– “De onde e de quando vem o casamento civil? E em que se apoiam os protestantes para aceitar o mero contrato civil como meio lícito para se viver a vida conjugal?” (Quintino – Currais Novos-RN).

O matrimônio é instituição baseada na natureza humana e intimamente relacionada com a transmissão da vida. Ora, a vida sempre foi considerada por todos os povos como propriedade divina; é um bem que o homem não deu a si mesmo, nem pode conservar a seu bel-prazer. Atribuíam-lhe, pois, caráter sagrado, caráter que consequentemente foi reconhecido à união conjugal.

Sendo assim, não somente o Judaísmo, mas também as sociedades pagãs anteriores a Cristo, consideravam o ato de contrair matrimônio como algo que transcendia a esfera puramente profana; era, sim, uma cerimônia religiosa. Os gregos, por exemplo, conheciam os “deuses do casamento” (theoíga-mélioi), aos quais ofereciam sacrifícios e dádivas por ocasião das núpcias; a primeira noite que a estas se seguia, era por eles considerada a noite mística (nyx mystíkc). Entre os romanos, o ritual de núpcias costumava prescrever o oferecimento de um sacrifício a Júpiter. Aliás, bem compreensível é tal praxe: os antigos povos não separavam o foro civil e o religioso; antes, julgavam que as instituições pátrias eram sagradas e vice-versa; por isto, também o juramento do soldado que ingressava na milícia imperial era, para os romanos, um “sacramentam”, [no caso,] consagração ao serviço da deusa Roma.

Em tal ambiente é que teve origem o Cristianismo. Este anunciava aos povos uma doutrina matrimonial bem definida: o casamento é contrato natural, instituído pelo próprio Criador (cf. Gênesis 1,28; Mateus 19,4-6) e elevado pelo Redentor a nova dignidade ou à categoria de sacramento, imagem da união de Cristo com a Igreja (cf. Efésios 5,32); goza, por conseguinte, das notas da unidade e da indissolubilidade (note-se que o divórcio era livremente praticado pelos romanos). Os cristãos, professando tal doutrina, começaram a se propagar no Império em meio a uma civilização e uma ordem de coisas instauradas havia séculos; não lhes era possível remodelar bruscamente as instituições vigentes. Por conseguinte, enquanto o Império Romano subsistiu no Ocidente (Roma caiu em 476), duas autoridades legislavam a respeito do matrimônio: a autoridade civil e a da Igreja; verdade é que, após a conversão de Constantino (313), os Imperadores mais e mais procuravam adaptar as leis civis matrimoniais aos costumes cristãos e prestigiavam largamente a implantação destes. Um eloquente testemunho de que a Igreja reivindicava para si independência perante o Estado em matéria de direito conjugal, é o seguinte fato: as leis romanas não reconheciam o casamento de cidadãos livres com escravos nem com libertos (chamavam-no “contubernium”, não “matrimonium”); não obstante, o Papa São Calisto (218-223) permitiu que mulheres romanas de elevada posição social contraíssem matrimônio desse tipo. Mais tarde o Papa São Leão (440-461), por sua vez, declarou o escravo apto a casar-se com um cidadão romano.

Após a queda da autoridade imperial no Ocidente, quando foi preciso reorganizar a vida pública, pode-se dizer que a autoridade geralmente acatada na Europa era a dos bispos. Estes, por conseguinte, aproveitando o que havia de sadio nas instituições romanas, foram restaurando a civilização sobre princípios essencialmente cristãos. Desde então a legislação matrimonial, atinente que era a um sacramento, ficou sendo de competência da Igreja; os povos germânicos, embora tivessem suas tradições anteriores, iam cedendo às leis cristãs; os reis merovíngios e carolíngios (séculos VII/IX) apoiavam a estas o mais possível. Em consequência, por toda a Idade Média foi reconhecida à Igreja jurisdição plena em tudo que concernia ao matrimônio; este era tido como algo de essencialmente religioso e cristão.

