Os católicos na vida política
A ?Nota Doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política?, publicada em Roma a 24 de novembro de 2002, pela Congregação para a Doutrina da Fé e aprovada pelo Santo Padre foi, aqui comentada por mim nos dois primeiros itens: ?Um ensinamento constante? e ?Alguns pontos fulcrais no atual debate cultural e político?.
Hoje, concluindo a divulgação do importante documento, abordo ?Princípios da Doutrina Católica sobre laicidade e pluralismo?; ?Considerações sobre aspectos particulares?.
Diante do comportamento dos católicos na vida política e, por extensão, do leigo na sociedade, é lícito assumir uma pluralidade de concepções. Elas refletem sensibilidades e culturas diferentes, para resolver uma problemática que se apresenta à consciência católica. No entanto, diz o documento, ?não é permitido a nenhum fiel apelar para o princípio do pluralismo da autonomia do leigo em política, para favorecer soluções que comprometam ou atenuem a salvaguarda das exigências éticas fundamentais ao bem comum da sociedade? (Nota Doutrinal, nº 5). A liberdade do leigo na esfera civil e política, no plano religioso e eclesiástico, não pode ferir a moral católica. Isto nada tem a ver com o ?confessionalismo? ou a intolerância religiosa.
A Igreja entende essa autonomia como parte do patrimônio da civilização já conseguido (Concílio Ecumênico Vaticano II, ?Gaudium et Spes?, nº 76). Não é da competência do Estado a atividade especificamente religiosa (prática dos atos de culto, os sacramentos, doutrinas teológicas etc), pois ?permanece fora das competências do Estado que não deve intrometer-se neles nem, de forma alguma, exigi-los ou impedi-los? (Idem, nº 6). Os católicos e todos os demais cidadãos têm o direito-dever ?de procurar sinceramente a verdade e defender com meios lícitos, as verdades morais relativas à vida social, à justiça, ao respeito à vida e dos outros direitos da pessoa. O fato de algumas dessas verdades serem também ensinadas pela Igreja não diminui a legitimidade civil e a ?laicidade? (Ibidem).
O Magistério eclesiástico, ao se manifestar nessa matéria, ?não pretende exercer um poder político nem eliminar a liberdade de opinião dos católicos em questões contingentes? mas, ao contrário, deseja ? como é sua função própria ? instruir e iluminar a consciência dos fiéis, sobretudo dos que se dedicam a uma participação na vida política, para que o seu operar esteja sempre a serviço da promoção integral da pessoa e do bem comum? (Nota Doutrinal, nº 6). Assim, a doutrina social da Igreja não é uma intromissão indevida da mesma Igreja no governo do País. Em decorrência, há uma unidade de conduta do fiel na vida particular, familiar, relações sociais, empenho político e cultural. Caso contrário, ?abrir-se-ia o caminho a uma anarquia moral que nada e nunca teria a ver com qualquer forma de legítimo pluralismo? (Nota Doutrinal, nº 6). Seria a marginalização do Cristianismo, uma ameaça aos próprios fundamentos espirituais e culturais da civilização.
A última parte do documento que ora resumimos e comentamos, trata de ?Considerações sobre aspectos particulares?.
Recentemente, também no interior de organizações de inspiração católica surgiram com mais freqüência orientações contrárias ao ensinamento moral e social da Igreja. Por estarem em contradição com os princípios basilares da consciência cristã, é abusivo o uso do nome ?católico?. O mesmo se diga de revistas e jornais intitulados ?católicos?, que assumem posições ambíguas, criando equívocos e não tendo em conta os ensinamentos do Senhor Jesus, autenticamente interpretados pelo Magistério. Faz-se mister a ?construção de uma cultura que, inspirada no Evangelho, reproponha o patrimônio de valores e conteúdo da Tradição católica? (Nota Doutrinal, nº 7).
Após a 2ª Grande Guerra surgiram várias experiências no campo cultural e político, motivadas pela Fé e nem sempre fracassaram. No entanto, os frutos não foram de grande porte. Outros, incorporados por uma visão utópica, ao propor transformar a tradição bíblica em uma espécie de profetismo sem Deus, ?instrumentalizaram a mensagem religiosa, orientando a consciência para uma esperança unicamente terrena, que anula ou redimensiona a tensão cristã para a vida eterna? (Nota Doutrinal nº 7). Entre nós houve e ainda perduram amargas tentativas, com grandes prejuízos para a Igreja.
A liberdade religiosa, proclamada pelo Vaticano II na Declaração ?Dignitatis humanae?, ?está fundada sobre a dignidade ontológica da pessoa humana e, de maneira alguma, sobre uma inexistente igualdade entre as religiões e os sistemas culturais humanos? (Nota Doutrinal, nº 8).
O Papa Paulo VI afirmou que ?o Concílio, de modo nenhum, funda um tal direito à liberdade religiosa sobre o fato de que todas as religiões e todas as doutrinas, mesmo errôneas, tenham um valor mais ou menos igual; fundam-se, ao contrário, sobre a dignidade da pessoa humana que exige que não se submeta a pressões exteriores tendentes a coarctar a consciência à procura da verdade religiosa, da adesão à mesma?. (Discurso ao Sacro Colégio e aos Prelados romanos, em 1976).
As orientações contidas nesta Nota Doutrinal, embora tenham em vista explicitamente os católicos na vida política, abrangem as demais atividades dos fiéis. Sublinha um dos aspectos mais importantes na vida do cristão: ?A coerência entre a fé e a vida, entre o Evangelho e a cultura, recomendados pelo Concílio Vaticano II? (Nota Doutrinal, nº 9). O Concílio exorta ?os fiéis a cumprirem integralmente os seus deveres temporais, deixando-se conduzir pelo espírito do Evangelho? (?Gaudium et Spes?, nº 43).
O assunto tratado na recente Nota Doutrinal bem merece a atenção, o estudo aprofundado dos políticos e homens públicos nos vários setores da vida nacional. Esta doutrina, fundamentada em Cristo, também possui seus alicerces na lei natural, escrita no coração dos cristãos e de todos os homens. Peçamos a Deus que nos ilumine e fortaleça.
Mensagem do Cardeal D. Eugenio de Araújo Sales
Arcebispo Emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro
16/5/2003