“A família: dom e compromisso, esperança da humanidade” (05.10.1997)

Pontifício Conselho para a Família
DOCUMENTO “A FAMÍLIA: DOM E COMPROMISSO, ESPERANÇA DA HUMANIDADE”

Introdução

Este tema, que expressa e reúne elementos fundamentais da família, abre a mente e o coração à amplas perspectivas que partem da certeza da presença do Senhor na Igreja doméstica: “O Senhor está entre vós”, lembrava o Sucessor de Pedro na sua carta às Famílias, Gratissimam sane (n. 18). Esta presença do Senhor, “Cabeça da Igreja” (Ef. 5, 23), que enche as casas de eminente energia (cf. Ef. 5, 27), é a chave e razão desta certeza, que dá consistência à esperança pela qual se aspira e se caminha em direção ao futuro que está nas mãos de Deus, e que nos introduz dinamicamente no Terceiro Milênio. O Santo Padre, João Paulo II, afirmou na Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente: “É necessário, portanto, que a preparação do Grande Jubileu passe, de certa forma, através de cada Família” (n. 28). E anteriormente havia dito que, “o futuro da humanidade passa pela família” (FC 86).

O tema, que em alguns aspectos quero somente abordar de maneira introdutória, tem uma perspectiva cristológica que enriquece, neste campo específico, a reflexão e a oração neste primeiro ano do Triênio de preparação ao Jubileu do Ano 2000, que tem como tema: “Jesus Cristo, único Salvador do mundo, ontem, hoje e sempre” (TMA 40).

O tema “A família: dom e compromisso, esperança da humanidade”, que proponho de comentar, será feito no Encontro mundial das Famílias e do Congresso Teológico-Pastoral1.

O tema escolhido pelo Santo Padre, enquadra-se em um momento histórico, depois da celebração do Ano da Família, que permitiu ponderar mais profundamente as amplas possibilidades da família, assim como os desafios e dificuldades que enfrenta. No primeiro Congresso Teológico – Pastoral, de outubro de 1994 em Roma, o tema central foi: “A Família: coração da civilização do amor”. Os escritos foram publicados.

Nos últimos anos, foram realizados em todo o mundo encontros de caráter internacional, convocados pela Organização das Nações Unidas (ONU), que podemos indicar em um itinerário que vai do Rio a Istambul, desde a Conferência do Rio de Janeiro sobre o meio ambiente em 1992, passando pelo Cairo sobre População e Desenvolvimento em 1994, por Pequim, sobre a mulher em 1995, e pôr último a Conferência de Istambul sobre a Habitação em 1996. Neste mesmo ano realizou-se, também, em Roma, na sede da FAO, o encontro mundial sobre a fome. Estes eventos políticos tiveram realmente uma estreita relação entre si , para não falar de uma relação intencional.

Convém advertir que enfocamos a família, fundada sobre o matrimônio, como instituição natural, com seus fins e bens específicos, célula primordial da sociedade, cuja verdade está enraizada no coração e na experiência dos povos,- faz, portanto, parte do seu patrimônio cultural- realidade que abre-se a todos os povos, de todos os séculos, fiéis ou não fiéis. A nossa reflexão não limita-se somente àquilo que é abordável pela razão, mas de forma especial, temos bem presente a dimensão sacramental do matrimônio com a abundante riqueza que nos oferece a fé. Isto foi evidenciado pelo Concílio (cf .Gaudium et Spes, 49).

1. A FAMÍLIA

O contexto histórico caracterizado por uma série de mudanças e alterações nas modalidades da reflexão, muitas vezes cheias de ambigüidades, que veio instaurando-se, e que de certa forma colocam em discussão a razão de ser e o próprio significado da família, com a sua fisionomia insubstituível e própria, fundada no projeto de Deus Criador, fez com que hoje, seja imprescindível, insistir no artigo (no singular) A família.

É preciso ressaltar o uso do singular: A FAMÍLIA, quando torna-se mais freqüente um uso do plural, AS FAMÍLIAS, pelo fato que o uso do plural, comporta uma negação do modelo da mesma, fundada no matrimônio, comunidade de amor e de vida, de um homem e uma mulher, abertos à vida. Ligado ao conceito original e no singular de A família, está a sua filosofia, o seu fundamento antropológico sobre o qual o Papa abordou muitos aspectos iluminadores do seu magistério2.

Se permanecemos sem confusões, sem concessões indevidas, o modelo da família pensado por Deus, como instituição natural nos distanciamos de uma visão superficial e precipitada, que concebe o matrimônio e a família como simples fruto da vontade humana, produto de acordos frágeis. Consensos, acordos que não oferecem a estabilidade e a identidade como uma riqueza, mas contrariamente, a precariedade, portanto a unidade matrimonial está sujeita a deterioração através de sucessivas erosões que debilitam a família.

