Uma linha genética de desenvolvimento liga o trabalho de fundação dos apóstolos, nas igrejas mais antigas, aos primeiros símbolos de fé e à primeira definição dogmática do Concílio de Nicéia em 325 dC. O dogma, certamente, é uma das maiores preocupações do teólogo, que deve expor a gênese desses ensinamentos solenes e depois explicar sua relevância para o tempo atual.
Serão esboçadas aqui as fases que conduzem, da tradição e “depósito” apostólico, por meio da “regra da fé”, aos símbolos batismais e depois ao Credo que exprime um dogma, isto é, a uma definição eclesial formal de um artigo de fé particular, derivado dos apóstolos.
Os símbolos e o dogma, mediante os quais a tradição fornece à teologia seus pontos de referência fundamentais, não esgotam, contudo, a tradição cristã. Tertuliano, autor africano que escreve por volta de 215 dC, dá uma breve relação das práticas cristãs não contidas na Escritura e, todavia, observadas nas igrejas. A eucaristia matutina, as ofertas pelos mortos, a oração feita sempre de pé, durante o tempo pascal, o sinal-da-cruz feito com freqüência, não são bíblicos, mas igualmente respeitados como fios que entrelaçam a vida comum, com algumas destas práticas provenientes dos próprios apóstolos.
O conteúdo principal da tradição primitiva, no entanto, não consiste em tais costumes, e sim na herança apostólica central, isto é, o “depósito” do ensinamento e das práticas que os pastores e os mestres transmitiram enquanto explicavam a atribuição de tutores da integridade da fé e do estilo de vida apostólica nas igrejas.
Uma carta tardia da época apostólica exorta seus leitores a prosseguir no combate “pela fé que foi transmitida aos que crêem, uma vez por todas” (Jd 3). O “depósito” é o termo que inclui a fé e o estilo de vida deixados como herança pelos apóstolos e por seus colaboradores às igrejas fundadas por eles. Os apóstolos deixaram como herança um modelo coerente de fé, ensinamento e formas de interpretação bíblica, de culto e de estruturas comunitárias de serviço, e de vida no mundo segundo a palavra e o exemplo de Cristo. A fonte e a norma de vida e do ensinamento cristão em cada época fica sendo o “depósito” de tradição deixado pelos que foram enviados por Jesus para comunicar sua revelação e dons salvíficos. A Igreja vive desse depósito de tradição apostólica em sua forma plena.
O “Depósito” Apostólico
O Antigo Testamento contém leis que descrevem a obrigação do depositário diante de Deus, de guardar os objetos de valor a ele confiados (Ex 2,26-12; Lv 5,20-26). Sobre esse fundo, as cartas do Novo Testamento a Timóteo referem-se à tradição paulina como um depósito (parathéke) que deve ser conservado íntegro e guardado contra qualquer contradição (1Tm 6,20; 2Tm 21).
As Cartas Pastorais, escritas perto do fim do primeiro século cristão, entendem o “depósito” como o resultado do ministério polivalente de Paulo. Não catalogam seu contéudo mas insistem na contínua importância que tem, como norma da vida comunitária, bem depois da morte de Paulo. Os pastores são fiduciários obrigados a proteger a herança do Apóstolo, anunciando fielmente seu evangelho, dando uma instrução íntegra, regulando a oração comunitária, escolhendo atentamente outros ministros e opondo-se a doutrinas estranhas e subversivas.
O “depósito” neotestamentário, o viveiro de toda a teologia cristã, é a tradição apostólica em sua forma ampla e complexa, que serve como norma de fé e fonte de vida nas comunidades cristãs. Uma vez dada a identidade dessas comunidades, mantê-la dependia da fidelidade ao que havia sido recebido. Para um trabalho desse tipo, não basta o esforço humano; assim, deve-se observar um poder ulterior conferido às comunidades e a seus pastores: “Guarda o bom depósito, por meio do Espírito Santo que habita em nós” (2Tm 1,14).
A Regra de Fé
Nos autores cristãos do fim do século II, encontramos outra forma considerável de tradição apostólica. O que eles designam como “regra da fé” não abrange o depósito inteiro deixado pelos apóstolos, porém é mais preciso na expressão de suas principais linhas doutrinais.
Autores do fim do século II, como Ireneu de Lião, mencionam, com certa freqüência, que suas igrejas possuem um conhecido “cânon de verdade”, isto é, estrutura e conteúdo fixo de ensinamento eclesial ou, mais simplesmente, uma “regra de fé” (regula fidei). Alguns desses autores fornecem sumários dos ensinamentos principais, expressos em termos variáveis, mas com os mesmos traços fundamentais. A regra é crer em Deus, Pai onipotente, criador de tudo que existe; crer em Jesus Cristo, o Filho que se encarnou para nossa salvação; crer no Espírito Santo, que falou – por meio dos profetas – do nascimento, paixão, ressurreição e ascensão de Cristo, da futura ressurreição, e da futura manifestação de Cristo na glória, como juiz de todos.
