Do Poder de Ordem e da Faculdade de Absolver

Conceituação e notas introdutórias

Pelo sacramento da Ordem, os clérigos são incorporados de modo mais perfeito a Nosso Senhor, restando que há entre eles e os simples fiéis não uma diferença de grau, senão essencial. Participantes assim do ministério do próprio Cristo, tornam-se dispensadores da graça por Ele conquistada na Cruz do Calvário.

Se todos os cristãos somos, de certa forma, sacerdotes em razão do Batismo, a Ordem confere uma nova participação desse sacerdócio, que é, como dissemos, diferente daquele, dito comum dos fiéis, em essência, e não apenas em grau. Esse sacerdócio hierárquico, recebido pela ordenação sacramental, torna o ministro, quando revestido da Ordem presbiteral, o próprio Cristo, um alter Christus. Dessa forma, é o Salvador quem age através do sacerdote, que só pode ser assim chamado em virtude de sua união sacramental com Jesus Cristo, o único, suficiente e supremo Sacerdote, que Se oferece a Si mesmo a Deus em oferta pelos pecados de todos. O sacerdote, podemos dizer de outra forma, atua, como dizemos em Teologia, in Persona Christi, na Pessoa de Cristo, e não somente em Seu Nome.

Ora, o fruto do exercício do sacerdócio de Cristo é a recuperação da amizade entre Deus e a humanidade, i.e., a conquista da graça divina, capaz de justificar o homem que a Ele se achega com fé teologal. Nisso, se o sacerdote ordenado, por causa do sacramento que recebeu, está unido a Cristo e Seu sacerdócio, o exercício de seu ministério deve ser a própria dispensação da graça conquistada. O ato de Cristo ao sacrificar-Se e a ação sacramental do sacerdote são necessariamente uma só realidade, ainda que separados no tempo.

Assim, merecida por Nosso Senhor a graça por Seu supremo ato de sacrifício na Cruz, nos é imputada, pelo poder do Espírito Santo, ordinariamente por canais através dos quais ela flui. Esses canais, os sacramentos, são também sinais visíveis da graça invisível. “Os sacramentos são sinais eficazes da graça, instituídos por Cristo e confiados à Igreja, por meio dos quais nos é dispensada a vida divina. Os ritos visíveis sob os quais os sacramentos são celebrados significam e realizam as graças próprias de cada sacramento. Produzem fruto naqueles que os recebem com as disposições exigidas.” (Catecismo da Igreja Católica, 1131) Com base nessa doutrina, resumida pelo Catecismo – que abreviaremos como de costume, Cat. –, podemos definir os sacramentos como canais da graça e sinais sensíveis, eficazes e visíveis da graça invisível, que realizam e produzem aquilo que significam.

Se cada sacramento produz a graça divina dita genérica na alma de quem o recebe, há também uma graça específica que é por ele produzida. Quanto ao sacramento da Penitência, que é tema do presente estudo, temos que é o modo ordinário de alcançarmos o perdão dos pecados cometidos após o Batismo. Em vista disso, é ato próprio do ordenado investido no sacerdócio, pois que pela Ordem, age in Persona Christi. Se é Cristo quem nos merece a graça, só Ele pode no-la imputar, e o faz pela ação do sacerdote no sacramento da Penitência. O efeito da Penitência é expresso mesmo pela fórmula de administração deste sacramento: “Deus, Pai de misericórdia, que, pela Morte e Ressurreição de seu Filho, reconciliou o mundo consigo e enviou o Espírito Santo para a remissão dos pecados, te conceda, pelo ministério da Igreja, o perdão e a paz. E eu te absolvo dos teus pecados, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.” (Ritual Romano; Rito da Penitência; Fórmula da Absolvição)

O estudo que fazemos, mesmo que tenha de utilizar certas fórmulas teológicas, é precipuamente jurídico, de onde se infere que devemos amparar conceituações e explicitações na lei da Igreja, compilada principalmente no Código de Direito Canônico – Codex Iuri Canonici, CIC. Outras formulações legais poderão ser usadas, e mesmo fontes subsidiárias do Direito, como a jurisprudência, a doutrina dos comentadores – opinio communis doctorum –, os costumes, e os princípios gerais jurídicos. Por se referir a matéria de Direito divino e não meramente eclesiástico, a Teologia também é fonte secundária para o melhor entendimento do assunto.