No texto de Gênesis 2, 24, o Senhor declara solenemente o projeto de Deus, desde o princípio da criação (“ab initio”: como modelo pensado pelo Criador). Existe uma ordem estabelecida por Deus desde a criação (AP ARCHES) (cf. Mt. 19,4): “Criou-os homem e mulher… Por isso o homem deixará, seu pai e sua mãe e se unirá a sua mulher e os dois serão uma só carne. De modo que não são mais dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o homem o que Deus uniu.”3. O Catecismo da Igreja Católica traz o comentário de Tertuliano: “Não existe nenhuma divisão quanto ao espírito, quanto a carne; pelo contrário,…ali aonde a carne é uma, um também, é o espírito.” (C.E.C., n. 1642). É necessário lembrar que, “carne”, na linguagem bíblica, refere-se não só ao aspecto material do homem , mas ao homem como pessoa, como um todo. São Paulo, na carta aos Efésios, refere-se também a esta passagem da Gênesis (cf. Ef. 5, 31) e a apresenta como o “grande mistério (to mysterion… mega)” (Ef. 5, 32), no que diz respeito à Cristo e a Igreja. O “gran de mistério” (o maior dos mistérios, no processo que refere-se a Escritura), baseia-se no fato que o homem (anthropos: Adão), é o tipo (typos) do amor de Cristo e da Igreja4.

O tema que comentamos, encontra a chave no dom, que tem a sua fonte em Deus, da onde todo dom provêm (cf. Gc 1,17). É o dom recebido na Igreja (“dom da Igreja”) e por ela, através da Igreja doméstica.

O consentimento é o elemento indispensável que constitui o matrimonio, é o dom que os futuros esposos se oferecem reciprocamente numa acolhida livre e explicita . (C.E.C., n. 1626). Este “ato pelo qual os esposos se dão e se recebem” (C.E.C., n. 1627) deveria ser expresso na fórmula que todo o casal deveria saber de memória e exprimir de forma pessoal e significativa.

Poderia dizer-se que a insistência da Igreja em uma adequada preparação ao matrimônio, nas diferentes etapas, busca assegurar que o “SIM” dos esposos tenha toda sua segurança e densidade (cf. C.E:C., n. 1632), já que está na base dos bens e exigências do amor conjugal. Ali se encontra a chave da felicidade, como exprime a bênção nupcial do ritual: “que encontrem suas felicidades doando-se um ao outro”. A celebração liturgica deve expressar tudo que representa esta recíproca entrega entre os esposos, a Igreja e Deus, com este amor derramado em seus corações5.

O dom dos esposos, pontual e permanente, que supõe e exprime uma liberdade madura, com a forma canônica do sacerdote que recebe o consentimento em nome da Igreja, “exprime visivelmente a realidade eclesiástica do matrimônio” (cf. C.E.C., n. 1630, 1631), um compromisso público, com o “vínculo estabelecido por Deus” (C.E.C., n. 1640), vínculo irrevogável que exige fidelidade entre os esposos, e a Deus, fiel no que dispõe a Sua sabedoria. Cristo está presente no coração das liberdades humanas, com a sua potente continuidade, em um ato renovado quotidianamente, com o qual os esposos são quase (“veluti”) consagrados, observa a Gaudium et Spes (n. 48).

Os esposos não podem alcançar suas felicidades e plenitudes fora desta verdade que enriquece o sentido de suas liberdades. Os esposos entregam-se reciprocamente em Cristo, que vai em suas direções oferecendo as energias necessárias para superar as limitações de uma liberdade vulnerável, necessitada, permitindo assim , aos mesmos, de expressar com sinceridade “eu… recebo você… como esposo(a) e prometo de ser-te fiel … por todos os dias de minha vida”6. Estas palavras que acompanham as mãos dos esposos que se cruzam, estão carregadas de significados e devem advertir aos mesmos sobre os riscos de uma traição do amor, que o mundo apresenta como um direito ou até mesmo libertação. Assim, a palavra torna-se inexpressiva e o gesto vazio, insignificante.

2. DOM E COMPROMISSO

A família, fundada no matrimônio, comunidade de vida e de amor, (de “toda vida”, na apresentação do Código do Direito Canônico, can. 1055), tem como “elemento indispensável” que “constitui o matrimônio” em uma troca de consentimentos (cf. C.E.C. 1626).

O consentimento, observa o Catecismo da Igreja Católica, consiste em um “ato humano com o qual os esposos dão-se e recebem-se mutuamente” (GS 48) (C.E.C., 1627). Esta doação recíproca faz-se através da palavra como solene promessa, que vai acompanhada por gestos que evidenciam esta vontade de mútua entrega. O dom que se oferece, a própria pessoa, assume a categoria do dom, quando acolhido – completa o Catecismo- “Eu te recebo como esposa” – “Eu te recebo como esposo”. Este consentimento que une os esposos entre si, encontra sua plenitude no fato que os dois “vão formar uma só carne” (C.E.C., n. 1627).

O consentimento, como expressão deste dom, que constitui o matrimônio, “a aliança matrimonial” e que constitui uma comunidade para toda vida” (C.E.C., n. 1601) é um dom de Deus. Nele encontram a fonte e seu autor. Quando os esposos entregam-se um ao outro, atingem a condição de ser um presente de Cristo , que doa o homem a mulher e a mulher ao homem. É “uma íntima comunidade de vida e amor conjugal, fundada pelo Criador… Portanto é o próprio Deus o autor do matrimônio”(GS 48). No matrimônio, recorda o Concílio Vaticano II, “O Salvador dos homens e Esposo da Igreja vai ao encontro dos esposos cristãos”(GS 48).

