Conversando com meus amigos evangélicos sobre o Cânon Bíblico (Parte 2)

Continuando com a série de conversas entre amigos sobre temas de Apologética, compartilho um novo diálogo fictício que dá continuidade à conversação anterior, onde eram analisadas as diferenças da Bíblia usada pelos católicos com aquela utilizada pelos nossos irmãos cristãos de outras denominações. Como foi mencionado, faltam 7 livros na Bíblia protestante, aos quais chamamos “deuterocanônicos”, a saber: Tobias, Judite, 1Macabeus, 2Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico (também chamado “Sirac”) e Baruc. Como de costume, os argumentos foram extraídos de conversações que tive sobre este tema ao longo dos anos. Os nomes dos participantes não são reais.

Miguel – Oi, José! Gostaria de continuar aquela nossa conversa sobre o cânon, já que faltaram alguns pontos por apreciar e eu queria ter a sua opinião.

José – Continue!

Miguel – Uma outra razão que pude averiguar sobre o fato de a Igreja Evangélica rejeitar os livros que você chama de “deuterocanônicos” e por isso não são incluídos em suas Bíblias é que estes livros não afirmam ser inspirados por Deus. Não se encontram neles frases como “Assim diz Jeová”, “A palavra de Jeová veio a mim”, “Jeová falou com…”; pelo contrário, confessam suam inspiração humana, tal como aparece no 2º Livro dos Macabeus: “Eu também termino aqui o meu relato. Se foi belo e sua composição alcançou o objetivo, era isso o que eu pretendia; se foi imperfeito e medíocre, fiz o que me foi possível” (2Macabeus 15,37-38). Como um livro que reconhece a possibilidade de ser imperfeito e medíocre poderia ser Palavra Divina?

José – Você não deve perder de vista que ainda que o Autor principal da Bíblia seja Deus, o autor secundário é o homem; e este, ainda que escreva sob inspiração divina, nem sempre nem necessariamente está consciente de que o faz. Há muitos exemplos onde isto se observa em outros livros que são aceitos pelas igrejas evangélicas. Temos o caso do Evangelho de Lucas, que reconhece que não escreve sob a ordem de Deus, mas para transmitir a Teófilo os eventos ocorridos nos tempos de Jesus. O que ele escreve tampouco o assume como Palavra de Deus, mas como mero fruto da sua pesquisa ao consultar as testemunhas oculares daqueles acontecimentos: “Visto que muitos tentaram narrar ordenamente as coisas que se verificaram entre nós, tal como nos foram transmitidas desde o princípio por aqueles que foram testemunhas oculares e servidores da Palavra, decidi eu também, após ter investigado cuidadosamente tudo desde as origens, escrevê-lo a seu pedido, ilustre Teófilo, para que conheças a solidez dos ensinamentos que recebeste” (Lucas 1,1-4).. Outro exemplo encontramos no livro do Eclesiastes, que prontamente reconhece ser palavra de um homem, um dos filhos de Davi: “Palavras de Cohélet, filho de Davi, rei de Jerusalém” (Eclesiastes 1,1); e, mais adiante, reconhece desconhecer coisas que Deus [certamente] sabe: “Quem sabe se o alento de vida dos homens sobe para o alto e se o alento de vida da fera desce para baixo da terra? Vejo que não há para o homem nada melhor que regozijar-se em suas obras, pois este é o seu salário. Porém, quem o guiará para contemplar o que há de acontecer depois disso?” (Eclesiastes 3,21-22). Eu convido você a fazer um exercício: revisa cada livro da Bíblia e conta quantos não dizem ser Palavra de Deus. Você irá se surpreender! Por outro lado, o fato de um livro afirmar ser Palavra de Deus não significa que o seja: o Corão e o livro de Mórmon afirmam ser Palavra de Deus e vocês não os aceitam como tal.

Miguel – É verdade. Nós não os aceitamos.

José – Então, se você aceitam como parte integrante das suas Bíblia livros que não afirmam ser Palavra de Deus, e não aceitam necessariamente qualquer livro que afirme sê-lo, não é coerente rejeitar os deuterocanônicos por essa razão. Nós, ao contrário, pensamos diferente: não aceitamos a Bíblia como divinamente inspirada porque ela mesma o diz, mas o fazemos porque cremos que Cristo – que é verdadeiramente Deus e homem – fundou uma Igreja e esta Igreja dá testemunho de que estes livros foram inspirados por Deus.

Miguel – Mas se a Igreja se corrompe, qual garantia tem de que tal discernimento que [os católicos] fazem é correto?

José – O que ocorre é que para nós é dogma de fé que a Igreja é indefectível – um assunto que poderemos conversar depois – o que quer dizer que, mesmo sendo formada por seres humanos débeis e pecadores, será sempre “a Igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade” [1Timóteo 3,15]; e isto inclui a sua impossibilidade de errar na consecução do fim sobrenatural para o qual foi fundada pelo Senhor Jesus: para fazer presente perenemente a obra da salvação. Por outro lado, há aqui precisamente uma contradição no núcleo do Protestantismo, já que a maioria crê que a Igreja se corrompeu pela raiz desde o Edito de Milão de 313 d.C.; se isto realmente ocorreu, tanto vocês quanto nós temos um cânon do Novo Testamento definido por uma Igreja corrompida[1], já que a definição do cânon se deu posteriormente [a 313].