Feita essa primeira explicação, citamos o cânon 959, CIC, que dá uma definição jurídica e teológica do sacramento da Penitência:

“Cân. 959 – No sacramento da penitência, os fiéis que confessam seus pecados ao ministro legítimo, arrependidos e com o propósito de se emendarem, alcançam de Deus, mediante a absolvição dada pelo ministro, o perdão dos pecados cometidos após o batismo, e ao mesmo tempo se reconciliam com a Igreja, à qual feriram pelo pecado.”

Conforme tínhamos já demonstrado, o ministro da Penitência é o sacerdote, pois por sua ordenação, que resultou na união mais perfeita a Cristo, é o dispensador da graça por Ele conquistada. Não é outro o disposto no CIC:

“Cân. 965 – Ministro do sacramento da penitência é somente o sacerdote.”

Poder de ordem e faculdade de ouvir confissões

Todavia, se só o sacerdote é o ministro do sacramento da Penitência, pelo qual o batizado recupera a amizade com Deus perdida pela prática de pecados graves após o Batismo, isso não quer dizer que necessariamente todo homem investido da graça sacerdotal possa válida e licitamente dar a absolvição sacramental. Se o poder de ordem é necessário para ouvir confissões, e conseqüentemente para absolver os pecados, conforme o cânon 6, Sessão XIV, Concílio Ecumênico de Trento, há necessidade, entretanto, de outro poder, denominado “de jurisdição” no revogado Código de Direito Canônico de 1917, e no novo Código de 1983, chamado de “faculdade de absolver” ou “faculdade de ouvir confissões”.

Poder de ordem é aquele recebido pelo sacerdote na sua ordenação presbiteral válida. Por ela, recebe o sacerdote a capacidade de exercer seu múnus sacerdotal em vista à santificação do povo cristão, mediante a administração dos sacramentos, sobretudo a celebração da Santa Missa.

Poder de jurisdição, ou faculdade de absolver, conforme o ensino do ilustre canonista Pe. Fr. Teodoro da Torre Del Greco, OFMCap, doutor em Direito Canônico, “é o poder público de reger os fiéis em ordem à vida eterna.” (Teologia Moral. Compêndio de moral católica para o clero em geral e leigos. Edições Paulinas, São Paulo, 1959, p.  580) O termo “jurisdição” foi abandonado pela letra do novo Código, reservando-o, segundo comentário do Pe. Jesús Hortal, SJ, “exclusivamente para o poder de regime (cf. cân. 129), o qual incide diretamente na ordem externa da Igreja, enquanto a faculdade de absolver se dirige ao foro interno ou da consciência.” (Nota ao cân. 966, in Código de Direito Canônico. 3a edição, Edições Loyola, São Paulo, 2001) Ainda que pese a douta advertência do canonista jesuíta, atemo-nos ao ensino do capuchinho, que, em substância, mesmo que mudando-se as palavras, daquele não difere, quando à conceituação. Embora o Código não mais utilize o termo “jurisdição” para a faculdade de ouvir confissões, é ele ainda a nomenclatura clássica, e usada na doutrina canônico-jurídica atual por sua base histórica.

Para melhor entendimento das duas formas de manifestações de poder eclesiástico pelo sacerdote, ainda que, pelo conceito de ambas, possamos já ter vislumbrado o que significam, citamos a distinção entre ordem e jurisdição: “O poder de governar – potestas regendi – os fiéis pelas leis, julgamentos e penas se distingue do poder de santifica-los pela celebração do culto e pela confecção ou aplicação pública dos sacramentos ou sacramentais.” (Vermeersch, A., SJ; Creusen, J., SJ. Epitome Iuris Canonici, I, 312, H. Dessain, Roma, 1927)

Feitas tais considerações, chamemos a autorização de ouvir confissões, ora conforme o texto do Código antigo, “poder de jurisdição”, ora segundo o novo Código, “faculdade de absolver”. Para a doutrina, o nome pouco importa, dado que a substância da conceituação é a mesma.

Com a ressalva de Hortal, retomamos a definição de Del Greco. Ela nos guiará para maior aprofundamento do tema.

