo admitiu implicitamente que o único que perdoa os pecados é Deus (Marcos 2:7 e Lucas 5:21). E o próprio apóstolo João afirma que Deus é fiel e justo para perdoar os pecados: ‘Se confessamos nossos pecados, Ele é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e limpar-nos de toda maldade’ (1João 1:8-9). Nem neste texto, nem em nenhum outro da Escritura, está registrado que algum apóstolo atuou como confessor ou absolveu os pecados de algum cristão”[7].

CONFISSÃO

Esta espécie de objeção comete o erro de confundir QUEM concede o perdão (Deus) com o MEIO que Deus utiliza para administrá-lo (o sacerdote). O texto bíblico acima citado não contradiz a confissão dos pecados perante o sacerdote ou a Igreja, mas o deixa implícito (parte de algo que já se sabia – que à Igreja foi outorgada a faculdade de perdoar os pecados – para nos dar a entender que Deus é fiel e justo para perdoar aquele que reconhece suas faltas). Isto se torna mais claro quando analisamos o contexto inteiro. O versículo anterior diz: “Se dissermos que não temos pecado, enganamos a nós mesmos”, que complementa o seguinte: “[porém] se reconhecemos os nossos pecados, fiel e justo é Ele para nos perdoar”. O texto é em si uma exortação ao reconhecimento das próprias faltas (ao invés de negá-las) e nunca uma desculpa ou aval para confessarmos os nossos pecados diretamente a Deus.

Também é incorreto afirmar que Cristo admitiu que apenas Deus perdoa o pecado. A Escritura assinala que Ele tem a faculdade para fazê-lo, sem entrar em polêmica sobre a sua divindade: “Pois para que saibais que o Filho do Homem tem poder na terra para perdoar os pecados”[8]. A seguir prova, através de um milagre físico (o sinal externo da cura do paralítico), o que é um verdadeiro milagre espiritual (a realidade interna do perdão do pecado). Por fim, na conclusão deste ensinamento, nos é declarado: “E ao ver isto, as pessoas temiam e glorificavam a Deus por ter dado tal poder aos homens”[9]. É óbvio que isto não se referia à saúde física, que era a prova tangível de um milagre muito mais portentoso, mas ao milagre em si da cura espiritual do enfermo mediante o perdão dos pecados. E mesmo que Cristo, nesse momento, quisesse reconhecer tal fato implicitamente (coisa que não admitimos), isto tampouco impediria que Cristo pudesse posteriormente transmitir esse poder aos seus Apóstolos, como está firmemente atestado na Escritura.

Tampouco é certo que nenhum Apóstolo ou outro discípulo tenha atuado de confessor, ou de que inexiste na Escritura a menção de confessar os pecados a algum homem. Existem referências bíblicas explícitas que jogam por terra essas afirmações, demonstrando que os pecadores arrependidos não se limitavam a uma confissão interior. O Evangelho de Marcos narra como aqueles que procuravam João Batista para ser batizados lhe confessavam os seus pecados: “Acudia a ele gente de toda a região da Judéia e de toda Jerusalém, e eram batizados por ele no rio Jordão, confessando seus pecados”[10]. O mesmo se afirma daqueles que, ao converterem-se, acudiam aoshttp://blog.cancaonova.com/padresilvioandrei Apóstolos: “Muitos dos que haviam crido vinham confessar e declarar suas práticas”[11]. Há evidência também de que o pecador não apenas devia confessar o seu pecado a Deus, mas também à Igreja: “Confessai, pois, mutuamente os vossos pecados e orai uns pelos outros, para que sejais curados”[12].

Mesmo que não vejamos nestes textos uma confissão auricular tal como a conhecemos hoje, podemos constatar dois fatos chaves: Cristo concedeu aos Apóstolos a faculdade de perdoar pecados e o pecador não se limitava à confissão interior. Como poderiam os Apóstolos perdoar pecados secretos a menos que os fiéis os confessassem?