É este o projeto da criação pensado pôr Deus no início, que o Senhor santifica solenemente e eleva à dignidade do sacramento. É Deus que une no matrimônio, nessa comunidade “estruturada com leis próprias”, como instituído “estabelecido pela ordenação divina”, que não depende do arbítrio humano (cf. C.E.C., n. 1603). São bem conhecidas as passagens da teologia bíblica que mostram, dentro de uma precisa antropologia, como está fundada no coração humano o chamado à compartilhar, à complementação, à uma acolhida, na realidade do primeiro casal. Nesta união, cujo autor é Deus, O mesmo compromete-se e projeta-se no horizonte da Aliança de Deus com a humanidade, de Cristo com a Igreja. Com particular ênfase escreveu Max Thurian: “Não é um simples contrato que se relaciona com uma fidelidade recíproca. Deus em pessoa realiza este mistério de união lhe dá uma segurança contra os perigos da dissolução. É a característica primordial do matrimônio cristão. O matrimônio é a união em Deus e de Deus…”7

O matrimônio cristão tem uma relação direta com a Aliança de Cristo. Neste sentido o consentimento não é um ato entre dois, mas “triangular” (na expressão de Carlo Rocchetta), como um “SIM” dito dentro de um “SIM” de Cristo e à Igreja. O consentimento dos esposos não pode ser separado da adesão a Cristo. “O tradere se ipsum de Cristo à Igreja, vem mostrar em profundidade, o tradere se ipsum dos esposos”8. O que Deus uniu transformando em “uma só carne” o homem não pode submeter aos seus caprichos nem reivindicar nenhum arbítrio. O matrimônio não é um consenso, fruto de mutáveis acordos humanos, mas uma instituição que funda suas raízes no terreno sagrado: a mesma vontade do Criador. Não é um belo presente dos parlamentos, como resultado de estratégias políticas dos legisladores. O domínio completo pertence a Deus e é Ele quem vem nesta direção e oferece o dom. Comenta Joachim Gnilka: “Não separe o homem o que Deus juntou”(MT. 19,6) é compreensível somente, se pode-se partir do pressuposto que Deus é quem une todos os casais de esposos”9.

O dom expresso no consentimento “pessoal e irrevogável” que estabelece a Aliança do matrimônio, põe o selo de qualidade na doação definitiva e total (cf. C.E.C., n. 2364).

A doação para formar “uma só carne” é uma oferta pessoal, não oferecem-se coisas, que articulam-se em palavras-promessas e funda-se no Senhor. Porque é uma doação pessoal, não entra em jogo , no seu projeto original, a dialética do possuir, do domínio.. Por isto não é destruição da pessoa, mas a realização da mesma na dialética do amor, que não vê no outro uma coisa, um instrumento que se possui, se usa, mas o mistério de uma pessoa em cujo o rosto delineiam-se os traços da imagem de Deus. Só uma adequada concepção da “verdade do homem”, da antropologia que defende a dignidade do homem e da mulher, permite superar plenamente a tentação de tratar o outro como coisa e de interpretar o amor como uma empresa de sedução. Não é um amor que degrada, elimina, mas que exalta e realiza. Só assim decifra-se e é interpreta esta categoria do dom, que libera do egoísmo, de um amor vazio de conteúdo, que é insuficiente e instrumentaliza, e que liga a união simplesmente a um divertimento sem responsabilidade, continuidade, como exercício de uma liberdade que se degrada, alheios à verdade.

Impõe-se, com toda força a categórica declaração conciliar: “O homem, que é na terra, a única criatura que Deus quis para si mesmo, não pode encontrar-se plenamente senão através do dom sincero de si mesmo” (GS 24). Tem, portanto, a dignidade final, não de instrumento ou de coisa, e na sua qualidade de pessoa é capaz de dar-se, não somente de dar.

Os esposos nessa entrega recíproca, na dialética de uma doação total, “formam uma só carne”, uma unidade de pessoas “communio personarum”, a partir do próprio ser com a união de corpos e espíritos. Dão-se com a energia espiritual e de seus próprios corpos na realidade de um amor no qual o sexo é ao serviço de uma linguagem que exprime esta entrega. O sexo, como recorda a Exortação Apostólica Familiaris Consortio, é um instrumento e sinal de recíproca doação: “a sexualidade através da qual o homem e mulher doam-se um ao outro, com os atos próprios, exclusivos do esposos, não é em absoluto algo puramente biológico, mas que diz respeito ao núcleo íntimo da pessoa humana enquanto tal. Ela realiza-se de maneira verdadeiramente humana, somente se é parte integral do amor com o qual o homem e a mulher empenham totalmente um para com o outro” (FC 11).