“Cân. 966 – § 1. Para a válida absolvição dos pecados se requer que o ministro, além do poder de ordem, tenha a faculdade de exercer esse poder em favor dos fiéis aos quais dá a absolvição.” (CIC)

Não basta para absolver validamente, vemos pela norma do Código vigente, ter recebido o poder da Ordem, i.e., estar incorporado a Cristo em virtude desse sacramento. É preciso ter recebido a faculdade de exercer esse poder de jurisdição, de reger os fiéis em ordem à vida eterna, retomando a lição de citado canonista capuchinho. Um e outro poderes são recebidos de Cristo, através da autoridade competente. “O Bispo, chefe visível da Igreja Particular, é, portanto, considerado, com plena razão, desde os tempos primitivos, aquele que principalmente detém o poder e o ministério da reconciliação: ele é o moderador da disciplina penitencial. Os presbíteros, seus colaboradores, o exercem na medida em que receberam o múnus, quer de seu Bispo (ou de um superior religioso), quer do Papa, por meio do direito da Igreja.” (Cat. 1462) A autoridade competente, segundo a Teologia, expressa no parágrafo citado do documento acima, é o Ordinário, Bispo ou Superior de comunidade religiosa, cf. cân. 966, § 2, e cân. 969, CIC.

O poder recebido na Ordem é decorrente da própria recepção deste insigne sacramento. A existência de um poder de jurisdição, ao lado de um poder de ordem, é conseqüência lógica da doutrina que sustenta a radical ligação entre o sacerdote e a Igreja Particular ou instituto para o qual é ordenado. Proíbe-se a existência dos chamados “clérigos acéfalos” ou “clérigos vagos”, i.e., que não sejam incorporados a uma Igreja Particular, prelazia, instituto religioso ou secular, ou sociedade de vida apostólica. “Cân. 265 – Todo clérigo deve estar incardinado ou numa Igreja particular ou prelazia pessoal, ou em algum instituto de vida consagrada ou sociedade que tenham tal faculdade, de modo que não se admitam de forma alguma, clérigos acéfalos ou vagantes.” (CIC)

Validade e licitude

Todo sacramento, para ser celebrado segundo a doutrina e a legislação católicas, deve apresentar os requisitos de validade e de licitude. Válido é o sacramento que existe. Lícito é o que, além de existir, pode ser celebrado sem nenhum impedimento.

Por isso, se determinado sacramento está eivado de invalidade, podemos tê-lo por nulo, i.e., ainda que externa e aparentemente celebrado, não possui em si efeito algum. Como exemplo, se a Eucaristia é celebrada invalidamente, não estamos falando de verdadeira Eucaristia: o pão é simples pão, o vinho é simples vinho, e não o Corpo e o Sangue de Cristo. Para a validade do sacramento, sua forma, sua matéria, seu ministro e a intenção deste precisam ser válidas, e além disso não deve haver nenhum impedimento de ordem canônica que a Igreja tenha oposto legitimamente usando de seu poder de regime.

Para a licitude, requer-se que, além da validade, o sacramento não encontre nenhuma disposição contrária da Igreja. Por exemplo, a Eucaristia é validamente celebrada por um ministro de determinada comunidade eclesial cismática, i.e., sem plena comunhão com a Sé de Roma, se ele é tido por válido, e a forma, a matéria e a intenção são igualmente válidas; todavia, pela falta da comunhão com a Igreja Romana, o sacramento é válido, porém ilícito. O mesmo se diga da Ordem: conferida por um “bispo” anglicano é inválida, por defeito de forma, de matéria, de ministro e de intenção; conferida por Bispo da Igreja grega cismática, dita “ortodoxa”, é válida, porém ilícita. Outro exemplo: se, pretendendo conferir o Batismo, um sacerdote – ministro válido desse sacramento –, com a intenção correta de fazer o que a Igreja quer – intenção válida –, utiliza água – matéria válida –, mas não pronuncia as palavras pelas quais ministra o sacramento em nome da Trindade, citando as Pessoas divinas nominalmente – forma, portanto, inválida –, a pretensão é inválida; além desses elementos, informados pela Revelação, pelo Direito Divino, pode haver outras condições impostas pela Igreja, que, igualmente por Direito Divino, pode estabelecer normas de Direito Eclesiástico mesmo para a validade do sacramento.

