Quais os direitos religiosos do deficiente físico ou psíquico?

– “Quais os direitos do indivíduo anormal (físico ou psíquico)?” (M.L.S.P. – Rio de Janeiro-RJ).

Em vista de clareza no assunto, devemos distinguir entre o anormal psíquico e o anormal físico. Muito mais importante é o primeiro caso, do qual passamos a tratar.

1. Todo indivíduo descendente de autêntica linhagem humana tem alma espiritual dotada de inteligência e vontade. Como se sabe (cf. artigo “O que é ‘alma’?”) a alma, embora destinada a se unir a tal corpo, não depende deste em sua existência; é criada diretamente por Deus e sobrevive fora do corpo. Contudo, destinada a se unir a um corpo e com este chegar à sua perfeição, ela não pode exercer as suas atividades, nem mesmo as mais elevadas (que são as da inteligência e da vontade), caso não receba do corpo ou dos sentidos os objetos ou o “material” a serem elaborados pelo intelecto.

“Nada há no intelecto que não tenha estado primeiramente nos sentidos”, já dizia o filósofo grego Aristóteles. E note-se que neste adágio não se trata apenas dos sentidos externos (olhar, audição, gosto, olfato, tato), mas também dos internos (a memória sensitiva, a fantasia ou imaginação, a estimativa e o sentido comum). Ora, os sentidos estão localizados em determinado órgão corpóreo e funcionam todos em relação direta ou indireta com o cérebro. Disto se segue que, quando o cérebro do indivíduo é afetado por alguma moléstia ou lesão, a vida sensitiva sofre dano total ou parcial — o que impede ou dificulta o exercício da inteligência humana. Acontece então que o doente, embora possua verdadeira alma espiritual ou intelectiva, não a possa manifestar; jamais raciocina ou só raciocina com intermitência e imperfeitamente. É o caso das pessoas que nascem psiquicamente taradas e em idade alguma chegam ao pleno uso da razão, assim como o daquelas que, em virtude de doenças, perdem o uso normal da razão; esses “anormais” vivem como se não tivessem inteligência, quando de fato a têm, mas não a podem exprimir, porque o corpo não lhes fornece os dados necessários ao seu funcionamento. Note-se que a criancinha sadia se acha em condições análogas, enquanto os seus órgãos sensitivos não estão suficientemente desenvolvidos, ou seja, até a chamada “idade da razão”.

Todos os alienados, pelo fato de possuírem alma intelectiva, gozam de personalidade humana e são por Deus destinados a um fim transcendente ou sobrenatural. Possuem, em consequência, certos direitos intransferíveis ou, se quisermos, Deus neles possui direitos intangíveis; tais são:

a) O direito de viver. A vida humana é dom do Criador, do qual não é lícito, nem ao indivíduo nem à sociedade, dispor soberanamente. Portanto não é permitido praticar o aborto, eliminar crianças ou adultos que sejam débeis mentais ou alienados. O indivíduo humano, não sendo feito simplesmente para a sociedade nem para este mundo, tem o direito de ser sustentado pelos seus semelhantes, mesmo quando de modo nenhum possa trabalhar e produzir.

b) No plano religioso, têm direito ao sacramento do Batismo, como o feto e a criancinha normais o têm, direito ao qual corresponde da parte da sociedade o dever de prover ao Batismo, a fim de que a alma existente no indivíduo irresponsável seja salva.

c) Quanto à recepção dos demais sacramentos, fica subordinada ao uso da razão de que tais pessoas gozem. Se nunca chegam a tal, permanecem abaixo da ordem moral, irresponsáveis como as crianças inconscientes, por isto também incapazes de pecar, de se confessar, de receber a santa Comunhão, de contrair vínculo matrimonial etc. Se possuem lucidez mental com intermitência, têm o direito de receber os sacramentos de que precisem para sua santificação, desde, porém, que tenham a devida instrução e as disposições convenientes. No tocante ao matrimônio, São Tomás ensina que os que gozam de períodos de lucidez são capazes de consentimento matrimonial, mas que não convém admiti-los ao casamento, “porque não poderiam educar seus filhos” (S. Teol., Supl, 58,8).

Está claro que os alienados só serão julgados por Deus na medida em que são responsáveis por seus atos (medida cujas proporções escapam ao observador humano) e segundo os critérios brandos exigidos por seu estado mais ou menos mórbido. Quem enlouqueça definitivamente depois de ter gozado do uso da razão, é julgado na base do seu último período de lucidez; quem a intervalos recupera o uso da razão, é julgado na base dos últimos atos que pratique de maneira consciente e responsável.

2. Os indivíduos psiquicamente sãos, mas afetados de doença contagiosa ou defeito físico, seja por hereditariedade, seja por acidente pessoal, gozam naturalmente dos direitos de personalidade acima descritos. Por conseguinte, não é lícito exterminá-los, nem submetê-los à esterilização e nem reduzi-los à categoria de meros objetos de experiências médicas (cobaias).

Em particular, a Moral cristã, tendo em vistas teorias sociológicas modernas, insiste no direito que a tais pessoas assiste de contrair matrimônio. Caso se preveja que gerarão filhes doentes (previsão por vezes assaz hipotética), poder-se-á, no máximo, aconselhar-lhes o celibato. É o que Pio XI, repetindo a doutrina tradicional da Igreja, inculcou nos seguintes termos:

– “Há alguns que, demasiado solícitos com a eugenia, não se contentam com dar conselhos oportunos para prover mais seguramente à saúde e ao vigor da prole futura, mas querem que a autoridade pública proíba o matrimônio a todas as pessoas das quais julgam, segundo as normas e conjecturas de sua ciência, hão de nascer filhos defeituosos por transmissão hereditária, embora essas mesmas pessoas sejam por si aptas a contrair matrimônio. Querem mesmo que, por força da lei, essas pessoas sejam, mediante intervenção médica e contra a sua vontade, destituídas do direito natural de se casar (…) Atribuem aos magistrados civis, contra todo direito e legitimidade, um poder que nunca tiveram nem podem legitimamente ter. Os que deste modo procedem, esquecem perversamente que a família é mais santa do que o Estado e que os homens são primariamente gerados não para a Terra e o tempo, mas para o Céu e a eternidade. De modo nenhum é lícito incriminar por se casarem, homens que por si são capazes de se casar, embora se preveja que, não obstante todo o cuidado e diligência, hão de gerar prole defeituosa. Verdade é que muitas vezes a esses tais se deverá desaconselhar o matrimônio” (Enc. “Casti Connubii”, in: Acta Apostolicae Sedis 22, 1930, 564a).

Pio XI, por outro lado, insiste na mesma encíclica sobre a grave responsabilidade que, perante Deus, a sociedade e a futura prole, assumem os indivíduos doentes que contraem matrimônio.

Em suma, a doutrina católica concernente aos direitos dos indivíduos anormais consiste em inculcar que sagrada e intangível é a personalidade humana.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 8:1957 – dez/1957
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