Miguel – Posso aceitar que na Bíblia haja livros que não afirmem ser Palavra de Deus; mas isso é uma coisa, outra coisa é aceitar livros que ensinam erros, inclusive contradizendo os demais. No Eclesiástico se afirma que Deus aborrece os malvados e, além disso, pede para ajudar aos bons e não aos maus: “O Altíssimo odeia os pecadores e dos ímpios tomará vingança. Dê ao homem de bem e não cuida do pecador” (Eclesiástico 12,6-7). Você mesmo não disse certa vez que Deus odeia o pecado mas ama o pecador? No Novo Testamento também encontramos que Deus nos manda ajudar aquele que nos pede (cf. Mateus 5.42).

José – Sendo o homem o autor secundário da Bíblia, muitas vezes resta nela rastros da sua parte humana, que devem ser interpretados no seu contexto, do mesmo modo que há outros textos que devem ser entendidos em sentido espiritual. Cristo veio precisamente para esclarecer e dar plenitude à Revelação. Nesses textos vemos como o cristão deve rejeitar aos inimigos da sua alma – não as pessoas – porque “nossa luta não é contra a carne e o sangue, mas contra os Principados, contra as Potestades, contra os Dominadores deste mundo tenebroso, contra os Espíritos do Mal que estão nas alturas” (Efésios 6,12). Se não entendermos isto assim, teremos que excluir não apenas esse texto que você me aponta, como também outros que estão na Bíblia protestante: “Derrama sobre eles (=os meus inimigos) a Tua ira e o furor da Tua raiva os alcance. Seja o palácio deles destruído; que não haja morador em suas tendas; porque perseguiram aquele que Tu feriste e espalham sobre a dor daqueles a quem enviaste chagas. Coloca maldade sobre a maldade deles; e que não ingressem na Tua justiça” (Salmo 69,22-28). E como este, há muitos outros textos similares.

Miguel – Mas em alguns deuterocanônicos se aprova a mentira ou o suicídio, coisas estas que [nós dois] concordamos que são pecado. Por acaso devemos interpretar isso também em sentido espiritual? Observe que Judite, por exemplo, pede para Deus palavras para enganar: “Dai-me palavras para que eu possa enganá-los e causar-lhes desastre e morte, pois têm planos perversos contra a Tua Aliança, contra o Templo consagrado a Ti, contra o monte Sião e contra a cidade que é lar e propriedade dos Teus filhos” (Judite 9,13). E o 2º Livro dos Macabeus justifica o suicídio: “As tropas já estavam a ponto de conquistar a torre onde se encontrava Razias; e tentavam forçar a porta externa, tendo recebido ordens de manter o fogo e queimar as portas. Então Razias, pressionado por todos os lados, voltou a sua espada contra si mesmo, preferindo morrer nobremente a cair nas mãos daqueles criminosos e sofrer injúrias indignamente” (2Macabeus 14,41-42).

José – Analisar em detalhes a moralidade dos atos que você menciona poderia nos desviar bastante do tema. No caso de Judite, ela orava para poder salvar o povo de uma iminente aniquilação – e conseguiu! Não é muito diferente do que fez a prostituta Rajab, mentindo para o rei visando salvar os espiões judeus que exploravam a terra prometida (cf. Josué 2,1-6), acerca de quem o Apóstolo São Tiago louvava e afirma ter sido justificada por suas obras (cf. Tiago 2,25). O livro do Êxodo louva as parteiras egípcias que mentiram para o faraó visando salvar os recém-nascidos judeus (cf. Êxodo 1,15-21). Já o suicídio de Razias ocorre quando ele ia ser capturado, torturado e assassinado. Não é uma situação diferente da de Sansão que, aprisionado, pede ajuda a Deus para que Este lhe dê forças e possa derrubar as colunas do local onde se encontra, causando morte a si mesmo juntamente com os filisteus que se achavam naquele edifício; e o que chama mais a atenção é que Deus efetivamente o auxilia e o ajuda a alcançar seu objetivo: “Sansão invocou Yahveh e exclamou: ‘Senhor Yahveh: digna lembrar-Te de mim; torna-me forte por esta última vez, ó Deus, para que de uma só vez eu me vingue dos filisteus pelos meus dois olhos [vazados]’. E Sansão empurrou as duas colunas centrais sobre as quais se sustentava a casa; apoiou-se contra elas – em uma, com seu braço direito; e na outra, com o esquerdo – e gritou: ‘Morra eu com os filisteus’. Empurrou com todas as suas forças e a casa caiu sobre os tiranos e sobre toda aquela gente ali reunida” (Juízes 16,28-30). É claro que podemos discutir se esses atos foram objetivamente bons ou maus, mas o fato é que se eles são base para rejeitar alguns livros, devem servir também para rejeitar outros que são aceitos.