A Teologia, ordinariamente, informa as condições para a validade de um sacramento. O Direito Canônico as condições para a licitude. Entretanto, as duas disciplinas se interpenetram para a completa disposição, envolvendo o assunto normas de caráter doutrinário e jurídico. Resta que a Igreja, por Direito Divino, pode especificar em normas de Direito Eclesiástico humano, as condições para a validade do sacramento, ao lado daquilo que nos é fornecido pela Revelação. Também ordinariamente é do Direito da Igreja, originário de disposição divina, que recebemos pela Igreja as condições para a licitude do sacramento.

Em regras gerais, segundo o manual de Del Greco, as condições para a válida administração dos sacramentos são: o poder divino, e neste está implícito o uso de matéria e forma válidas; e a devida intenção, presente válido ministro. Para a lícita administração dos sacramentos: o estado de graça; a atenção interna; a observância dos ritos e das cerimônias; a imunidade de censuras e irregularidades; e a devida licença.

Em resumo, tanto por Direito Eclesiástico, originário do poder da Igreja dado por Direito Divino, quanto diretamente por este último, nos são dadas condições para a validade e para a licitude dos sacramentos, especialmente aqueles que importam no exercício efetivo do poder de jurisdição como a Penitência. Como nosso trabalho não é propriamente teológico, senão jurídico-canônico, é com base nos cânones e na disciplina do Direito que formularemos a nossa argumentação.

Os detentores da faculdade de absolver

Reza o Código, in verbis:

“Cân. 967 – § 1. Além do Romano Pontífice, os Cardeais, pelo próprio direito, gozam da faculdade de ouvir confissões dos fiéis em todo o mundo; do mesmo modo os Bispos, que dela usam licitamente, em toda a parte, a não ser que o Bispo diocesano num caso particular se tenha oposto.

§ 2. Aqueles que têm faculdade de ouvir confissões habitualmente, em virtude de seu ofício ou por concessão do Ordinário do lugar de incardinação ou do lugar onde têm domicílio, podem exercer essa faculdade em toda a parte, a não ser que o Ordinário local se oponha em algum caso particular, salvas as prescrições do cân. 974, §§ 2 e 3.

§ 3. Pelo próprio direito, gozam em toda parte dessa faculdade, em favor dos membros e de outros que vivem dia e noite na casa do instituto ou sociedade, aqueles que têm faculdade de ouvir confissões em virtude de ofício ou de concessão do Superior competente, de acordo com os cânones 968, § 2, e 969, § 2; eles na verdade a usam também licitamente, a não ser que algum Superior maior quanto aos próprios súditos se tenha oposto, num caso particular.” (CIC)

Podemos, com base no cânon transcrito, esquematizar os detentores do poder de jurisdição ordinária e delegada ab homine:

a) o Papa e os Cardeais têm a faculdade de absolver válida e licitamente em todo o mundo;

b) os Bispos, válida e licitamente, em seu território canônico;

c) os Bispos, validamente em qualquer lugar, e válida e licitamente quando o Bispo diocesano do lugar não se tenha oposto, em um caso particular;

d) os sacerdotes, seculares ou religiosos, que a recebem em virtude de seu ofício ou por concessão do Ordinário do lugar de incardinação ou do lugar onde têm domicílio, válida e licitamente em toda parte, salvo oposição do Ordinário local em um caso particular;

e) os sacerdotes religiosos que a recebem em virtude de seu ofício ou por concessão do Superior religioso competente, em favor dos membros e de outros que vivem na casa do instituto ou da sociedade, validamente em qualquer lugar, e válida e licitamente quando o Superior maior não se opuser, quanto aos próprios súditos, em um caso particular.

Quando o Código utiliza a expressão “em virtude de seu ofício”, está querendo especificar aqueles que a própria natureza de sua função na Igreja Particular exige a jurisdição. No cân. 968, §§ 1 e 2, há a relação: o Ordinário local – Bispo; Prelado; Superior de instituto ou sociedade clericais de Direito Pontifício que a tiverem, de acordo com a legislação própria, e somente para os seus súditos e outros que vivem dia e noite na casa da comunidade religiosa; Administrador Apostólico –, o cônego penitenciário, o pároco e os outros que estão em lugar do pároco. Por concessão, falamos de qualquer sacerdote, secular ou religioso, que receba do Ordinário do lugar de incardinação ou de seu domicílio – lembramos que os religiosos têm domicílio no território canônico da Igreja Particular onde está situada a casa da comunidade a qual está ligado –, ou do Superior de seu instituto ou sociedade.