É muito difícil abordar toda riqueza que contêm na expressão “uma só carne”, segundo a linguagem bíblica. Na Carta às Famílias, o Santo Padre dá um significado mais profundo à luz dos valores da “pessoa” e do “dom”, como o fará também em relação ao ato conjugal, que está incluído nesta concepção da Sagrada Escritura. Assim escreve o Papa na Gratissimam sane: “O Concílio Vaticano II, particularmente atento ao problema do homem e da sua vocação, afirma que a união conjugal- na expressão bíblica “uma só carne”- não pode ser compreendida e explicada plenamente senão recorrendo aos valores da “pessoa” e do “dom”. Cada homem e cada mulher se realizam plenamente através da entrega sincera de si mesmo; e para os esposos, o momento da união conjugal constitui uma experiência particularíssima de elo. É neste momento que o homem e a mulher, com a sua masculinidade e feminilidade, tornam-se dom recíproco. Toda a vida no matrimônio é um dom, mas isto torna singularmente evidente quando os cônjuges, oferecendo-se reciprocamente no amor, realizam aquele encontro que os fazem “uma só carne” (Gên. 2,24). Eles vivem então um momento de especial responsabilidade, pelo motivo da potencialidade pro-criativa vinculada ao ato conjugal. Naquele momento, os esposos podem transformar-se em pais e mães, iniciando o processo de uma nova existência humana que depois desenvolve-se no ventre da mulher” (Grat. sane, 12).

Nesta perspectiva, e comentando o “mistério da feminilidade” na sua Catequese sobre o amor humano, João Paulo II, observa (em relação à Gênesis 4,1): “O mistério da feminilidade manifesta-se e revela-se através da maternidade, como diz o texto: “a qual concebeu e deu a luz”. A mulher está na frente do homem como mãe, sujeito da nova vida humana que nessa é concebida e desenvolve-se, e dela nasce ao mundo. Assim também revela-se em profundidade o mistério da masculinidade do homem, o significado gerador e paterno do seu corpo”. E na nota sublinha: “A paternidade é um dos aspectos da humanidade mais sobressalentes na Sagrada Escritura”10. Tornaremos a este tema quando examinaremos o dom do filho.

À luz da teologia da doação, o Papa reflete sobre a linguagem do corpo e sobre o conjunto da sua expressividade e significação do dom pessoal da pessoa humana. “Como ministros de um sacramento, que constitui-se através do consentimento e aperfeiçoa-se através da união conjugal, o homem e a mulher são chamados a exprimir esta misteriosa linguagem dos corpos em toda a verdade que lhe é própria. Através de gestos e reações, de todo o dinamismo, reciprocamente condicionado da tensão e do prazer, aonde a direta fonte é o corpo na sua masculinidade e feminilidade, o corpo na sua ação e interação, e através deste, o homem “fala”, a pessoa (…). E, exatamente no nível desta “linguagem do corpo” que é algo além da reação sexual e que como autêntica linguagem das pessoas, é colocada abaixo da exigência da verdade, isto é, normas objetivas-, o homem e a mulher exprimem-se reciprocamente de forma mais completa e profunda enquanto os é consentido pela mesma dimensão somática da masculinidade e feminilidade: “o homem e a mulher exprimem si mesmos na medida de toda verdade de suas pessoas”11. Esta relação e dimensão pessoal, assim expressa, “numa só carne”, é relação com o próprio Deus, enquanto o casal, como tal, é imagem de Deus. “Podemos deduzir que o homem se fez a imagem e semelhança de Deus, não somente através da própria humanidade, mas através da comunhão das pessoas.”12

É esta verdade que enaltece e dignifica o que deveria ser transmitido no conteúdo de tal nome, na educação sexual, que mostra a grandeza da sexualidade, na sua dimensão pessoal, como uma linguagem de amor: doação-aceitação-compromisso, que não fecha as pessoas em si mesmas, ou em um ciclo fechado de prazer, sem abertura, mas que se dirige a Deus e adquire novas dimensões de eternidade, ou seja, que não limita-se à atos fugazes que o tempo cancela ou desgasta, mas que se eleva até a própria fonte do amor.

Esta expressão com uma linguagem humana, pessoal, de totalidade, como faz a não marcar a existência em um significativo profundo compromisso? De nenhuma maneira, até depois da morte de um dos cônjuges, permanece algo desta relação. Não discutimos minimamente do direito que tem o viúvo ou viúva de casar-se de novo. Todavia, levando em consideração certas orações bem significativas da liturgia oriental, em caso de novas núpcias, naquelas que não têm exatamente palavras de elogios, mas quase de permissão, tolerância, parece-me que abre-se uma pista de explicação pelo tipo de relação assumida e que não é exatamente indiferente para a pessoa que se é inundada do dom.

É preciso resgatar o sentido da doação, liberá-la, de uma cultura que ameaça a dignidade do homem e da mulher e que destrui a relação pessoal dos esposos, como se o processo da entrega não correspondesse à reservas profundas da personalidade e como se uma ciência, digna de tal nome, não pudesse ajudar a verdade do homem.

Não é o momento de introduzirmo-nos em considerações que o nosso Secretariado fez no Documento que tem o título, onde apresenta o seu conteúdo central: “Sexualidade Humana: Verdade e Significado”. Esta perspectiva é também reconhecida fundamentalmente pelas conquistas da razão, pelo desenvolvimento de uma ciência que aproxima-se realmente ao ser do homem. Uma projeção que supera o egoísmo e considera o outro, é altruísta, não é estranha ao pensamento de Freud. Hoje pode-se denunciar uma tal banalização do sexo que detêm-se em estados e etapas prévias nos quais o egoísmo fecha e isola com a modalidade de uma imaturidade que destrui a linguagem do amor, a verdade, e procura sua vítima no próprio homem e mulher.

