Cultura e Verdade

– Os críticos dizem que a Igreja violenta a cultura nacional com sua doutrina ocidental, mas ninguém abre mão da tecnologia, tão ocidental como a Igreja

O texto “Iemanjá pode, Nossa Senhora não pode“ fez ressurgir uma questão sempre retomada no blog Non Nise Te! De certa forma, os diversos colaboradores do site Humanitatis e os inúmeros leitores diários, além dos próprios blogueiros em suas áreas específicas, ocupam-se em meditar sempre o mesmo tema: sobre a relação entre a cultura do brasileiro e a verdade. Quando se fala de família ou de política; de virtudes ou de cinema; de tecnologia ou de religião, o que se procura no fundo é encontrar o ponto de interseção entre esses discursos, o aspecto em que as abordagens se tocam, tornando a reflexão humana coerente, unitária, consistente. Procura-se o ponto em que a cultura revela um pouco da verdade desse mundo.

Para além da conveniência linguística, muito além das convenções humanas que podem criar um ponto de contato fictício, o que garante a existência desse lugar de encontro entre cultura e verdade é a própria realidade. As abordagens em questão são sempre discursos sobre o real: o real no âmbito político, o real no nível familiar, o real sob a égide tecnológica, o real em clave teológica. Ora, se é assim, quando o homem cria um discurso para descrever as exigências desta realidade, e quando este discurso o faz com correção, o que ocorre é um relato verdadeiro sobre o mundo, cria-se um ponto de aproximação entre esses conceitos. Por exemplo, ao analisar o mundo a sua volta, é possível deparar-se com ações más, como a injustiça. Apesar desse ser o mundo como ele é, com atos injustos, o homem não se satisfaz com ele. Esse mundo, com essas ações, não é como devia ser. Pode-se criar, então, um discurso que valorize a justiça e que, indo contra o estado de coisas, procure melhorar as relações sociais. O que se pode nomear “cultura” é, propriamente, a ação humana em que se representa a realidade como devia ser: mais poética, mais harmônica, mais bela, mais conforme à natureza humana. Nesse sentido se oferece a questão dessa reflexão: alguma cultura tem o direito de colocar-se acima da verdade? Em nome de um discurso local, é tolerável vilipendiar a verdade?

1. Crise da noção de Cultura

Segundo Hans-Georg Gadamer, a compreensão acerca da noção de cultura está prejudicada em razão do pensamento contemporâneo. Em um momento histórico em que a verdade perde força agregadora, apesar dos discursos éticos jurídico-positivos pretenderem justificar alguma moralidade, Gadamer afirma: a noção de cultura não é capaz de emprestar unidade, como no passado, às ações humanas. De certo modo, diz-se, a crise da verdade acarreta a desconfiança no poder coagulador da verdade e da ciência, colapsando a cultura. Assim, a cultura enfraquece seu poder unificador, pois seu fundamento é sua relação com a verdade. Por causa da crise da verdade, Gadamer sustenta que ”o conceito de cultura paira numa indeterminação característica” (Gadamer, Hans-Georg. Elogio da Teoria. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 9), indeterminação derivada do distanciamento da verdade.

Todavia, justamente porque a crise é profunda, não é incomum encontrar defensores da indeterminação. Alguns sustentam, aqui mesmo nos comentários do blog, a absolutização da cultura brasileira frente a todos os estrangeirismos: dos americanos, dos chineses e, claro, da Igreja Católica. Eles dizem que a Igreja é europeia e que impõe limites ao modo brasileiro de viver. Eles defendem que a doutrina cristã não é nacional, “não é nossa”, e por isso deve ser abandonada. Percebam que a defesa da cultura nacional ganha força à medida da relativização da verdade. Contudo, para arrepio dos defensores da ‘cultura nacional’, a verdade não pode ser nacional: ou há e vale em todo quadrante, ou não há. A crise da cultura está apoiada, portanto, na desconfiança de que a verdade pode ser alcançada com alguma segurança, de modo universal. Todavia, mas esse tipo de posição é insustentável.

2. Cultura sem Verdade é desumanização

A absolutização da cultura a despeito do seu conteúdo pode tornar uma sociedade inteira menos humana. Com efeito, não é verdade que absolutizar a cultura indígena, por exemplo no campo da saúde, muito mais que condenar uma sociedade inteira à doenças desnecessariamente também torna o homem menos humano? Afinal, a cultura ocidental já fez avanços enormes na medicina. Desprezá-los por causa da defesa intransigente da cultura indígena é muito mais obscurantismo que humanismo. Ou quem defenderia o abandono dos diversos tipos de tecnologia atuais por causa da sua “ocidentalização”? Pelo contrário, os críticos dizem que a Igreja violenta a cultura nacional com sua doutrina ocidental, mas ninguém abre mão da tecnologia, tão ocidental como a Igreja. Alguém realmente acredita que o uso da roda, de remédios, emails, condicionares de ambiente são uma violência à cultura?

Com efeito, a verdade não faz violência a qualquer cultura. É a cultura sem verdade que pode desumanizar uma nação inteira. A história já deu exemplos sem fim de que a produção de cultura sem o simultâneo cuidado com valores humanos leva a monstruosidades: a cultura grega admitia escravos; a civilização romana divertia-se com o Circo Romano, o nazismo matou milhões, não mais que o comunismo até hoje. A reabilitação da cultura passa necessariamente pelo redescobrimento do valor da verdade. Os defensores da cultura nacional só absolutizam a cultura porque acreditam (ou fingem acreditar, melhor dizendo) na relativização da verdade. Ora, se não há uma verdade alcançável, então toda produção cultural é uma luta de forças, cujo mais forte vence. Nesse panorama, a cultura nacional precisa ser defendida dos abusos impostos pela cultura mais forte. Mas quem realmente protege a cultura é a reverência à verdade e não sua negação.

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