Assim, se um sacerdote incardinado em determinada Diocese, e lá tenha faculdade de absolver dada pelo Bispo, encontra-se em território de outra Igreja Particular, pode ouvir confissões válida e licitamente, de acordo com as prescrições do Código.

Quanto aos sacerdotes religiosos, i.e., incardinados em um instituto de vida consagrada, e aos sacerdotes membros de institutos seculares ou sociedades de vida apostólica de Direito Pontifício, deve-se considerar que a norma do Código de 1917, no cân. 874, § 2, que exigia a formal apresentação de seu Superior ao Ordinário local para que possam absolver válida e licitamente, está revogada. Na disciplina jurídica atual, basta “que o bispo ouça o Ordinário próprio deles, enquanto possível.” (HORTAL, Pe. Jesús, SJ. Nota  ao cân. 971, in op. cit.) Por outro lado, a norma do cân. 967, § 2, CIC, pode ser aplicada não só aos sacerdotes diocesanos, mas também aos religiosos. Assim, v.g., se um sacerdote da Companhia de Jesus possui a faculdade de absolver dada pelo Ordinário do lugar onde tenha domicílio, pode exercer a jurisdição mesmo fora desse território, quando estiver viajando, ausentando-se do lar. Nisso, vê-se que, mesmo que tal religioso não tenha jurisdição delegada pelo Ordinário do lugar para onde se desloca, nos termos do cân. 971, CIC, a faculdade pode ser usada invocando-se o cân. 967, § 2, CIC.

Faculdade de absolver in periculo mortis

Segundo Del Greco (cf. op. cit., p. 580-585) , a faculdade de absolver pode ser de jurisdição ordinária, da qual já tratamos, de jurisdição delegada ab homine, igualmente estudada no item acima, de jurisdição delegada a iure, e de jurisdição suprida ou supplet Ecclesia.

A jurisdição ordinária dura enquanto durar o ofício ao qual é anexa. Nisto, se um sacerdote tem a faculdade de ouvir confissões em razão de ser pároco, cessa sua jurisdição se for destituído da paróquia restando sem nenhuma, a não ser que disponha diferentemente o Bispo, concedendo-lhe a jurisdição. Também o cônego penitenciário, se deixar o ofício, transferindo-se por outro que não tenha a jurisdição como seu anexo, v.g., responsável pela pastoral vocacional diocesana, deixa de ter a faculdade de absolver, exceto de acumular outro ofício com jurisdição ou por concessão do Bispo.

Quando, por erro comum de fato ou de direito ou por dúvida positiva e provável também de fato ou de direito, a jurisdição dada na ocasião diz-se suprida. Não é outro o teor do cân. 144, CIC: “Cân. 144 – No erro comum de fato ou de direito, bem como na dúvida positiva e provável, de direito ou de fato, a Igreja supre, para o foro externo e interno, o poder executivo de regime.” Erro comum é o que se dá, por exemplo, quando um sacerdote SEM FACULDADE PARA ABSOLVER, no horário costumeiro do atendimento em confissões, esconde-se no confessionário para recitar o breviário sem ser incomodado, e lá é procurado por um fiel que o julga com jurisdição. O sacerdote, nesse caso, não pode absolver, por não ter a faculdade própria, e se o faz peca gravemente e incorre na devida pena canônica. O fiel, todavia, por erro comum, obtém a absolvição porque a faculdade, naquele momento, é suprida pela Igreja. Quanto à dúvida, entende-se que o sacerdote, diante de uma situação excepcional, tendo dúvida quanto a possuir ou não a faculdade de absolver, pode ouvir confissões, nos termos do citado cânon.

A jurisdição delegada ab homine é aquela dada pelo Ordinário ou Superior religioso. “A jurisdição delegada se restringe aos limites do território do que delega. Fora do território, portanto, absolve-se invalidamente. Para os religiosos esta delegação dura, ordinariamente, enquanto um religioso resida numa casa da Ordem, situada na respectiva diocese.” (DEL GRECO, Pe. Fr. Teodoro da Torre, OFMCap. op. cit.) Extraordinariamente, o religioso possui a delegação jurisdicional enquanto não a revogar o Ordinário.

A jurisdição delegada a iure confere a qualquer sacerdote validamente ordenado, ainda que não seja lícita sua ordenação, absolver válida e licitamente os penitentes que estejam em perigo de morte, de qualquer pecado e qualquer censura, inclusive os reservados, e mesmo presente um sacerdote aprovado.