Muitas vezes os protagonistas aproximam-se do matrimônio com uma personalidade severamente perturbada por uma cultura falsa que é como uma bomba para o próprio matrimônio. O fato é que a linguagem sexual, como comportamento harmônico e articulado, que está no início da verdade, não deve reduzir-se somente ao aspecto biológico, é às vezes traduzido por escritores da qualidade de Marguerite Yourcenar nas suas “Memórias de Adriano”. Permitam-me de recordar algumas das suas expressões que, parecem-me ilustram a verdade que o magistério quer transmitir. A linguagem dos gestos, dos contatos, passa na periferia do nosso universo ao seu centro e torna-se mais indispensável que nós mesmos, e aparece o prodígio maravilhoso, no qual vejo mais uma assunção da carne pelo espírito que um simples jogo da carne, em uma espécie de mistério da dignidade do outro que consiste em oferecer-me nesse ponto de apoio do outro mundo.13 Existe então uma intuição, não exclusiva do universo da fé, que restitui ao sexo a sua grandeza e o resgata do vazio de um uso instrumental que na cultura do consumismo se parece muito ao desprezável: usa-se e joga-se fora! É a globalização da pessoa que está em jogo, na qual seus atos não são exteriores, quase se pudesse atribuir a outro, numa forma de “irresponsabilidade” básica e infantil. O homem que sente-se incapaz e inseguro de responder pelos seus atos, que assume o tom de jogos provocados por um ser sonolento.

Retornamos a um pensamento de M. Yourcenar que bem transmite uma impressão ética: “Eu não sou daqueles que dizem que suas ações não lhes assemelha. Devem assemelhar-se, porque as ações são a única medida e o único meio de fixar-me na memória dos homens ou na minha mesma… Não existe entre eu e os atos por mim feitos, um hiato indefinível, e a prova, é que eu provo uma continua necessidade de avaliar-lhes, explicar-lhes, e dar conta a mim mesmo”14.Na linguagem sexual o homem exprime-se, de certa forma desenha-se, modela-se e traça o seu destino. O dom, a verdade do mesmo e o seu sentido, adquirem uma estatura e proporção digna do homem. Por isto a Familiaris Consortio sublinha este valor sem o qual o sexo se esvazia, perde sua verdade, até transformar-se em caricaturas e deformações que ferem e desfiguram o que deve brilhar no mistério de uma carne: “o amor conjugal comporta uma totalidade aonde entram todos os elementos da pessoa- chamado do corpo e do instinto, força do sentimento e da afetividade, aspiração do espírito e da vontade-; o amor conjugal dirige-se a uma unidade profundamente pessoal, aquela que, para além da união numa só carne, não conduz senão a um só coração e a uma só alma “(F.C. 13).

O consentimento, o dom recíproco, (recordado antes) é “pessoal e irrevogável”; a doação é “definitiva e total”. Seu local nobre, próprio, único é o matrimônio. Neste a doação é verdade!

Poderíamos dizer que o definitivo é uma qualidade da totalidade da doação. É a superação de uma entrega parcial, a pedaços, por “cômodas quotas” que são homenagens ao egoísmo, ao amor ofuscado por uma realidade do pecado. Um amor assim, perde profundidade, espontaneidade e poesia. Entre os noivos é outra a tonalidade. O amor que se promete, tem ânsia de durabilidade, de “eternidade” ou no fundo não existe. A doação é para toda vida e para todas as circunstâncias. Assegura contra o provisório, o desgaste, a mentira. O que dizer de quem, como um novo passo de “pluralismo” e atitude condescendente no campo jurídico, propõe-se de introduzir legislações de matrimônios ad tempus, de comunhões temporâneas? “Afirmar que o amor é elemento constitutivo do matrimônio é dizer que se não existir aquela mútua entrega irrevogável, não existirá entre os esposos o “foedus coinugale”. As leis, portanto, de unidade e indissolubilidade não são exigências intrínsecas do matrimônio, mas nascem da sua própria essência. E assim, o amor constituinte deve ser o amor conjugal, exclusivo e indissolúvel”15.

O matrimônio dá a garantia da estabilidade, da perseverança, da perpetuidade. Poderíamos dizer que o dom recíproco, “que liga mais forte e profundamente tudo que pode ser adquirido a qualquer preço” (Grat. sane, n. 11), exprime-se numa palavra de compromisso. A. Quilici observa: “um não se doa verdadeiramente enquanto não dá em primeiro lugar e na verdade, a sua palavra. Se não, isto pode parecer uma violação. O dom do corpo não é verdadeiramente humano senão na medida em que cada um dá o seu consentimento, a sua permissão para ir além no diálogo, até intimidade”.16 É uma palavra expressiva, que permanece e compromete profundamente os esposos, de tal maneira que uma doação limitada voluntariamente no tempo faz perder a própria qualidade de um dom total. A palavra exprime um sim profundo que surge da raiz de um amor que quer ser fiel por todo tempo. Assim caracteriza o Cardeal Ratzinger este “Sim”. “O homem, na sua totalidade, inclui a dimensão temporal. Além disso, o “Sim” de um ser humano supera o conceito do tempo. Na sua integridade, o “sim” significa: sempre. Este constitui o espaço da fidelidade… a liberdade do “sim” faz-se sentir como uma liberdade defronte ao definitivo”.17 O amor18 não é necessariamente sujeito à degradação do tempo, como as coisas que se desgastam e perdem pouco a pouco suas energias. Não cai na órbita da lei da entropia. O tempo pode ajudar o crescimento, o amadurecimento diante de Deus, a fazer do amor um compromisso mais sério e profundo. Escutei , em Cana uma interessante promessa e expressão de esposos com idades avançadas: “te amo mais do que ontem porém, menos do que amanhã”. A alegria da serenidade, de um testemunho que possui a sabedoria dos anos, descobre-se em tantos matrimônios de pessoas anciãs nas quais conservam a fresqueza e a ternura confirmadas no tempo.