A regra de fé, no final do século II, não era um símbolo ou confissão com fórmula de palavras fixas, se bem que confissões mais concisas se estavam transformando, em conformidade com a regra. Esta exprime o conteúdo central que a fé abraça como proveniente de Cristo, por intermédio de seus apóstolos e da Igreja. A fé se torna, pois, uma regra, com a qual devem ser confrontadas novas formulações de ensinamento, para verificar a coerência destas, pelo menos com os artigos básicos de fé sobre Deus e sua obra.
Para a teologia, a regra de fé tradicional mostra a unidade da revelação bíblica de Deus, de si mesmo e de sua obra salvífica. Mostra que a reflexão dos crentes pós-apostólicos não se chocava com fragmentos esparsos de fé, mas possuía, ao contrário, uma visão coerente de Deus, da criação e da vida humana no mundo.
Um momento fundamental no trabalho teológico cristão é dar uma explicação de Deus e de seu plano para a humanidade. A teologia tem em vista uma nova penetração do significado dos artigos de fé e das numerosas relações entre eles e com a vida humana do mundo. A teologia também fica à procura de uma síntese renovada. Determinada estrutura, porém, e certa ordem surgem do interior da própria fé, cujo ato fundamental se apropria de uma síntese primordial contida na regra de fé apostólica.
Os primeiros Símbolos de Fé
Com o século IV, passa a ser comum o fato de os cristãos suspeitos de heresia apresentarem, diante dos outros, o credo que professavam. Tais atos e fórmulas confessionais têm raízes muito profundas, remontando à declaração “Jesus é o Senhor” (1Cor 12,3) ou “confessa com tua boca que Jesus é Senhor e crê em teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos” (Rm 10,9; cf. Fl 2,10; At 22,36). O mais antigo símbolo conhecido para professar a fé da Igreja tem a estrutura de um diálogo. A fé assume a resposta “creio” às perguntas a respeito de Deus e da sua economia de salvação, feitas por um ministro da Igreja no momento central da incorporação na comunidade por meio do batismo.
Muitos símbolos do século IV devem ser colocados no contexto do catecumenato. Enquanto a forma de pergunta-resposta permanece central no próprio batismo, a entrega do credo da Igreja (traditio symboli) aos catecúmenos indicava a passagem destes a um estado avançado de preparação ao batismo. A eles era transmitida a fórmula em uso na igreja local, que deviam saber de memória, e depois ouviam ensinamentos, habitualmente da parte de um bispo, sobre o significado de cada parte do texto.
Pouco antes de receber o batismo, os candidatos marcavam o término da instrução pré-batismal, professando a fé transmitida no rito da redditio symboli. Estes símbolos declarativos ampliavam, de certa forma, os símbolos interrogativos do próprio batismo, segundo a regra de fé das diversas igrejas locais, para dar uma expressão concisa à fé na qual os candidatos estavam para ser iniciados. O “Símbolo dos Apóstolos” é uma dessas fórmulas para exprimir o núcleo evangélico da revelação de Deus sobre si mesmo e sobre sua obra de salvação em Cristo.
Diariamente, a teologia se ocupa de doutrinas e, enquanto disciplina intelectual, pode se dedicar freqüentemente à elaboração de teorias compreendidas no que se acredita. O papel primordial das doutrinas contidas nos símbolos é, no entanto, exprimir a adesão de quem crê em Cristo como Filho de Deus, ressuscitado e Senhor. A estrutura trinitária dos símbolos faz deles meios idôneos para a entrega da própria vida ao objetivo salvífico do Deus trino. O símbolo é, pois, um elemento da expressão litúrgica e eclesial de conversão, como uma passagem do pecado e da alienação à “família de Deus” (Ef 2,19), em que se entra para fazer parte de uma comunidade de testemunhas e fiéis que partilham a vida uns com os outros e com Deus (cf. 1Jo 1,1-3). Um importante aspecto do trabalho do teólogo é relacionar doutrinas, estudadas primeiro em seu crescimento e circunstâncias históricas, com a profissão pessoal de fé feita no batismo.
Um Símbolo dogmático: Nicéia (325 d.C.)
O Concílio de Nicéia, em 325 dC, deu início a um novo movimento, promulgando um símbolo declarativo para toda a Igreja, que exprime uma parte de regra comum de fé em novos termos para excluir um erro específico. Esse símbolo novo e revisto era destinado não tanto ao uso de fiéis individuais, como profissão pessoal, quanto como norma de ortodoxia, de modo a poder reconhecer bispos legítimos e permitir a outros bispos manter o vínculo de comunhão eclesial com eles.
