Creio na ressurreição da carne

Uma das piores e mais aleivosas calúnias já dirigidas contra o cristianismo é a de que ele condena o corpo. Nada mais distante da pura doutrina cristã, tal como ensinada e testemunhada pela santa Igreja católica, do que este absurdo. Dentro da perspectiva cristã, condenar o corpo é anátema, pois o corpo é criação de Deus Nosso Senhor, o Bem em plenitude, de quem nenhum mal pode provir. Efetivamente, diz a Escritura: “E Deus viu todas as coisas que tinha feito, e eram muito boas (Genesis 1,31).

 

O que o cristianismo e a Igreja sempre condenaram, e nunca poderão deixar de condenar, são os abusos do próprio corpo, a intemperança, a falta de autodomínio, a desordem sexual. Como muita gente vê o corpo unicamente como um instrumento para fazer o que não deve, então logo imagina que a Igreja condena o corpo. Mas o problema, então, não está na Igreja, mas na baixa concepção de vida que essas pessoas têm.

 

Condenar o corpo é próprio da heresia gnóstica, que apareceu já nos primeiros séculos do cristianismo. O gnosticismo é uma tentativa do homem de explicar a presença do mal no mundo sem aceitar aquilo que Deus revela. Para o gnosticismo, o mal tem realidade substancial (aquela tal “energia negativa”), é uma coisa. As coisas materiais, por exemplo, são para o gnóstico intrinsecamente más. Dentro dessa concepção, o gnosticismo atribui poderes criadores ao diabo, que seria o “criador” do mundo mau em que nos encontramos aprisionados. Por isso, enquanto o cristianismo é otimista (quem vive em um mundo criado por um Deus bom sempre tem razões para ser otimista), o gnosticismo é pessimista.

 

Além de tudo, o gnosticismo é dualista, ou seja, ele produz uma separação artificial entre alma e corpo. Nada que o corpo faça pode atingir a alma, e nada que a alma faça pode atingir o corpo. Por isso, os gnósticos não vêem nenhuma contradição entre chafurdar no pecado e, ao mesmo tempo, procurar “evolução espiritual”. Aliás, eles acham que, como o corpo é mau mesmo, não adianta tentar purificá-lo, e assim entregam-se a todos os excessos.

 

A genuína concepção cristã é radicalmente diversa. Os cristãos sabem que o mal não têm realidade substancial. O mal não é uma presença, mas uma ausência, uma falta, uma carência. A cegueira, por exemplo, é um mal; ninguém gostaria de ficar cego, e ficamos penalizados quando vemos alguém nesta situação. Mas a cegueira não é algo acrescentado ao homem; é uma carência: a falta da visão. O mal é a falta de algo que deveria haver e não há. O mesmo se pode dizer do mal ético ou moral: é a falta de retidão na vontade do homem.

 

O mal não tem realidade substancial, ele não é uma coisa. O mal não é um efeito, ele é um defeito. Por isso, o mal é um parasita do bem. O mal está para o bem como uma janela está para uma parede: só pode haver janela se houver parede. Se eu vou aumentando a janela até acabar a parede, não acabo sòmente com a parede, mas também com a própria janela. O “mal absoluto” não existe; só pode existir o Bem absoluto, que é Deus.

 

Para o cristianismo, o mal ético não está nas coisas. As coisas foram criadas por Deus e tudo o que Deus criou é bom (cf. Gen 1,31). O mal ético está nos atos humanos. Jesus deixou isso claro quando disse: “Ouvi e entendei. Não é aquilo que entra pela boca, que mancha o homem, mas aquilo que sai da boca, isto é que torna imundo o homem. Não compreendeis que tudo o que entra pela boca passa ao ventre, e se lança depois num lugar escuso? Mas, as coisas que saem da boca, vêm do coração, e estas mancham o homem; porque do coração saem os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as fornicações, os furtos, os falsos testemunhos, as palavras injuriosas. Estas são as que mancham o homem” (Mateus 15,10-11.17-20). Portanto, o mal não está no corpo, mas no abuso do corpo.

 

Para o cristianismo, o corpo não é algo condenado, mas “o templo do Espírito Santo” (1Cor 6,19). E o mesmo Espírito Santo que santifica a alma, há de ressuscitar o nosso corpo no último dia.