Qualquer sacerdote, até mesmo os hereges e cismáticos, ou qualquer irregular, acéfalo, vago, recebe essa jurisdição in articulo mortis.

“Cân. 976 – Qualquer sacerdote, mesmo que não tenha faculdade de ouvir confissões, absolve válida e licitamente de qualquer censura e de qualquer pecado qualquer penitente em perigo de morto, mesmo que esteja presente um sacerdote aprovado.” (CIC)

Tais casos são urgentes e não podem obrigar que se espere jurisdição conferida ao sacerdote que não a tenha para válida e licitamente absolver ordinariamente. Por isso, a ausência de jurisdição canonicamente conferida pelo Ordinário ou em razão de ofício, é como que suprida pela necessidade pela própria autoridade da Igreja. O Código apenas salienta aquilo que já é ensinado pela Teologia; o Direito não pode nunca se opor à salvação das almas. Comenta Santo Afonso Maria de Ligório, exímio moralista e canonista: “A razão é que de outra maneira muitas almas se perderiam e, por este motivo, se presume razoavelmente a suplência da jurisdição por parte da Igreja.” (De Poenitentia Sacramento, trt. XVI, c. V, n. 90)

O poder de absolver é de Direito Divino e decorre da ordenação; é, portanto, extensão do poder de ordem. Entretanto, como vimos, além do PODER de absolver, é necessária a FACULDADE para o exercício desse poder. Essa faculdade, dada pelo Direito Eclesiástico, é como que suprida pela Igreja, em vista da necessidade. Pelo douto Santo Tomás de Aquino encontramos o reforço na explicação: “A necessidade comporta a dispensa, porque a necessidade não depende da lei.” (S. Th., I-II, Q. 96, a. 6) Que necessidade é mais urgente do que o perigo de morte do penitente, arriscando-se à condenação eterna apenas porque, havendo um sacerdote que possa absolver em virtude da Ordem, não tenha a faculdade para tal? Dessa maneira, a faculdade de absolver é delegada a iure, pelo estado de “necessidade pública ou geral dos fiéis”, como ensina o Pe. Felix M. Cappello, SJ, insigne canonista jesuíta, pois em tais casos “manifestou expressa ou pelo menos tacitamente a vontade de supri-la.” (Summa Iuris Canonici. Pontificia Universitas Gregoriana, Roma, 1955)

Explica-nos novamente o Aquinate:

“Qualquer sacerdote, em virtude do poder de ordem, tem poder indiferentemente sobre todos e para todos os pecados; o fato de não poder absolver todos de todos os pecados depende da jurisdição imposta pela lei eclesiástica. Mas já que a ‘a necessidade não está sujeita à lei’ (Consilium de observ. Ieium. De Reg. Iur. – V Decretal, can. 4), em caso de necessidade, não está impedido pela disposição da Igreja de poder absolver mesmo sacramentalmente, dado que possui o poder de ordem.” (S. Th. Supplementum, Q. 8, a. 6)

À guisa de conclusão

Com a maestria habitual, o douto Mons. Luigi de Magistris, Regente da Penitenciária Apostólica, em Roma, e afamado canonista, disserta, na revista dirigida pelos Legionários de Cristo para a formação permanente dos sacerdotes:

“O sacramento da Penitência, no seu momento conclusivo, da absolvição, ou na penosa hipótese da indisposição do sujeito, da retenção dos pecados, se celebra mediante uma sentença, um juízo. De fato, Nosso Senhor, na instituição do sacramento, conferiu aos apóstolos e através deles aos seus sucessores na ordem sacerdote o poder de perdoar ou reter os pecados, reconciliando deste modo os pecadores com Deus e com a Igreja. E este poder está explicitamente ligado, segundo a mesma palavra de Jesus, com a ação do Espírito Santo, que não é arbitrária, mas subordinada à graça do mesmo Espírito Santo, graça que é mistério de santidade, de sabedoria, de justiça superior. Trata-se, portanto, de um poder que se exercita per modum iudici. Mas, o juízo – não o juízo de índole puramente lógico-cognoscivista, mas aquele de reais efeitos sacramentais, no sentido eclesiológico, social – supõe uma autoridade que deve pronunciar o juízo sobre o indivíduo em relação do qual se emana o juízo mesmo.