No séc. XVI, porém, sobreveio Lutero, que introduziu concepções novas. Tinha o matrimônio na conta de função meramente natural, que interessava unicamente à fisiologia e à psicologia: para a mulher e principalmente para o varão, seria um remédio dado por Deus a fim de poderem ceder à concupiscência invencível e má sem que o pecado lhes fosse imputado (o ato conjugal seria por si mesmo pecaminoso, daí se derivava no reformador uma concepção sinistra do matrimônio: julgava-o rescindível pelo divórcio; dos seus princípios concluía outrossim que, se a um varão não bastasse uma esposa só, deveria tomar duas simultaneamente. Eis algumas de suas afirmações mais características:

– “Apesar de todos os elogios que acabo de fazer à vida conjugal, não entendo conceder à natureza que na vida matrimonial não haja pecado; corrompidos por Adão, a carne e o sangue, como diz o Salmo 50, são concebidos e nascem no pecado. Por conseguinte, o dever conjugal nunca se cumpre sem pecado; mas, por misericórdia, Deus perdoa esse pecado, porque o matrimônio é obra Dele; por meio deste pecado, Ele conserva todo o bem que Ele colocou e abençoou no matrimônio” (fim do sermão sobre o matrimônio; Vom Ehelichen Leben; Werke 10,6,304).

– “Como diz o Salmo 50, o dever conjugal é pecado, pecado propriamente furioso. Pelo ardor e a volúpia perversa que nele se atuam, não difere em nada do adultério e da fornicação. Seria preciso, portanto, não lhe ceder, mas os esposos não o podem evitar. E, por fim, Deus não lhes imputa esse pecado, por pura misericórdia” (Julgamento sobre os votos monásticos; Werkc 8,654,19).

– “Deus cobre o pecado, sem o qual não poderia haver gente casada” (Werke 62,582,30).

Imbuído de tais ideias, Lutero afirmava que o matrimônio não é sacramento, mas “um ato exterior e físico, do tipo das outras ocupações ordinárias” (Werke 10,6,283,8); por isto, depende imediatamente da jurisdição civil:

– “Como se deve tratar de questões de matrimônio e de divórcio, já o expus: devem ser entregues aos peritos em leis e colocadas nas mãos dos magistrados civis. Com efeito, o casamento é coisa mundana e secundária, exatamente como o são esposa e filhos, casa e propriedades e o mais; por conseguinte, está sujeito à jurisdição do poder civil, o qual por sua vez está subordinado à lei da razão” (Werke 62,116).

Os príncipes luteranos não hesitaram em valer-se destes princípios, tomando a seus cuidados as causas matrimoniais; instituíram cortes e instâncias próprias às quais atribuíam as antigas funções da cúria eclesiástica de legislar na matéria e reconhecer os contratos matrimoniais. Assim, o casamento passou a ser assunto do foro civil, do qual a religião não era propriamente banida, mas entrava apenas secundária ou remotamente; o príncipe civil vinha a ser autoridade religiosa autônoma. Um grande passo estava assim dado em direção da total laicização do casamento.

Nos séculos XVII/XVIII, verificou-se na França o movimento chamado “galicano” que, tendendo a constituir uma Igreja nacional, emancipada da autoridade papal, atingia de muito perto as questões matrimoniais; estas, conforme os galicanos, deveriam ser julgadas não na base das leis da Igreja Universal, mas de acordo com a jurisprudência do Estado, que legislaria autonomamente em matéria religiosa. Esta nova tendência a transferir da autoridade da Igreja para o poder civil os casos de casamentos se estendeu à Áustria, onde o Imperador José II (1780-1790), imbuído de galicanismo veemente, esteve prestes a declarar o cisma eclesiástico. Por influência de um canonista astuto e dissimulado, sob o pseudônimo de Febrônio, os principados de Colônia, Tréviris, Mogúncia e Salzburgo, assim como o Grão-Ducado da Toscana (Sínodo de Pistoia, Itália) adotaram por sua vez ideias galicanas, separatistas, no decorrer do séc. XVIII. Observe-se que por essa época ainda não se celebrava o matrimônio meramente civil; contudo, o valor religioso que, nas reivindicações galicanas, josefistas e febronianas, ainda se reconhecia ao casamento, ficava inteiramente subordinado às leis do Estado; o que quer dizer que era desvirtuado ou sufocado.

Finalmente, a Revolução Francesa de 1789 constituiu a etapa final do processo. Os seus chefes apregoavam ao mundo ideia até então inaudita, ou seja, a concepção de um Estado meramente leigo, desconhecedor de qualquer valor religioso e, não obstante, pretensamente suficiente para atender a todas as necessidades do homem; nesta perspectiva, o governo civil seria competente para legislar em qualquer setor da vida humana, inclusive no do matrimônio, sem ter que responder a alguma autoridade eclesiástica; as crenças religiosas seriam questão de tendência particular dos cidadãos.