É incorreta também a objeção de que quando na Escritura se ordena confessar os pecados estaria se referindo a pedir perdão aos irmãos que ofendemos. Ainda que uma ofensa seja pecado, nem todos os pecados são ofensas ao próximo. Tal reducionismo seria distorcer o significado real e completo do texto.

Quando a Escritura fala de confissão dos pecados, não se refere a pedir perdão a algum irmão por tê-lo ofendido. Compare-se este entendimento com Marcos 1,5: “Acudia a ele gente de toda a região da Judéia e de toda Jerusalém, e eram batizados por ele no rio Jordão, confessando seus pecados”. Deveríamos interpretar que toda a gente da Judéia e Jerusalém teriam ofendido João Batista? Se o aplicarmos a Atos 19,18, “Muitos dos que haviam crido vinham confessar e declarar suas práticas”, deveríamos interpretar que todos os novos convertidos teriam ofendido os Apóstolos? Note que o texto aqui é particularmente claro, porque fala de confessar e declarar “suas práticas”, não suas ofensas. Recordemos também que o primeiro ofendido por nossos pecados é Deus, pois todo pecado é primeiramente uma violação da justiça divina.

EVIDÊNCIA DA RECONCILIAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO

A realidade sacramental da Igreja é precedida na história por seu modelo profético: a Lei Mosaica. Nela vemos (Levítico, capítulos 4 e 5) que Deus exigia um sacrifício cerimonial pelos pecados ofendidos. O sacrifício se realizava no Tabernáculo (posteriormente no Templo) e diante dos sacerdotes, o que em si era uma admissão pública do pecado. O exercício destas cerimônias não apenas era público, como também ensinava ao povo a inevitável conseqüência do pecado: a morte. O animal que era sacrificado morria em lugar do pecador. O modo de execução desses sacrifícios era inevitavelmente um equivalente ao Sacramento da Reconciliação, em que tanto o sacerdote quanto o fiel tinham [e têm] uma participação claramente definida.

– “Se for alguém do povo quem pecou involuntariamente, cometendo uma ação proibida por um mandamento do Senhor, tornando-se assim culpado, trará para sua oferta uma cabra sem defeito, pela falta cometida, logo que tiver tomado consciência de seu pecado. Porá a mão sobre a cabeça da vítima oferecida pelo pecado e a imolará no lugar onde se imolam os holocaustos. Em seguida, o sacerdote, com o dedo, tomará o sangue da vítima, e pô-lo-á sobre os cornos do altar dos holocaustos, derramando o resto ao pé do altar. Tirará toda a gordura, como se fez no sacrifício pacífico, e a queimará no altar, como agradável odor ao Senhor. É assim que o sacerdote fará a expiação por esse homem, e ele será perdoado. Se for um cordeiro que oferecer em sacrifício pelo pecado, oferecerá uma fêmea sem defeito. Porá a mão sobre a cabeça da vítima oferecida pelo pecado e a imolará em sacrifício de expiação no lugar onde se imolam os holocaustos. Em seguida, com o dedo, tomará o sacerdote o sangue da vítima oferecida pelo pecado, e o porá sobre os cornos do altar dos holocaustos, derramando o resto do sangue ao pé do altar. Tirará toda a gordura como se tirou a do cordeiro do sacrifício pacífico, e a queimará no altar, entre os sacrifícios feitos pelo fogo ao Senhor. É assim que o sacerdote fará a expiação pelo pecado cometido por esse homem, e ele será perdoado” (Levítico 4,27-35).

EVIDÊNCIA HISTÓRICA

Existe uma grande variedade de distorções históricas acerca do Sacramento da Penitência entre as denominações protestantes. Algumas vêem a confissão auricular (componente importante do Sacramento) como uma invenção do segundo milênio. Um exemplo deste tipo de distorção encontramos no “Manual Prático para a Obra do Evangelismo Pessoal”, acima citado, que a este respeito afirma:

– “A confissão auricular aos sacerdotes foi oficialmente estabelecida na Igreja Romana no ano de 1215. Mais tarde, no Concílio de Trento, em 1557, foram pronunciadas maldições para aqueles que leram a Bíblia o suficiente para deixar de lado a confissão auricular”[13].