O Símbolo de Nicéia, exclui a doutrina iniciada por Ário de Alexandria, sobretudo especificando que o Filho de Deus é gerado do ser ou substância (ousía do Pai e é “consubstancial (homooúsios) ao Pai”. O objetivo, no caso, não era elevar uma tecnicidade filosófica em nível de fé, mas rebater e excluir o que ensinava Ário sobre a origem do Filho como “primogênito das criaturas” (Cl 1,15).
Ário interpretava o Novo Testamento do ponto de vista de textos como João 14,28, onde Jesus diz: “O Pai é maior que eu”. Ressaltava também que, se Jesus deve constituir para nós um exemplo a seguir, deve então ser plenamente um de nós e obter por mérito a sua exaltação. Nicéia declara, ao contrário, que o próprio Deus está presente em Jesus de Nazaré. Os significados de ousía e homooúsios não foram elaborados pelos bispos reunidos em concílio. O objetivo de seu ensinamento está claro pelo fato de terem sido acrescentadas ao símbolo umas poucas formulações arianas que negam a divindade do Filho; por exemplo: “Houve tempo em que não existia”, agora proibida sob pena de excomunhão.
O Símbolo niceno, na posição que veio a ocupar na vida da Igreja, é exemplar para todas as futuras declarações dogmáticas. Dele, a teologia deduz uma noção inicial, funcional, de dogma. O símbolo regulamenta, antes de tudo, a linguagem do ensinamento da Igreja, excluindo, por exemplo, as afirmações arianas. Em segundo lugar, estabelece um fio condutor que deve ser seguido na interpretação da Escritura. A prioridade deveria caber, por exemplo, não a João 14,28, mas a um texto como João 10,30: “Eu e o Pai somos um”. Portanto, o Símbolo de Nicéia exclui uma regra de fé e um princípio de interpretação bíblica inaceitáveis. Em terceiro lugar, o dogma estabelece um critério de comunhão entre os bispos e suas igrejas.
Em todo o trabalho teológico, os ensinamentos solenes da Igreja podem se relacionar com a vida desta, como foi feito neste caso, pelo dogma niceno, por meio do qual um componente da tradição apostólica chega a ter uma formulação precisa.
São Tomás sobre os “Artigos de Fé”
Um aspecto final do símbolo, que também se ramifica pela prática da teologia, foi articulado por São Tomás de Aquino. Com relação à multiplicidade dos artigos individuais contidos no símbolo, Tomás afirma que todos os artigos deveriam ser considerados implícitos em dois artigos primordiais de fé: que Deus existe e que tem cuidado providencial pela nossa salvação (Hb 11,6). O número dos artigos aumenta com o passar do tempo, mas isto é uma explicitação do que está presente no mais fundamental princípio de fé.
Para São Tomás de Aquino, o objeto último de fé não é o grande número dos artigos que confessamos. Necessitamos deles por causa de nossa maneira histórica de conhecer, sempre parcial; seu objetivo é, porém, estar em relação com o próprio Deus, em sua absoluta simplicidade como a Verdade Primeira em cuja direção somos conduzidos pela fé.
Do ponto de vista da própria fé, Tomás enuncia um princípio que a teologia pode aplicar a cada artigo de fé e ao símbolo inteiro: “Actus autem credentis non terminatur ad entuntiabilem sed ad rem”. Para São Tomás a fé é um movimento do espírito humano, sob o influxo da graça, que afirma o artigo contido no credo no ato ato de fé, mas com uma dinâmica que conduz, para além do artigo ou da doutrina, à realidade que a doutrina revela. O artigo ou dogma formula uma verdade de revelação divina; porém, ele não é o objeto final da fé: “Articulus est quaedam perceptio divinae veritatis tendens in ipsam”.
Assim, visto que trata dos artigos de fé formulados que aparecem na tradição da Igreja, a teologia deve resistir à tentação de se perder nos pormenores históricos ou de se satisfazer com pouco mais que a explicação precisa do vocabulário doutrinal. As doutrinas são “para nós e para a nossa salvação”; os artigos de fé não passam de modos de se relacionar com o próprio Deus, na verdade última que Ele é.
A fé em uma verdade particular implica um movimento que transcende o conteúdo formulado da fé. Ela conduz a pessoa à união com Deus, a Veritas prima, que até agora, revelando-se, ilumina os corações humanos com a luz de sua presença. A teologia tampouco se detém nas formulações de tradições, símbolos e dogmas, mas mostra o caminho para uma vida iluminada pela luz de Deus que se propaga pelo mundo.
Fonte: Livro “Introdução ao Método Teológico”, capítulo “O Teólogo e a Tradição Cristã”, pp. 65 a 72; as notas de rodapé foram suprimidas neste artigo.