Em virtude da doação total compreende-se melhor a exigência da indissolubilidade que libera e protege o amor e que não é uma prisão ou empobrecimento. É falso que o matrimônio é a tumba do amor e que o definitivo, a sua indissolubilidade, prive o amor da sua espontaneidade e do seu dinamismo. Isto leva sem dúvida, a uma cultura da precariedade, na qual a palavra se esvazia e é portanto superficial até a irresponsabilidade. Não tolera o peso da verdade que não é caprichosa e mutável como o faz um falso amor que engana. “A possível ausência ou debilitação de fato nas manifestações do amor conjugal não destroem as propriedades e a tendência natural, mesmo se podem obstaculizar, pois umas e outras reclamarão sempre de serem vivificadas pelo amor conjugal.”19

A doação total comporta o dever da fidelidade. É uma forma concreta de dom, que empenha e libera. Um amor fiel é também radicalmente indissolúvel. Libera do temor de trair e ser traído e fornece à fonte da vida, a garantia e a transparência que têm direito os filhos.

Antonio Miralles escreve; “A doação mútua pessoal também exige aos cônjuges a indissolubilidade do vínculo recíproco que estes estabeleceram com tal doação. Ela é total e portanto exclui toda provisoriedade, toda doação temporânea. (…) O vínculo conjugal apresenta um caráter definitivo, enquanto surge de uma doação integral que compreende também a temporalidade da pessoa. O doar-se com a reserva de poder desvincular no futuro, significaria que a doação não é total, mas o contrário daquela que faz nascer um verdadeiro matrimônio”.20

É necessário dizer, que a fidelidade, a indissolubilidade, o caráter definitivo, são essenciais à qualidade do dom. Aqui enraíza-se o compromisso, a obrigatoriedade do dom, empenho que abre-se, também, essencialmente ao dom da vida e que transforma-se em testemunho público na Igreja e na sociedade. É luz. Chama posta sobre a vela.

São João Crisóstomo, comenta maravilhosamente o estilo desta doação dando este conselho ao casal: “Te tomei em meus braços, te amo e te prefiro à minha vida. Já que a vida presente não é nada, o meu desejo mais ardente é vive-la contigo de tal forma que estaremos seguros de não ser separados na vida que nos foi reservada…Ponho o teu amor acima de tudo…”21 A duração, o caráter definitivo da doação conduz, a favor da sua totalidade, à indissolubilidade que é atribuída ao matrimônio natural e que assume uma dimensão mais profunda e expressiva no matrimônio cristão, diante e sobre o olhar do Senhor.

O matrimônio natural possuía “uma certa sacramentalidade”, no sentido amplo, como sinal prenunciador do mistério de tal união, na razão da íntima unidade de uma só carne, introduzida (de alguma forma) no mistério da Aliança de Deus com a humanidade, na linguagem da criação de Deus com seu povo (cf. Os., 1-3), de Cristo com a Igreja.22 “Maridos amai as vossas mulheres como também Cristo amou a Igreja e por ela entregou a si mesmo…Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá a sua mulher; e serão os dois uma só carne. Este mistério é grande, eu digo em relação a Cristo e a Igreja” (Ef. 5,25. 31-33).

Neste texto central da Carta aos Efésios, no versículo 25, o modelo é a doação de Cristo, na linguagem do sacrifício (en auton paredoken) com que se exprime o amor supremo, sem limites: amor sacrificado! O “tradidit semetipsum”, doação total e radical, que é o modelo , é o mistério fundamental que abraça a aliança conjugal. O mistério (cf. v. 32), refere-se ao processo que tem o seu “tipo”, o seu modelo em Cristo e na Igreja. É necessário ter presente que ao falar do grande mistério, o autor indica a importância do mesmo, a sua força expressiva, não a obscuridade. O mistério da união matrimonial de Cristo e na Igreja é reproduzido no matrimônio do homem e da mulher.23

Estamos no âmbito sagrado de uma doação e uma entrega que adquire sua plena iluminação em Cristo, na sua paixão redentora. É o que sublinha o Concílio de Trento na seção XXIV, Dez 1969: “Gratiam vero quae naturalem illum amorem perficeret, et indissolubilem unitatem confirmaret coniugesque sanctificaret: ipse Christus… sua nobis passione promeruit”. Max Zerwick, comentando o texto chave que nos ocupa, escreve: “Sendo assim o matrimônio humano é algo mais que uma simples figura quando realiza-se entre membros de Cristo: deve realizar a união amorosa de Cristo com a sua Igreja. Assim, portanto, o matrimônio não é meramente figurativo, mas é participação real no que Paulo chama o grande mistério”.24