É importante esclarecer que as definições dogmáticas dos Concílios não podem ser interpretadas como se estivessem de alguma maneira introduzindo uma nova doutrina [na Igreja]. Estas são expedidas quando alguma verdade fundamental é questionada ou necessita ser definida claramente para o bem dos fiéis.

É importante esclarecer ainda que a confissão auricular, com o passar do tempo, se desenvolveu em sua forma exterior até atingir a forma como a conhecemos hoje. Mas veremos que sua essência encontra-se no fato reconhecido da reconciliação do pecador se dar por intermédio da autoridade da Igreja. E esse fato faz parte do legado da Igreja, existindo desde o momento em que Cristo outorgou referido poder aos Apóstolos. Comprovaremos que a disciplina penitencial, inclusive a confissão dos pecados diante do sacerdote e da Igreja, existe deste a Era Apostólica.

Examinemos a Didaqué (redigida entre 60 e 160 d.C.), considerada um dos mais antigos escritos cristãos não-canônicos e que pode anteceder boa parte dos escritos do Novo Testamento, já que estudos recentes apontaram que a data possível de sua composição é anterior ao ano 160 d.C. Trata-se de um excelente testemunho do pensamento da Igreja primitiva. Referido documento é insistente em exigir a confissão dos pecados antes do recebimento da Eucaristia:

– “Na reunião dos fiéis, confessarás os teus pecados e não te aproximarás da oração com má consciência”[14].

Na Didaqué temos, então, um antiquíssimo testemunho histórico que se opõe à posição protestante de confessar os pecados diretamente a Deus.

O TESTEMUNHO DE ORÍGENES (185-254 D.C.)

Orígenes foi Padre da Igreja, teólogo e comentarista bíblico. Viveu em Alexandria até o ano de 231 d.C., passando os últimos vinte anos de sua vida em Cesaréia Marítima, na Palestina, e viajando pelo Império Romano. Foi o maior mestre da doutrina cristã de sua época e exerceu uma extraordinária influência como intérprete da Bíblia.

Orígenes afirma que após o batismo há meios para se obter o perdão dos pecados cometidos, entre eles, enumera a penitência:

– “Além destas três, há ainda uma sétima [razão], embora dura e trabalhosa: a remissão dos pecados através da penitência, quando o pecador lava seu travesseiro com lágrimas, quando suas lágrimas são seu sustento dia e noite, quando não pára de declarar seu pecado ao sacerdote do Senhor, nem deixa de buscar o remédio, à maneira de quem diz: ‘Diante do Senhor acusarei a mim mesmo quanto as minhas iniqüidade e Tu perdoarás a deslealdade do meu coração'”[15].

Com efeito, Orígenes admite uma remissão dos pecados através da penitência e confissão diante de um sacerdote. Afirma também que é o sacerdote quem decide se os pecados devem [ou não] ser confessados em público:

– “Observa com cuidado a quem confessas os teus pecados; põe à prova o médico para saber se é enfermo com os enfermos e se chora com os que choram. Se ele crer necessário que teu mal seja conhecido e curado em presença da assembléia reunida, segue o conselho do médico especialista”[16].

Também reconhece que todos os pecados podem ser perdoados:

– “Os cristãos choram como [chorariam pelos] mortos aos que se entregaram à intemperança ou cometeram qualquer outro pecado, pois se perderam e morreram para Deus. Porém, se dão provas suficientes de uma sincera mudança de coração, são admitidos novamente no rebanho após transcorrer algum tempo – depois de transcorrer um intervalo maior que quando são admitidos pela primeira vez -, como se tivessem ressuscitado de entre os mortos”[17].

DECLARAÇÕES DE TERTULIANO [220 D.C]

Estritamente falando, Tertuliano não é considerado um Padre da Igreja, mas um apologeta e escritor eclesiástico, já que no final de sua vida caiu em heresia, abraçando o Montanismo. Contudo, foi muito lido antes de ter abandonado a Igreja Católica. Tanto em seu período ortodoxo quanto em seu período herético, encontramos em Tertuliano um testemunho ímpar sobre a prática primitiva da penitência na Igreja.