 

Efetivamente, cremos firmemente que, da mesma forma que Jesus Cristo verdadeiramente ressuscitou dos mortos, e vive para sempre glorioso, assim também Deus nos ressuscitará no último dia, retomando cada alma o corpo que teve nesta vida. Pode parecer difícil de acreditar, mas não para quem sabe que “a Deus nada é impossível” (Lucas 1,37). Essa promessa de Deus, de que nos há de ressuscitar, é muito consoladora porque, se pudéssemos sentir a falta de algo no Céu (digo “se pudéssemos” porque no Céu não sentiremos falta de absolutamente nada, pois a glória de Deus nos sacia muitissimo além do que podemos conceber), então, se pudéssemos sentir a falta de algo no Céu, sentiríamos a falta do nosso corpo. Isso porque a ligação de nossa alma com o corpo não é extrínseca. Corpo e alma formam um todo substancial. Como ensinou o filósofo grego Aristóteles, “a alma é a forma substancial do corpo”. Aí vemos quão errados estão os espiritas, que imaginam que a alma troca de corpos, como o corpo troca de cuecas. Formando alma e corpo um todo substancial, fica facil entendermos que cada corpo existe para determinada alma, e cada alma para determinado corpo. O que é o corpo senão um instrumento da alma (o “irmão jumento” de que falava São Francisco de Assis)? Ora, sendo o corpo o instrumento da alma, deve ser esse um instrumento a ela adequado. 

 

Para que não duvidássemos que no fim do mundo hão de ressuscitar todos os mortos, Deus Nosso Senhor dispôs que alguns mortos ressuscitassem, no decorrer da história da Salvação. Já no tempo do Antigo Testamento, vemos que os santos profetas Elias e Eliseu ressuscitaram mortos (ver 1Reis 17,17-24; 2Reis 4,32-37; 13,21). Na Nova Aliança, além dos ressuscitados por Cristo Nosso Senhor (ver Mateus 9,25; Lucas 7,13-15; João 11,43-44), houve outras ressurreições operadas pelos Apóstolos (Atos 9,40; 20,10) e por muitos homens de Deus no decorrer da história da Igreja (São Francisco Xavier, que viveu no século XVI, ressuscitou pelo menos quatro mortos, conforme comprovado em seu processo de canonização). 

 

Aliás, que os mortos todos hão de ressuscitar um dia, é uma verdade de Fé inculcada desde o Antigo Testamento:

 

“Porque eu sei que meu Redentor está vivo,

Que no último dia ressurgirei da terra,

Serei novamente revestido da minha pele,

E na minha própria carne verei meu Deus” (Jó 19,25-26).

 

“Os teus mortos viverão,

os meus a quem tiraram a vida ressuscitarão;

despertai e cantai louvores,

vós os que habitais no pó,

porque o teu orvalho será um orvalho de luz,

e tu reduzirás à última ruína a terra dos gigantes” (Isaías 26,19).

 

“A multidão dos que dormem no pó da terra, acordarão uns para a vida eterna e outros para o opróbrio, que terão sempre diante dos olhos” (Daniel 12,2).

 

Contudo, mesmo que anunciada no Antido Testamento, a Ressurreição dos mortos está essencial e intrinsecamente ligada ao mistério de Cristo. Realmente, a Ressurreição dos mortos é fruto da insigne vitória de Cristo sobre a morte: “Ó morte, eu hei de ser a tua morte” (Oseias 13,14). O Senhor “aniquilará a morte para sempre; o Senhor Deus enxugará as lagrimas de todas as faces e tirará de cima da terra o opróbrio do seu povo” (Isaías 25,8).

 

Todos hão de ressuscitar, sem distinção entre bons e maus. À Ressurreição se seguirá o Juízo Final. Com efeito, embora bons e maus hão de ressuscitar, uns e outros terão destinos diferentes. Como disse Jesus: “Virá tempo em que todos os que se encontram nos sepulcros ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que tiverem feito boas obras, sairão para a ressurreição da vida; mas os que tiverem feito obras más, sairão ressuscitados para a condenação” (João 5,28-29).

 

Há de ressurgir o mesmo corpo que o homem teve como próprio. Embora já desfeito e reduzido a pó, será chamado à nova vida. Como disse o Apostolo, “importa que este corpo corruptível se revista da imortalidade” (1Cor 15,53).

 

A imortalidade, depois da ressurreição geral, também será comum aos bons e aos maus. Todavia, se a imortalidade para os bons será um prêmio, para os maus será um castigo, pois significará a perpetuidade dos seus sofrimentos em sua própria carne. De fato, diz a Escritura: “buscarão a morte e não a encontrarão; desejarão morrer e a morte fugirá deles” (Apocalipse 9,6).

 

O corpo não ressurgirá simplesmente, mas ser-lhe-á restituído tudo o que pertencer à integridade e perfeição de sua natureza. Os cegos de nascença, os que perderam a vista por algum acidente ou enfermidade, os aleijados, coxos e manetas ressurgirão com o corpo íntegro e perfeito. Não precisarão mais alimentar-se, pois serão imortais: “não terão mais fome nem sede, nem cairá sobre eles o sol, nem calor algum” (Apoc 7,16). Na Ressurreição também não haverá mais sexo, pois não haverá mais a necessidade da reprodução humana. De fato, disse o Senhor Jesus: “Na Ressurreição, nem os homens terão mulheres, nem as mulheres maridos, mas serão como os anjos de Deus no Céu” (Mt 22,30).