Uma das consequências mais notáveis da nova mentalidade foi a introdução do casamento civil obrigatório, acompanhado de sua legislação própria (lista de impedimentos, cláusulas favoráveis ao divórcio, etc.); o matrimônio religioso e seus requisitos ficavam na conta de não existentes.

O primeiro país a impor o casamento civil foi a França, no ano de 1792. Esta medida talvez tivesse tido consequências restritas à França, se Napoleão não a houvesse adotado no seu Código Civil (art. 191). O Imperador reconhecia, sim, oficialmente a existência da Igreja, não, porém, para atribuir-lhe autoridade independente, mas para torná-la instrumento do Estado. “Toute influence qui ne vient pas du gouvernement est un crime en politique”, declarou ele certa vez.

O Código Civil de Napoleão tornou-se modelo inspirador de numerosas legislações estrangeiras; e, com ele, o matrimônio civil obrigatório ganhou difusão…: a Itália, por exemplo, o incorporou ao seu Código em 1866; a Suíça, em 1874; a Alemanha, em 1875; a Holanda, onde os franceses o haviam introduzido em 1795, o agregou à sua legislação nova em 1833; a Bélgica o fez em 1830. Estes novos sistemas legislavam sobre o matrimônio em independência ou em oposição para com as leis da Igreja… Concorreram fortemente para que nos povos outrora genuinamente cristãos se difundisse a ideia, hoje tão comum, de que o casamento recebe do Estado o seu vigor de contrato; de que é preciso, portanto, absolutamente preencher as condições da lei civil, mas não sempre, porém, as da lei eclesiástica, pois o aspecto religioso no caso é acessório.

Quem assim pensa, mal tem consciência de que estas ideias constituem uma aberração aos olhos da razão esclarecida e uma inovação recentíssima no curso da História; há pouco mais de cem anos atrás ainda causariam espanto em muitos homens de pensamento profundo.

Está claro que os contratos matrimoniais interessam de muito perto o governo civil, o qual pode legitimamente reivindicar para si o direito de os controlar. É o que reconhecia perfeitamente o Santo Padre o Papa Leão XIII na sua encíclica sobre o matrimônio cristão, em 1880:

– “A Igreja não ignora nem contesta que o sacramento do matrimônio, instituído em vista da conservação e da propagação do gênero humano, está associado necessariamente às circunstâncias de vida que (…) pertencem ao foro civil e a respeito das quais o Estado, com razão, tem suas exigências e promulga justos decretos”.

Mas – como lembra o Pontífice – disto não decorre para o Estado a necessidade do criar seu tipo de casamento próprio, ao lado do religioso; ao contrário, um acordo amigável entre os poderes eclesiástico e civil resolve melhor a situação (como o comprova, por exemplo, a experiência da Itália e da Espanha). Na verdade, pode-se dizer que os fautores do matrimônio civil não visam apenas realçar o valor humano e nacional do matrimônio, mas têm procurado, e em parte ainda procuram, desferir por essa via um golpe contra a Igreja e a mentalidade cristã; a promulgação do casamento civil obrigatório, embora não exclua o religioso, sempre implica num juízo depreciativo publicamente proferido sobre este.

Alguns autores têm procurado justificar a existência do casamento meramente civil, alegando que nos primeiros séculos do Cristianismo a legislação matrimonial dependia do governo e que, por conseguinte, a volta ao estado de coisas antigo não pode ser tida como injúria feita à Igreja. O paralelismo, porém, é de todo inconsistente. Nos primeiros séculos a Igreja já reivindicava para si plena autoridade sobre o sacramento do matrimônio; encontrou, porém, no Império romano uma legislação já feita, à qual só lentamente ela pôde impor as necessárias correções; a partir do séc. IV, a tendência que animava os Imperadores era francamente a de aproximar mais e mais a legislação civil da eclesiástica. Totalmente oposta é a situação moderna: depois de reconhecidos durante séculos os plenos direitos do matrimônio-sacramento, procura-se voltar a um estado de coisas que desde o início foi tido como alheio à mentalidade cristã.

No Brasil, o contrato civil foi tornado obrigatório por lei do governo republicano de janeiro de 1890. Hoje em dia, porém, é facultado aos cidadãos o matrimônio religioso com efeitos civis, instituição que merece alta estima por parte dos católicos, pois os isenta de uma formalidade que em seu âmago equivale a uma ofensa à consciência cristã.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 1 – jan/1958
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