Para facilitar a exposição do assunto, comentado sob vários aspectos pelos comentaristas, fazemos a seguir uma redação esquematizada:
- Definição da Usura feita por Van Espen:
“Usura definitur lucrum ex mutuo exactum aut speratum”, isto é, traduzindo do latim, “A usura é definida como um lucro determinado ou esperado de um empréstimo”.
- A Imoralidade da Usura:
Prosseguindo, o mesmo Van Espen diz que a usura é proibida pelas leis natural, divina e humana. É proibida:
- Pela Lei Natural, levando-se em conta as primeiras preocupações e declarações da consciência humana, contidas no Decálogo, na medida em que declara que é proibido roubar. Esta é a opinião dos Mestres da Teologia, São Boaventura e São Tomás de Aquino e uma multidão de outros. Com a palavra “roubar”, a Lei Vétero-Testamentária proíbe tomar qualquer bem do outro ilegitimamente. Usura é ilegítimo e, portanto, condenável…
- Pela Lei Divina, tendo como prova, segundo Van Espen, o Antigo Testamento: Ex 22,25 e Deut 23,29; e, do Novo Testamento: Lc 6,34.
- Pela Lei Humana, porque formalmente condenada pelos próprios pagãos em suas legislações. Ver Tácito (Anais 54,5); e, severamente, pelos reis franceses nos éditos de São Luis, Felipe IV, Carlos IX , Henrique III, etc.
- A Concepção da Igreja Primitiva
Na opinião universal de todos os mestres de moral, teólogos, doutores, Papas e Concílios da Igreja Cristã, nos 15 primeiros séculos do Cristianismo, era considerada usura toda vantagem cobrada sobre empréstimos em dinheiro. O seu recebimento era tido como uma forma de roubo e de desonestidade. Aqui, complementando as legislações citadas no item acima, e expondo o pensamento da Igreja dos primeiros tempos, lembramos o próprio cânon XVII do Primeiro Concílio de Nicéia e de vários outros Concílios, como o de Elvira II, Arles I, Cartago III e Tours III etc.
Bossuet escreveu um tratado sobre o assunto, em todos os seus detalhes – “Traité de l’Usure” – no qual expõe a primitiva e tradicional concepção da religião cristã, onde alguém defende-a cabalmente com conhecimento de tudo o que poderia ser argumentado pela parte oposta. Os Padres da Igreja negavam expressamente que o Estado tivesse poder para tornar justo o recebimento de juros ou para fixar suas taxas.
- Fontes de Consultas sobre a posição dos Padres da Igreja e dos Concílios:
Para que o estudioso tenha em suas mãos a leitura do ponto de vista dos Padres da Igreja, a seguir são citadas passagens mais comumente citadas, bem como a posição de Concílios, devendo tais informações serem creditadas a Wharton B. Marriot no “Smith and Cheetham’s Dictionary of Christian Antiquities” (verbete “Usury”).
Embora as condições da comunidade mercantil, tanto no Oriente como no Ocidente, diferissem em alguns pontos, os Padres das duas Igrejas eram igualmente explícitos e sistemáticos em sua condenação da prática da usura. Dentre aqueles da Igreja Grega, encontramos Atanásio (Expos. In Ps. XIV), Basílio, o Grande (Hom. in Ps. XIV), Gregório de Nazianzeno (Orat. XIV in Patrem tacentem). Além deles, Gregório de Nissa (Orat. cont. Usurarios); Cirilo de Jerusalém (Catech. IV c. 37), Epifânio (adv. Haeres. Epilog. c. 24), Crisóstomo (Hom. XII, in Genes) e Teodoreto (Interpr. In Ps. XIV 5, e Lib. 11). Entre aqueles pertencentes à Igreja Latina, Hilário de Poitiers (in Ps. XIV), Ambrósio (de Tobias liber unus), Jerônimo (in Ezech. VI,18); Agostinho (de Baptismo contr. Donatistas IV,19), Leão, o Grande (Epist. III,4) e Cassiodoro (in Ps. XIV,10).