A propósito, é indispensável conhecer os ensinamentos do Concílio de Trento: Sessão XIV, De Sacramento Paenitentiae, cap. 2: DB 1671; cap. 5: DB 1679; cap. 6: DB 1585; cân. 9: DB 1709. Destes princípios e motivos de índole teológica se deriva que o poder de perdoar não é de necessidade presente em todos os sacerdotes validamente ordenados (nota: Magistris, aqui, fala de PODER de perdoar no sentido de FACULDADE e não de poder intrínseco à Ordem, pois do contrário, se estaria pondo em contradição com o ensino de Santo Tomás), sejam Bispos ou presbíteros, mas somente naqueles que, com o poder derivante da Sagrada Ordenação, têm também o poder conferido à Igreja em sua ordem hierárquica – potestas clavium. Portanto, originariamente o poder de perdoar pertence aos que na Igreja têm o poder de governo: ao Sumo Pontífice em plenitude, sem limites, seja quanto ao território, seja quanto ao número de fiéis, seja quanto às matérias que devem ser submetidas na confissão sacramento ao juízo da Igreja. Do mesmo modo os Bispos, suposta a comunhão hierárquica com o Sumo Pontífice, como pastores de uma porção da Igreja, definida com critério territorial, ou pessoal, ou ritual, e com determinadas limitações estabelecidas pela suprema autoridade. Nos demais (Bispos que não cobrem um ofício de governo pastoral e os presbíteros) o poder de perdoar ou reter os pecados deriva de uma concessão feita ou pelo Sumo Pontífice ou por um Bispo. Tal concessão pode fazer-se com disposição geral de lei, ou com um ato particular, e isto poder ser ou a colação de um ofício que comporte dentro de um certo âmbito a cura de almas, ou com uma delegação.

Fica claro que o poder mesmo poder ser limitado nos sujeitos que, dentro da comunhão hierárquica, não tenham a potestade suprema. O limite pode referir-se  à extensão territorial ou pessoal com relação aos fiéis. O conteúdo da acusação sacramental; a duração no tempo do poder mesmo etc.

Agora bem, a este propósito se deve recordar que em relação com os fiéis, que correm perigo de morte, cessam todas as limitações, sejam as relativas à extensão territorial ou pessoal, sejam relativas ao conteúdo da confissão sacramental: quer dizer, qualquer sacerdote validamente ordenado, em qualquer situação canônica, pode – e deve – administrar o sacramento da Penitência a qualquer fiel que corra perigo de morte, seja qual for a condição canônica do fiel mesmo. Salus animarum, suprema lex.

Excluído este último caso de perigo de morte, as limitações relativas à extensão, ou âmbito da jurisdição sacramento são óbvias. O Sumo Pontífice, como premissa, não tem limites de jurisdição; os cardeais da Santa Igreja Romana tem ex lege a faculdade de absolver em toda a terra, assim como os Bispos, inclusive os titulares, com o único limite, no âmbito da legitimidade e não da validade, de uma eventual oposição por parte do Bispo local; por lei canônica, quem tem a faculdade de absolver em conexão com um ofício (penitenciário, pároco, capelão militar etc) pode confessar validamente em todos os lugares; assim como quem tem a faculdade delegada, porém estável; salvo oposição por parte da autoridade diocesana local (e aqui ad validitatem) em relação com os fiéis não súditos do confessor, veja-se o cânon 508, CIC. Mas tal extensão repousa sobre uma concessão ex lege: originalmente o poder de absolver por si mesmo se estende somente quando se estende a jurisdição, ex officio, ou delegada, atribuída ao sujeito ou pela suprema autoridade ou pela autoridade diocesana.” (O instante fugitivo da graça, in Sacerdos, nº 23, de setembro-outubro de 1999, seção Caso Pastoral, pp. 44-46)

O tema é simples, mas suas nuances podem revelar-se um tanto complicadas para os que não estão familiarizados com o Direito Canônico, ainda que sacerdotes. Claro que a jurisdição supplet Ecclesia pode se aplicar no caso de dúvida séria, positiva e provável, segundo o disposto no cân. 144, CIC. Todavia, não podemos nos amparar nessa exceção, que só tem razão de ser em benefício dos penitentes. O lógico e moralmente mais justo é incentivar os sacerdotes a conhecer melhor a matéria teológica e canônica com respeito à matéria. Não incorram nossos presbíteros em desconhecimento culpável da lei…

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