Tertuliano, quando escreve “De Paenitentia” (cerca do ano 203 d.C., ainda católico), fala de uma segunda penitência que Deus “colocou no vestíbulo para abrir a porta aos que batem, porém apenas uma única vez, já que esta é, na verdade, a segunda vez”[18].

Nos textos de Tertuliano se vê um entendimento cristalino de como o fiel que caiu no pecado após o batismo tem necessidade do Sacramento da Penitência e expressa o temor de que este seja mal compreendido pelos débeis, como um meio para continuar pecando e obter novamente o perdão:

– “Ó, Jesus Cristo, Senhor meu! Concede aos teus servidores a graça de conhecer e aprender da minha boca a disciplina da penitência, porém no tanto quanto lhes convém e nunca para pecar. Em outra palavras, que após [o batismo] não precisem conhecer a penitência, nem pedí-la. Me repugna mencionar aqui a segunda, ou melhor dizendo neste caso, a última penitência. Temo que, ao falar do remédio da penitência, que se guarda como reserva, pareça sugerir que existe todavia um tempo em que se possa pecar”[19].

Tertuliano fala de “pedir” a penitência, descartando a possibilidade de ser limitada a uma confissão direta com Deus. Isto é explicado detalhadamente por Tertuliano quando afirma que para alcançar o perdão o penitente deve se submeter à ????????????, isto é, à confissão pública, e adicionalmente cumprir os atos de mortificação (capítulos 9 a 12).

O testemunho de Tertuliano prova ainda que a penitência terminava tal como hoje em dia, com uma absolvição oficial, após o pecado ter sido confessado:

– “Evitam este dever como uma revelação pública de suas pessoas ou que o diferem de um dia para outro (…) Por acaso é melhor ser condenado em segredo do que perdoado em público?”

No capítulo 12, fala da eterna condenação que sofrem aqueles que não quiseram fazer uso desta segunda “planca salutis”.

Em seu período montanista, Tertuliano nega à Igreja o poder de perdoar os pecados graves (adultério e fornicação), afirmando que tal [espécie de] perdão só foi recebido por Pedro, mas que ele não o transmitiu à Igreja. As razões desta negativa não são, porém, as razões dos protestantes de hoje em dia, mas sim o caráter rigoroso da doutrina montanista, que afirmava que esses pecados [graves] eram imperdoáveis.

Assim retrata o escrito que ele mesmo escreveu, “De Pudicita” (=”Sobre a Modéstia”), quando foi impelido a enfrentar um bispo que faz referência ao “Pontifex Maximus” e “Episcopus Episcoporum” (muito provavelmente o Papa Calixto), em virtude de um edito em que escreveu: “Perdôo os pecados de adultério e fornicação àqueles que cumpriram penitência”, confirmando assim o poder da Igreja de perdoar os pecados, ainda quando se trate de adultério e fornicação. Este edito é outra evidência da posição oficial da Igreja, que tem consciência do poder recebido de Cristo para outorgar o perdão dos pecados.

Tertuliano deixa assim o seu testemunho hostil sobre a prática da Igreja pré-nicena:

– “E desejo conhecer teu pensamento, saber qual fonte te autoriza a usurpar este direito para a Igreja. Sim, porque o Senhor disse a Pedro: ‘Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; eu te dei as chaves do reino dos céus’, ou melhor, ‘tudo o que desligares sobre a terra, será desligado; tudo o que ligares, será ligado’. Tu logo presumes que o poder de ligar e desligar veio até ti, ou seja, a toda Igreja que está em comunhão com Pedro. Que audácia a tua, que pervertes e mudas inteiramente a intenção manifesta do Senhor, que conferiu este poder pessoalmente a Pedro!”[20].

REGISTRO DE SÃO CIPRIANO (258 D.C.)

São Cipriano nasceu por volta do ano 200, provavelmente em Cartago, de família rica e culta. Dedicou-se, durante a juventude, à retórica. O desgosto que sentia diante da imoralidade dos ambientes pagãos, contrastado com a pureza de costumes dos cristãos, o induziu a abraçar o Cristianismo por volta do ano 246 d.C. Pouco depois, em 248 d.C., foi eleito bispo de Cartago.