Os cânones dos concílios posteriores a Nicéia I diferem materialmente em relação a esse assunto e indicam uma tendência distinta para mitigar o rigor da proibição de Nicéia. A Igreja de Cartago, no ano 348, insiste na proibição original, mas sem penalidade, e apóia a proibição na autoridade tanto do Velho como do Novo Testamento, “nemo contra prophetas, nemo contra evangelia facit sine periculo” (“Ninguém age contra os profetas nem contra os Evangelhos sem perigo”, cf. Mansi III,158). A linguagem, contudo, quando comparada com aquela do Concílio de Cartago, do ano 419, sugere que nesse intervalo, o baixo clero demonstrava ter ocasionalmente encontrado modos de burlar a prática proibida, pois os termos gerais do cânon mais antigo, “ut non liceat clericis fenerari” (“que não seja lícito aos clérigos obter lucros”) são reforçados com grande particularidade no último ponto: “Nec omnino cuiquam clericorum liceat de qualibet re foenus accipere” (“nem a ninguém do Clero seja permitido receber lucro de qualquer coisa”, cf. Mansi IV,423). Essa suposição é sustentada pela linguagem do Concílio de Orleans, no ano 538, que parece nos levar à conclusão de que aos diáconos não era proibido emprestar dinheiro a juros: “Et clericus a diaconatu, et supra, pecuniam non commodet ad usuras” (“E clérigos do diaconato e superiores não emprestem dinheiro com usura”, cf. ib. IX,18). Similarmente, no segundo Concílio de Trulos, no ano de 692, uma liberalidade semelhante parece ter sido reconhecida entre o baixo clero. (Hadoui, III.1663).
Enquanto o cânon de Nicéia requer a deposição imediata do eclesiástico culpado da prática em questão, o cânon Apostólico ordena que tal deposição é para ser feita somente após que ele tenha sido admoestado e tenha desprezado a admonição.
- Evidências de Diferentes Posições sobre o Assunto:
Geralmente falando, a evidência nos leva à conclusão de que a Igreja não impôs penalidade ao leigo. São Basílio (Epist. CLXXXVIII, can. 12) diz que um usurário pode mesmo ser admitido à ordenação, desde que se providencie que dê sua riqueza assim adquirida aos pobres e que se abstenha para o futuro da busca de lucro (Migne, Patrol. Croec. XXXII.275). Gregório de Nissa diz que o usurário, diferentemente do ladrão, do violador de túmulos e do sacrílego (em grego: “ierosulia”), pode passar impune, embora envolvido em coisas proibidas pela Escritura, nem se perguntará a candidato à ordenação se foi ou não culpado de sua prática. (Migne, ib. XIV.233). Uma carta de Sidônio de Apolinário (Epist. VI.24), relatando uma experiência de seu amigo Máximo, parece indicar que nenhuma culpa foi imposta ao que emprestou dinheiro a uma taxa legal de juros, e que mesmo um bispo podia ser credor nesses termos. Há o caso de Desiderato, bispo de Verdun que, solicitando um empréstimo ao rei Teodeberto para ajuda de sua empobrecida diocese, prometeu sua liquidação “cure usuris legitimis” (=”atendendo aos legítimos juros”), expressão que parece indicar que na Igreja Galicana a usura era reconhecida como legal sob certas condições (Greg. Tur. Hist. Franc. III.34). E, ainda, uma carta (Epist. IX,38) de Gregório, o Grande leva-nos a crer que ele não considerava o pagamento de juros sobre dinheiro emprestado por um leigo a outro como ilegal. Mas, de outro lado, encontramos no “Penitencial”, como é conhecido, de Teodoro, por volta do ano 690, o que parece ser uma lei geral sobre o assunto, prescrevendo: “Sie quis usuras undecunque exegerit… tres annos in pane et aqua” (=”Se alguém exigir de qualquer modo juros… três anos a pão e água”, cf. c. XXV,3). Há penalidade também prescrita no Penitencial de Egberto de York (c. II,30). De semelhante maneira, os legados Jorge e Teofilato, relatando seus procedimentos na Inglaterra ao Papa Adriano I, no ano 787, diz que interditaram “agiotas” e citam a autoridade do Salmista e de Santo Agostinho (Haddan and Stubbs. Conc. III. 457). Os Concílios de Mayence, Rheims e Chalons, no ano 813, e o de Aix, no ano 816, parece terem imposto a mesma proibição tanto ao Clero quanto ao Laicato. (Hardouin, Conc. IV. 1011,1020,1033, 1100).
