Deus castiga?

Antes de mais nada, é necessário saber o que é castigo. Castigo não é nem pode ser vingança. Se alguém está se vingando, não está castigando. Mas o castigo, a pena de nossos pecados, é real e deve ocorrer. Um castigo justo é uma coisa boa, ao contrário de toda essa pedagogia do “deixa quieto para não traumatizar” que hoje grassa por aí.

O castigo, visto como pena a pagar pelos nossos pecados, evidentemente existe. O Inferno nada mais é que um castigo eterno, para pecados mortais. Alguém que tenha uma só vez cometido um pecado mortal e não se tenha confessado, a não ser que antes de morrer tenha uma perfeita contrição, irá para o Inferno, como diria Frei Damião, “de cabeça pra baixo”.

Já as doenças, males físicos, econômicos, morais e financeiros em geral, podem, e devem, ser vistas como um “castigo”. Como assim?

Simples. Eu sou um pecador, como imagino que a imensa maioria de vocês. 🙂 Os pecados veniais que cometo têm consequências temporais, assim como os pecados mortais (em que a consequência temporal é somada à eterna, sendo que esta é perdoada na absolvição sacramental). Se eu morrer em estado de graça (ou seja, depois de me confessar e sem ter pecado mortalmente desde então), ainda carregarei comigo estas consequências temporais, que pagarei no Purgatório.

Ora, pagar no Purgatório é infinitamente pior e mais doloroso que pagar aqui. É por isso que é bom considerar uma doença, por exemplo, como castigo. Se eu aceitar este sofrimento como uma pena justa e devida pelos meus pecados, ele passa a ser visto não como algo absurdo e sem sentido, mas como uma graça que me é dada por Deus para o perdão dos meus pecados (estou aqui, aliás, aproveitando que Deus me deu a graça da visita de um enxame de vespas que me deixou vermelho e inchado…).

Um castigo é justo, e é mais que justo que eu esteja cheio de picadas de vespa. Eu fiz por merecer muito mais! Quantas vezes não dei uma esmola pequena, quando poderia ter dado uma maior? Quantas vezes não olhei demais para onde não deveria ter olhado, ou pensei coisas que não deveria ter pensado? Vespa é pouco!

Notem bem que não se trata de uma vingança, mas sim de um justo castigo. Castigar os culpados é uma obra de caridade, nos ensina São Pio X em seu Catecismo.

Assim, Deus nos deu o livre-arbítrio (capacidade de escolher entre dois bens aparentes o que nos parece o melhor), e nos dá também a possibilidade de aceitar (ou não) como pena devida os sofrimentos que temos.

Caso aceitemos, ótimo, estamos pagando as penas temporais de nossos pecados. Mas a chance de pagarmos aqui mesmo os nossos pecados nos é dada por Deus.

Vejamos por exemplo o caso da AIDS, doença que atinge principalmente fornicadores, adúlteros, sodomitas e viciados (eu disse principalmente!, é claro que tem a pobre esposa do adúltero, os hemofílicos, etc., mas são minoria). Para eles é uma bênção de Deus. Assim eles têm uma chance de aceitar este sofrimento e santificar-se em vida, além de serem praticamente forçados a abandonar a prática pecaminosa que originou a doença.

Não podemos dizer que Deus foi lá e, de pura maldade, vingou-Se daqueles que desrespeitaram Seus Mandamentos. O que houve foi que eles pecaram, mas Deus, que é Misericórdia, deu-lhes a imensa graça de saber que morrerão em breve, além de sofrimentos que, acolhidos com alegria como graça de Deus, podem abreviar muito a passagem deles pelo Purgatório.

Castigo não é vingança, castigo é amor e misericórdia.

Segue trecho da Summa Theologica de S. Tomás de Aquino a respeito do temor a Deus (como toda a Summa, começa com o ponto de vista errôneo e depois explica a situação e responde às objeções errôneas anteriormente apresentadas):


Deus pode ser temido?

SS Q[19] A[1] Obj. 1

OBJ 1: Pareceria que Deus não pode ser temido, pois o objeto do medo é um mal futuro, como declarado acima (FS, Q[41], AA[2],3). Mas Deus é livre de todo mal, já que Ele é o Bem em si. Assim, Deus não pode ser temido.

SS Q[19] A[1] Obj. 2

OBJ 2: Além disso, o medo é oposto à esperança. Nós esperamos em Deus, logo não podemos temê-lO.

SS Q[19] A[1] Obj. 3

OBJ 3: Além disso, como declara o Filósofo (Aristóteles): (Rhet. ii, 5), “tememos as coisas pelas quais o mal vem a nós.” Porém o mal vem a nós não de Deus, mas de nós mesmos, de acordo com Oséias 13,9: “A destruição é tua, Israel, teu auxílio é (…) em Mim.” Assim Deus não deve ser temido.

SS Q[19] A[1] OTC

Pelo contrário, está escrito (Jer. 10,7): “Quem Vos temerá, ó Rei das nações?” e (Malaquias 1,6): “Se Eu for um mestre, onde estará Meu medo?”

SS Q[19] A[1] Corpo

Respondo que, assim como a esperança tem dois objetos que esperamos obter, um dos quais o próprio bem futuro enquanto o outro vem pelo auxílio de alguém por quem esperamos obter aquilo que esperamos, assim também o medo pode ter dois objetos, um deles o próprio mal do qual foge o homem e o outro aquilo de onde vem o mal. Assim sendo, do primeiro modo Deus, que é o bem em si, não pode ser objeto de medo; mas Ele pode ser objeto de medo da segunda maneira, desde que pode vir anós algum mal vindo d’Ele ou a Ele relacionado.

SS Q[19] A[1] Corpo

D’Ele portanto vem o mal do castigo, mas este não é um mal absoluto, porém relativo, e em termos absolutos, é um bem. Porque já que uma coisa é boa quando ordenada para um fim, enquanto o mal implica em uma falta desta ordem, aquilo que exclui a ordem até o fim último é mau, e este é o mal de um crime. Por outro lado, o mal do astigo é realmente um mal, enquanto privação de algum bem particular, mas é, absolutamente falando, um bem, enquanto ordenado para o Fim último.

SS Q[19] A[1] Corpo

Em relação a Deus o mal do crime pode cair sobre nós, se nos separarmos D’Ele: desta maneira Deus pode e deve ser temido.

SS Q[19] A[1] R.O. 1

Resposta à OBJ 1: Esta objeção considera o objeto do medo como sendo o mal que o homem teme.

SS Q[19] A[1] R.O. 2

Resposta à OBJ 2: Em Deus podemos considerar tanto a Sua justiça, em respeito à qual Ele castiga os culpados, e Sua misericórdia, em respeito à qual Ele nos liberta: Em nós a consideração de Sua justiça faz surgir o temor, mas a consideração de Sua misericórdia faz surgir a esperança, o que faz com que Deus seja objeto de temor e esperança, mas sob aspectos diversos.

SS Q[19] A[1] R.O. 3

Resposta à OBJ 3: O mal do crime não é de Deus como autor, mas nosso, na medida em que O esquecemos: o mal do castigo, por outro lado, é de Deus como autor, já que tem o caráter de um bem, desde que seja algo justo, sendo inflingido a nós de maneira justa; ainda que originalmente isso seja devido ao demérito do pecado: assim está escrito (Sab. 1,13-16): “Deus não fez a morte . . . mas os malvados em obras e palavras a chamaram para si.”

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