 

Os bons ressuscitarão como foram criados originariamente pelo Verbo de Deus: ágeis, impassíveis e incorruptíveis. Os corpos ressuscitados dos justos não mais sentirão qualquer dor, sofrimento ou incômodo.Deus enxugar-lhes-á todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem clamor, nem mais dor, porque tudo isto passou” (Apocalipse 21,4). Todos os seus anseios estarão completamente satisfeitos e isso compensará infinitamente todos os sofrimentos e aflições por que passaram nesta vida. Estarão libertos de todos os desejos, necessidades e limitações do corpo. A lembrança desta promessa de Cristo nos serve de poderoso consolo e fonte de coragem em nossas tribulações, tristezas e calamidades.

 

Quando dizemos que os corpos ressuscitados dos justos serão ágeis, queremos significar que eles estarão libertos da gravidade, que nos oprime em nosso estado atual. Poderão os corpos mover-se para qualquer lugar do universo que a alma queira, sem fadiga e com uma impressionante velocidade e leveza.

 

Outro dote que adornará depois da Ressurreição os corpos dos que agradaram a Deus nesta vida, será o da claridade. Os corpos ressuscitados dos bons serão resplandecentes, como prometeu Nosso Senhor no Evangelho: “Resplandecerão os justos como o sol no Reino de seu Pai” (Mateus 13,43). Para que ninguém duvidasse desta promessa, Nosso Senhor deu o exemplo de sua propria Transfiguração: “seu rosto ficou refulgente como o sol e as suas vestiduras tornaram-se luminosas de brancas que estavam” (Mateus 17,2). Como disse o Apóstolo: “Nosso Senhor Jesus Cristo transformará o nosso corpo de miséria, fazendo-o semelhante ao seu corpo glorioso(Filipenses 3,21).

 

Todavia, ao contrário da impassibilidade, que será a mesma para todos, os justos participarão desta claridade e esplendor na medida dos seus méritos. Efetivamente, diz o Apóstolo: “Uma é a claridade do sol, outra a claridade da lua, outra a claridade das estrelas. Ainda há diferença de estrela para estrela na claridade. Assim também a ressurreição dos mortos” (1Cor 15,41-42).

 

O quarto dote dos corpos ressuscitados dos justos será o da sutileza, isto é, o corpo ficará inteiramente sujeito ao domínio da alma, executando suas ordens com prontidão. Será extinta aquela rebelião latente da carne contra o espírito, que percebemos em nós mesmos: “Não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero” (Rom 7,15). Os justos ressuscitados poderão mesmo atravessar as paredes, como o fez Jesus logo após a sua Ressurreição: “Veio Jesus, estando as portas fechadas, e pôs-se no meio deles” (João 20,26). Ora, Jesus não era um fantasma, um puro espírito, tanto que Tomé tocou-lhe as chagas (cf. João 20,27) e Ele mesmo comeu um peixe diante dos discipulos (cf. Lucas 24,43). Se nosso corpo ressuscitado será semelhante ao corpo glorioso de Jesus, como diz a Escritura, também nós poderemos atravessar as paredes ou qualquer outro obstáculo.

 

Estes quatro, pois, são os dotes do corpo glorioso dos justos ressuscitados: impassibilidade, agilidade, claridade e sutileza. Para os maus, todavia, a sorte será diferente: “Esses irão para o suplício eterno” (Mt 25,46). 

 

Finalmente, devemos dizer que a fé na Ressurreição dos mortos, e nas promessas que ela envolve, tem preciosos frutos: elimina o medo da morte, modera a tristeza que sentimos pela morte de nossos entes queridos, é um poderosíssimo consolo nos sofrimentos da vida, torna-nos atentos e cuidadosos a viver bem e nos afasta do mal e do pecado. Se a vida dos homens é apenas esta na qual vivemos, não seria necessário tanto esforço para vivermos de acordo com o bem e a justiça. Diz o Apóstolo: “Que me aproveita isso, se os mortos não ressuscitam? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos” (1Cor 15,32). Se não há a Ressurreição, é vã a nossa Fé (cf. 1Cor 15,17). “Se somente esperamos em Cristo para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens” (1Cor 15,19). A Ressurreição nos dá o sentido da transitoriedade dos bens e dos males desta vida. Tudo passará, os momentos de dor e de alegria; nada é realmente importante, só a vida eterna e o que precisamos fazer para obtê-la.

 

Quando este corpo mortal se revestir da imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: “Tragada foi a morte na vitória”. “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Porém, graças a Deus, que nos deu a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo.

Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e constantes, trabalhando sempre cada vez mais na obra do Senhor, sabendo que o vosso trabalho não é vão no Senhor (1Coríntios 15,54-58).

 

 

Rodrigo Rodrigues Pedroso, advogado e pensador católico

Facebook Comments

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.