- Uso no Comércio:
Muratori, em sua dissertação sobre o assunto (Antichita, vol. I), observa que “não sabemos exatamente como o comércio transacionava nos cinco séculos precedentes” e, consequentemente, ignoramos os termos sob os quais os empréstimos de dinheiro eram realizados.
- A Nova Moral sobre Juros:
A glória de inventar o novo código moral sobre o assunto pelo qual aquele que antes era tido como em pecado mortal foi transformado em inocente, se não em virtuoso, pertence a João Calvino. Ele fez a distinção moderna entre “juros” e “usura”, e foi o primeiro a escrever em defesa dessa nova invenção que foi o refinamento casuístico. Lutero se opôs violentamente a ele, e Melancthon também conservou-se na antiga doutrina, embora menos violentamente (como era de se esperar). Hoje, toda a Igreja Cristã Ocidental, Protestantes e Católicos igualmente empenham sua salvação sobre a verdade da distinção de Calvino. Entre os Católicos Romanos a nova doutrina começou a ser defendida a partir do começo do séc. XVIII, tendo atraído uma ampla atenção a obra de Scipio Maffei – “Dell’impiego dell danaro” – escrita sobre a posição mais liberada. Ballerini afirma que o erudito Papa Benedito XIV permitiu que livros defendendo a nova moral lhes fossem dedicados, e em 1830, a Congregação do Santo Ofício, com a aprovação do Papa reinante, Pio VIII, permitiu que aqueles que consideravam a cobrança de juros permitida por justificável lei do Estado “não fossem recriminados”.
É inteiramente insincero tentar reconciliar a doutrina moderna com a antiga. Como vimos antes, os Padres da Igreja negavam expressamente que o Estado tivesse poder de tornar justo o recebimento de juros ou de fixar sua taxa, pois há um fundamento para aqueles que aceitam o novo ensinamento, ou seja, que todos os antigos, enquanto corretos no princípio moral de que ninguém podia defraudar seu vizinho, nem tirar vantagem injusta de sua necessidade, caíam em erro com relação aos fatos, quando supunham que o dinheiro era estéril, opinião também sustentada pelos estudiosos que seguiam Aristóteles. O que é considerado completo erro nos tempos modernos e nas modernas circunstâncias, como Gury, o famoso casuísta, bem disse: “fructum producit et multiplicatur per se” (=”(o dinheiro) produz fruto e se multiplica por si”).
- Uma final consideração do Tradutor, talvez indevida, mas incontida:
Contemporaneamente, estamos pagando caro os caminhos a que nos levaram o uso do dinheiro “per se”. Nesta época de globalização, inclusive financeira, o dinheiro está, cada vez mais, tornando-se a incontrolável vassoura do Aprendiz de Feiticeiro, de Goethe. Multiplica-se na estratosfera sem fundamentação alguma, senão a da especulação. O dinheiro atrai dinheiro, diz-se. E isso está tumultuando os nossos dias, pois o ritmo de concentração de riquezas tende a uma sempre crescente velocidade. O trabalho, o outro parceiro (no mínimo com iguais direitos, ou maiores, pois é valor humano) da Economia, e o investimento disseminado, criador de empregos, decrescem na medida em que somos envolvidos numa espiral galáctica concêntrica que, talvez possamos prever, nos levará a uma implosão e formação de um buraco negro irreversível, do qual não escapará uma estrela única para se gloriar de ser inteligente e poderosa por ter seguido a nova invenção de Calvino, não volte logo o Feiticeiro e desfaça o encanto de seu Aprendiz…