São Cipriano é um claro expositor da consciência da Igreja de ter recebido de Cristo o poder de perdoar os pecados. Combate assim a heresia de Novaciano, que negava que houvesse perdão para aqueles que durante a perseguição tinham renegado a fé (os “lapsi”). Assim, em “De Opere et Eleemosynis”, afirma que aqueles que pecaram após ter recebido o batismo podem novamente obter o perdão, qualquer que seja o pecado.

Também deixa um claro testemunho do dever de confessar o pecado enquanto houver tempo e enquanto esta confissão puder ser recebida pela Igreja:

– “Vos exorto, irmãos caríssimos, que cada um de vós confesse o seu pecado, enquanto o pecador viver ainda neste mundo, ou seja, enquanto sua confissão puder ser aceita, enquanto a satisfação e o perdão outorgado pelos sacerdores puderem ser agradáveis a Deus”[21].

ENSINO DE SANTO HIPÓLITO MÁRTIR (~235 D.C.)

O lugar e a data de seu nascimento nos são desconhecidos, ainda que se saiba que foi discípulo de Santo Ireneu de Lião. Seu grande conhecimento da filosofia e mistérios gregos, sua própria psicologia, indica que procedia do Oriente. Até o ano 212 d.C. era presbítero em Roma, onde Orígenes, durante sua viagem à capital do Império, o ouviu pronunciando um sermão.

Em relação ao problema da readmissão na Igreja daqueles que haviam apostatado durante a perseguição, instalou um grave conflito ao se opor ao Papa Calixto, já que Hipólito era rigorista neste assunto, embora não negasse o poder da Igreja para perdoar os pecados. Tão forte foi a discussão que Hipólito se separou da Igreja e foi eleito bispo de Roma por um pequeno número de partidários, convertendo-se assim no primeiro antipapa da História. O cisma se prolongou após a morte de Calixto, atravessou os pontificados de seus sucessores Urbano e Ponciano e só foi terminar no ano 235 d.C., durante a perseguição de Maximiano, quando este desterrou para as minas da Sardenha tanto o Papa legítimo (Ponciano) quanto o ilegítimo (Hipólito). Ali os dois renunciaram ao pontificado, para facilitar a pacificação da comunidade romana, que deste modo pôde eleger um novo Papa, pondo fim ao cisma. Tanto Ponciano quanto Hipólito morreram no ano 235 d.C.

Hipólito oferece um excelente testemunho de como a Igreja estava consciente da sua própria autoridade para perdoar os pecados, pois mesmo sendo intransigente, não negou a faculdade da Igreja em absolver [os pecados]. Evidência disto encontramos em sua “Tradição Apostólica” (?????????? ?????????), onde nos apresenta um testemunho indiscutível no momento em que reproduz a oração para a consagração de um bispo:

– “Pai, que conheces os corações: concede a este teu servo que elegeste para o episcopado (…) que, em razão do Espírito do sacerdócio soberano, tenha o poder de perdoar os pecados (facultatem remittendi peccata), segundo o teu mandamento; que distribua as partes conforme o teu preceito e que desamarre todo nó da iniqüidade (solvendi omne vinculum iniquitatis), segundo a autoridade que deste aos Apóstolos”.

Este testemunho é particularmente importante porque a “Tradição Apostólica” é fonte de um grande número de constituições eclesiásticas orientais, confirmando que tal consciência estava estendida pela Igreja.

AS CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS (SÉC. IV D.C.)

Da mesma forma que na “Tradição Apostólica” de Santo Hipólito, as “Constituições Apostólicas” redigidas na Síria durante o século IV incluem uma oração similar para a ordenação dos bispos:

– “Outorga-lhe, Senhor Todo-Poderoso, através de Cristo, a participação em Teu Santo Espírito, para que possua o poder de perdoar os pecados, conforme o Teu preceito e Tua ordem, para desamarrar todo nó, qualquer que seja, de acordo com o poder que outorgaste aos Apóstolos”[22].