O “tradere se ipsum” de cada um dos cônjuges à semelhança de Cristo, observa Carlo Rocchetta, “é um ato pela sua natureza perpétuo… um sacramento permanente”.25

O consentimento que os esposos se dão e se recebem mutuamente, é selado pelo próprio Deus (cf. C.E.C., n. 1639). O vínculo do matrimônio estabelecido por Deus é irrevogável, de tal maneira que não está no poder da Igreja pronunciar-se contra esta disposição da sabedoria divina (cf. C.E.C., n 1640). Infelizmente foi divulgada a idéia que o Papa e os Bispos poderiam, se superassem as regras, introduzir modificações e abrir portas à dissoluções pelo menos em casos excepcionais. Precisa repetir esta verdade com decisão e amor: isto não está no poder da Igreja. Portanto: non possumus! E não poderia-se pensar que seria subtraída à divina sabedoria, a situação, mesmo se excepcional, de um casal. Retorna a sentença ligada ao projeto original e pensado por Cristo: “Não separe o homem o que Deus uniu” (Mt. 19,6). Como poderia-se, pois, introduzir modificações no nome de Deus, fiel à Aliança que na sua misericórdia tutela e preserva o bem do matrimônio?

Acredita-se, por outro lado, que a indissolubilidade é uma exigência ideal, porém irrealizável. Poderia Deus dar a este empenho, um peso que sendo irrealizável, resultaria inclemente e insuportável aos esposos? Ele, o autor do matrimônio, que vai ao encontro dos esposos cristãos, oferece a sua graça, a sua força para que na igreja doméstica eles sejam capazes de viver na dimensão do Reino.

É preciso refletir, tendo em mãos o Catecismo da Igreja Católica, sobre toda a riqueza do matrimônio no plano de Deus, em todas as considerações que se fazem a respeito do matrimônio na ordem da criação, sobre a escravidão do pecado e em relação ao matrimônio no Senhor. O projeto original de Deus vem considerado neste sentido: “a vocação ao matrimônio faz parte da própria natureza do homem e da mulher, os quais saíram da mão do Senhor” (C.E.C., n. 1603). Não é portanto, uma instituição meramente humana, submetida ao arbítrio do homem. Deus mesmo é o autor do matrimônio (cf. C.E.C., n. 1603).

Responde à natureza da comunidade de vida e amor conjugal, regulada por leis próprias, e acolhe coma alegria e confiança a vontade de Deus. Sobre a escravidão do pecado, o matrimônio é ameaçado pela discórdia, o espírito de domínio, da infidelidade. É uma desordem (oposta à ordem original) que não origina-se da natureza do homem e da mulher, nem da natureza das suas relações, mas do pecado” (C.E.C., n. 1607). Introduzem-se rupturas e distorções, relações de domínio e avidez, porém “a ordem da criação permanece, mesmo se gravemente perturbada. O homem e a mulher precisam da ajuda de Deus e da sua infinita misericórdia, para realizar a união de suas vidas na ordem que Deus criou “no princípio” (C.E.C., n. 1608). Na pedagogia da antiga Lei, “a consciência moral relativa à unidade e indissolubilidade desenvolveu-se”. Na sua predicação Jesus, “ensinou sem ambigüidade o sentido original da união do homem e da mulher”. “Esta invocável insistência na indissolubilidade do vínculo matrimonial é para restabelecer a ordem da criação perturbada pelo pecado” (cf. C.E.C., nn. 1614, 1615). No matrimônio no Senhor, os esposos “seguindo Cristo, renunciando a si mesmos…poderão “compreender” o sentido original do matrimônio e vivê-lo com a ajuda de Cristo” (C.E.C., n. 1615).

3. O FILHO, O DOM MAIS EXCELENTE

Santo Agostinho ensinava: “Entre os bens do matrimônio ocupa o primeiro lugar a prole. Foi o próprio Criador do gênero humano quem quis servir-se na sua bondade dos homens como ministros para a propagação da vida…”26 A Exortação Apostólica Familiaris Consortio declara: “A tarefa fundamental da família é serviço à vida, o realizar no decorrer da história a bênção original do Criador, transmitindo a imagem divina pelas gerações de homem a homem” (F.C., n. 28). São duas as expressões que precisam ser sublinhadas: os pais são ministros e servidores da vida.

A vida deve surgir no matrimônio, como o lugar adequado, o mais excelente, aonde a vida é desejada, amada, acolhida e onde realiza-se todo o processo de formação integral.

O Concílio Vaticano II afirma: “Pela sua natureza a própria instituição do matrimônio e o amor conjugal estão ordenados à procriação e à educação da prole e nestes encontram a sua coroação” (GS., 48). Com forma mais expressiva indica que “os filhos são, certamente, o dom por excelência do matrimônio e contribuem muito ao bem dos próprios pais” (GS., 50). A inclusao desta vigorosa afirmação provêm do desejo pessoal do Santo Padre Paulo VI. O filho é um dom que nasce do dom recíproco dos esposos, como expressão e plenitude da sua mútua doação. É uma maravilhosa corrente de dons que o Catecismo da Igreja Católica põe em relevo : “A fecundação é um dom, um fim do matrimônio, pois o amor conjugal tende a ser fecundo naturalmente. O filho não vem externamente para acrescentar o amor mútuo dos esposos, mas brota no coração deste dom recíproco, portanto é fruto e realização. Por isto a Igreja que “está a favor da vida” (F.C., 30), ensina que “todo ato matrimonial deve ficar aberto à transmissão da vida” (H.V.,11) (…) O homem não pode romper por iniciativa própria, entre os dois significados do amor conjugal: o significado da união e da procriação” (C.E.C., n. 2366). E cita o Catecismo novamente a Humanae Vitae: “protegendo ambos estes aspectos essenciais, da união e procriação, o ato conjugal conserva íntegro o sentido do amor mútuo e verdadeiro e a altíssima vocação do homem e da paternidade” (H.V., 12) (C.E.C., n. 2369).