Miguel – Sim, isso é para pensar. Bom, investiguei também sobre uma outra objeção que me parece importante. O livro de Tobias, um dos livros que você chama ‘deuterocanônicos’, apoia práticas de bruxaria: “Quando acabaram de ceiar, decidiram deitar-se. Levaram o rapaz ao cômodo. Tobias então se lembrou do que Rafael lhe havia dito. Tirou da sua bolsa o fígado e o coração do peixe, e os colocou sobre as brasas em que se queimava incenso. O odor do peixe não deixou o demônio se aproximar; este fugiu pelo ar, retirando-se para o lugar mais distante do Egito. Rafael foi, o encerrou ali, e retornou imediatamente” (Tobias 8,1-3). Como poderia o odor de peixe queimado afugentar um demônio? Não parece mais uma prática pagã?

José – Vale muito a pena ler o livro inteiro [de Tobias], que não é muito longo e se destaca pela sua beleza. Se você o ler, verá que muito mais do que assumir que o demônio foi afugentado pelo odor do peixe, aponta-se aí a obediência específica a uma das instruções do Anjo: de fato, a primeira coisa que Tobias fez quando entrou no leito conjugal foi pôr em prática o que lhe fôra aconselhado. Duvido que o odor do peixe deva ser interpretado em sentido literal, como se o demônio fugisse do mau cheiro, mas em sentido simbólico e espiritual: o bem vence o mal. Com esta vitória do Anjo Rafael sobre [o demônio] Asmodeu cumpre-se uma parte principal do plano de Deus acerca de Sara: sua cura, encomendada por Deus ao Anjo. A lição, mais do que promover práticas de bruxaria, ensina que para quem ama a Deus a obediência ao Senhor e a oração em família espantam todos os males (Tobias 6,18; 8,5). Tudo isto unifica o relato onde a figura de um peixe é o instrumento que Deus escolhe para curar e libertar. Deus, quando e como bem Lhe parece, faz com que as coisas mais mínimas sirvam de instrumentos de Seus milagres; assim como o Senhor Jesus Cristo com um pouco de barro misturado com saliva curou um cego de nascença (cf. João 9,6), a água do Batismo (cf. 1Pedro 3,21) é o elemento visível que Deus escolheu para nos regenerar através do Espírito Santo; Deus também agia através dos lenços e panos de Paulo para realizar milagres (cf. Atos 19,12); e, para curar Naamã, o sírio, foi-lhe exigido que se banhasse nas águas do Jordão (2Reis 5,9). Logo, Deus pode usar um peixe ou qualquer outro elemento visível.

Miguel – Muito interessante o que você me diz. Preciso refletir.

José – O importante é ter claro que não é cada pessoa, individualmente, quem decide qual livro faz parte da Bíblia, conforme os seus conceitos pessoais[2]. Se fosse assim, com as diferentes interpretações que há da Bíblia, cada um teria uma Bíblia distinta, acomodada aos seus caprichos e interpretações pessoais. O próprio Lutero reconhecia que havia recebido as Escrituras da Igreja Católica, mas acabou rejeitando livros que todos os Concílios realizados pelos únicos cristãos que existiam antes dele aprovaram, como se a sua opinião pessoal valesse mais que a destes. Para mim sempre me pareceu curioso a Bíblia protestante ter 66 livros e a nossa 73…

Miguel – Curioso por quê?

José – Não leve muito a sério porque pode ser uma mera causalidade, mas os números costumam a ter um significado simbólico na Bíblia: o número 7, por exemplo, simboliza perfeição; o número 6, ao contrário, representa a imperfeição (por isso, o número da besta é 666).

Miguel – Certo… Mas não entendi aonde você quer chegar…

José – Já que a Bíblia protestante tem 66 livros, “seis-seis”, lembre-se do que acabamos de dizer: o número 6 é o número da imperfeição; se somarmos os 7 deuterocanônicos (sete = número da perfeição), somam 73: o total de livros da Bíblia católica. Assim, enquanto não tiver [os deuterocanônicos] será uma Bíblia incompleta e imperfeita; uma Bíblia de “seis-seis” livros.

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NOTAS:
[1] Martinho Lutero, em seu Comentário sobre o Evangelho de João, reconheceu: “Somos obrigados a admitir aos papistas que eles têm a Palavra de Deus; que nós a recebemos deles e que, sem eles, não teríamos nenhum conhecimento acerca dela”.
[2] É comum no Protestantismo alegar outras razões semelhantes para rejeitar os deuterocanônicos porque chocam-se frontalmente com a sua teologia. Por exemplo: rejeitam Tobias por ensinar que é possível obter o perdão dos pecados através da esmola: “Dar esmola salva da morte e purifica de todos os pecados. Os que dão esmola gozarão de longa vida” (Tobias 12,9), muito embora a 1ª Carta de Pedro diga essencialmente o mesmo: “E sobretudo, tende entre vós fervorosa caridade, porque a caridade cobrirá uma multidão de pecados” (1Pedro 4,8). A rejeição dos livros dos Macabeus (apreciados na conversa anterior) se dá por seu apoio implícito à doutrina do Purgatório.

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