SÃO BASÍLIO MAGNO (330-379 D.C.)

Bispo da Cesaréia e preeminente clérigo do século IV, é também Santo da Igreja Ortodoxa e enumerado entre os Padres da Igreja.

Qüasten comenta que, embora K.Holl opine que foi São Basílio o responsável pela introdução da confissão auricular no sentido católico, como confissão regular e obrigatória para todos os pecados, inclusive os mais secretos[23], “seu erro, todavia, está em identificar a confissão sacramental com a ‘confissão monástica’, que era apenas um meio de disciplina e de direção espiritual, não implicando em reconciliação nem absolvição sacramental. Em sua Regra[24], São Basílio ordena que o monge tem que descobrir seu coração e confessar todas as suas ofensas, inclusive seus pensamentos mais íntimos, ao seu Superior ou a outros homens probos ‘que gozem da confiança dos irmãos’. Neste caso, o posto do Superior pode ser ocupado por alguém que tenha sido eleito como seu representante. Não existe a menor indicação de que o Superior ou seu substituto tenham que ser sacerdotes; pode-se dizer, portanto, que Basílio inaugurou o que se conhece sob o nome de ‘confissão monástica’, mas não a confissão auricular, que constitui uma parte essencial do Sacramento da Penitência”.

Comenta ainda Qüasten: “Entretanto, de suas cartas canônicas se deduz que continuava em vigor a disciplina que havia existido nas igrejas da Capadócia desde os tempos de Gregório Taumaturgo. A expiação consistia na separação do penitente da assembléia cristã (cap. VII). Na epístola canônica, menciona quatro graus: o estado “dos que choram”, cujo lugar ficava fora da igreja (????????????); o estado “dos que escutam”, que estavam presentes para a leitura da Sagrada Escritura e para o sermão (????????); o estado “dos que se prostram”, que assistiam a oração ajoelhados (????????); e, por último, o estado “dos que estão de pé” durante todo o ofício, porém não podem participar da comunhão (????????)”.

SANTO AMBRÓSIO DE MILÃO (340-396 D.C.).

É um dos quatro grandes doutores da Igreja latina. Nasceu por volta do ano 340 d.C., em Tréveris, porém foi criado em Roma. Foi eleito bispo de Milão no ano 374 d.C. No ano 387 d.C., batizou Santo Agostinho de Hipona. Tornou-se popular pela firmeza manifestada diante do imperador Teodósio, em 390 d.C., proibindo-o de entrar em suas igrejas, após promover o morticínio de Tessalônica, enquanto não fizesse penitência pública. Faleceu em Milão em 396 d.C.

Entre os anos 384 e 394 d.C., compôs o “De Paenitentia”, um tratado não-homilético em dois volumes, no qual Ambrósio refuta as afirmações dos novacianos acerca do poder da Igreja em perdoar os pecados, proporcionando informações de particular interesse para se conhecer a prática penitencial da Igreja de Milão no século IV:

– “[Os novacianos] professam demonstrar reverência ao Senhor reservando somente a Ele o poder de perdoar os pecados. Maior erro não podem cometer ao buscar rescindir Suas ordens, desfazendo o ofício que Ele conferiu. A Igreja [católica] O obedece em ambos os aspectos, ao ligar e ao desligar o pecado, porque o Senhor quis que ambos os poderes fossem iguais”[25].

Ensina que este poder é uma função do sacerdócio e que este pode sim perdoar todos os pecados:

– “Pareceria impossível que os pecados devessem ser perdoados através da penitência; Cristo outorgou este [poder] aos Apóstolos e dos Apóstolos foi transmitido para o ofício dos sacerdotes”[26].

– “O poder de perdoar se estende a todos os pecados: Deus não faz distinção, pois Ele prometeu misericórdia para todos e aos Seus sacerdotes outorgou a autoridade para perdoar sem qualquer exceção”[27].

O RETORNO DO PRÓDIGO: SANTO AGOSTINHO DE HIPONA (354-430 D.C)

Considerado um dos maiores Padres da Igreja em virtude de sua notável e perdurável influência no pensamento da Igreja. Nascido no ano 354 d.C., chegou a ser não apenas bispo de Hipona, mas um dos maiores teólogos que o mundo já conheceu e um dos primeiros doutores da Igreja. Interveio nas controvérsias que os cristãos mantiveram contra os maniqueus, donatistas, pelagianos, arianos e pagãos. Morreu em 430 d.C., deixando uma grande quantidade de obras, parte de um legado que perdura até hoje.

Contra aqueles que negam que a Igreja recebeu o poder de perdoar os pecados, escreve:

– “Não escutemos aqueles que negam que a Igreja de Deus possui o poder para perdoar todos os pecados”[28].

CONCLUSÃO

Para finalizar, citaremos brevemente outros testemunhos claros. São Paciano, bispo de Barcelona (+390 d.C.) escreveu acerca do perdão dos pecados:

– “Isto que tu dizes, somente Deus pode fazê-lo. Bastante correto; porém, quando o faz através de Seus sacerdotes, o faz por Seu próprio poder”[29].

E Santo Atanásio (295-373 d.C.) escreveu:

– “Assim como o homem batizado pelo sacerdote é iluminado pela graça do Espírito Santo, assim também aquele que em penitência confessa os seus pecados recebe o perdão, através do sacerdote, em virtude da graça de Cristo”[30].

Estas evidências demonstram que a Igreja sempre teve plena consciência de ter recebido de Cristo a faculdade de perdoar os pecados e considerou este dom como parte do Depósito da Fé. Surpreendentemente, tanto os padres do Oriente quanto os do Ocidente interpretaram as palavras de Cristo tal como fazem os católicos mais de vinte séculos depois. É evidente, portanto, que o Concílio de Trento apenas fez eco daquilo que já era ensinado pela Igreja contra os hereges dos primeiros séculos, os quais, em sua grande maioria, nem sequer defendiam a posição protestante atual, já que não rejeitavam que a Igreja tivesse recebido tal faculdade.

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NOTAS:

[1] Enciclopedia Católica. * [2] Enciclopedia Católica. * [3] João 20,21-23. * [4] Mateus 16,19. * [5] Mateus 18,18. * [6] Manual Prático para a Obra do Evangelismo Pessoal. Igreja de Deus (Israelita). * [7] A Confissão Auricular, Daniel Sapia, www.conocereislaverdad.org. * [8] Mateus 9,6. * [9] Mateus 9,8. * [10] Mateus 3,6. * [11] Atos 19,18. * [12] Tiago 5,16. * [13] Manual Prático para a Obra do Evangelismo Pessoal. Igreja de Deus (Israelita). * [14] Didaqué 4,14. Padres Apostólicos, Daniel Ruiz Bueno, BAC 65, pág. 82.. * [15] “… dura et laboriosa per poenitentiam remissio peccatorum, cum lavat peccator in lacrymis stratum suum et fiunt ei lacrymae suae panes die ac nocte, et cum non erubescit sacerdoti domini indicare peccatum suum et quaerere medicinam”. Citado em inglés por “The Faith of the Early Fathers”, Vol. 1, pág. 207. William A. Jurgens. Publ. Liturgical Press, 1970. Collegeville, Minnesota. Homilias sobre os Salmos 2,4. * [16] Homilias Sobre los Salmos 37,2.5. * [17] Contra Celsum 3,50, EH 253. * [18] De Paenitentia 7. * [19] De Paenitentia 7. * [20] De Pudicitia 21. * [21] De Lapsi 28; Epistolae 16,2. * [22] Constitutione Apostolica 8,5, p.i,1.1073. * [23] Enthusiasmus p.257; 2ª ed., 267. * [24] Regulae fusius tractae 25, 26 e 46. * [25] De poenitentia 1,2,6. * [26] Op.cit., 2,2,12. * [27] Op.cit., 1,3,10. * [28] De agonia Christi 3. * [29] Epistola I ad Simpron 6, en P.L. XIII,1057. * [30] Fragmentum contra Novatum pág. XXVI,1315.

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