Os filhos são “um bem comum da futura família”. As palavras do consentimento o exprimam: “Para colocá-lo em evidência, a Igreja faz a eles (aos esposos), uma pergunta, se estão dispostos a acolher e educar cristãmente os filhos que Deus doará a eles (…) A paternidade e maternidade representam um dever de natureza não só física mas espiritual” (Grat. sane, 10). E mais adiante ensina: “quando os esposos transmitem a vida a seu filho, um novo “tu” humano insere-se na órbita dos “nós” dos cônjuges, uma pessoa que chamarão com um novo nome…” (Grat.sane,11).

O Santo Padre posiciona esta doutrina no contexto da teologia do dom da pessoa, e na perspectiva do Concílio, do “dom mais precioso” (G.S., 50).

A existência do filho é um dom, o primeiro dom do Criador à criatura: “O processo da concepção do desenvolvimento no ventre materno, do parto, do nascimento, serve para criar o espaço apropriado, para que a nova criatura possa manifestar-se como um dom” (Grat. sane, 11). Dom para os pais, para a sociedade, para os membros da família. “A criança torna-se dom a seus irmãos, irmãs, a seus pais e a toda a família. A sua vida transforma-se em um dom para os doadores da vida” (ibid).

É preciso respeitar o sentido do amor mútuo e verdadeiro, o significado da recíproca doação aberta a vida. A contracepção propõe objetivamente uma linguagem contraditória a linguagem que expressa uma doação recíproca e total. A linguagem torna-se inexpressiva e portanto, mentirosa. Uma linguagem que não é veículo da verdade, mas de mentira, com a desordem objetivamente implícita na contracepção opõe-se ao amor (de certa forma não consegue nem mesmo tutelar totalmente o significado da união). Só o amor mútuo e verdadeiro que exprime sem reservas a doação total, tem a força própria do amor conjugal. Quando o casal livre e consciente se deixa levar por outra lógica e toma a estrada sistemática da contracepção, não põe talvez uma espécie de bomba do tempo na sua própria união conjugal?

Com particular força e claridade esta verdade é expressa na Familiaris Consortio: “À linguagem nativa que exprime a recíproca doação total dos conjuges, a contracepção impõe uma linguagem objetivamente contraditória, a do não doar-se ao outro: deriva daqui somente a recusa positiva de não abertura à vida, mas também uma falsificação da verdade interior do amor conjugal, chamada a doar-se na totalidade pessoal” (F.C., 32) (Texto integralmente recorrido pelo C.E.C., n. 2370).

Uma análise penetrante entre a união dos esposos e a procriação dos filhos, vem apresentada no livro de S.E. Mons. Francisco Gil Hellín, O matrimônio e a vida conjugal. Diz assim: “Os significados essenciais do ato conjugal, que são de união e procriação, exprimem respectivamente a essência e o fim do matrimônio. Se o amor que leva os esposos à doação formando uma só carne, realiza-se “na verdade”, “em vez de fechá-los em si mesmos, os abre a uma nova vida, a uma nova pessoa” (Grat. sane, 8).

A vida conjugal comporta uma lógica de doação sincera ao esposo ou esposa e aos filhos. “A lógica de entrega total de um ao outro conduz a potencial abertura à procriação” (ibid. 12). A capacidade desta entrega, ou cresce e amadurece com o próprio exercício durante toda a vida conjugal, ou fica inibida pelo egoísmo no qual as situações possuem a tendência a diminuir o dinamismo da verdade que a doação própria possui. Uma das principais manifestações deste egoísmo – “egoísmo, não só a nível individual, como também de casal” (ibid., 14) – é o que vê a procriação não como exigência da verdade do amor conjugal, mas como fruto gratificante e escolha voluntariosa acrescentada ao amor. “No conceito da entrega não está inscrita somente a livre iniciativa do sujeito, mas também a dimensão do dever” (ibid.).

Um amor conjugal que não abraça a dimensão pro-criativa própria da sua verdade íntima, acaba assemelhando-se ao “assim chamado amor livre, muito mais perigoso, pois apresentado freqüentemente como fruto de um sentimento verdadeiro, enquanto na realidade destroi o amor” (ibid). Por isto, a recusa a abertura aos filhos contribui hoje fortemente a minar e destruir a doação conjugal. Não trata-se, como sempre aconteceu pela fragilidade humana, de atos ou de períodos nos quais os cônjuges foram fracos para viver com coerência as exigências de suas paternidade ou maternidade em circunstâncias difíceis ou especialmente heróicas.

Hoje em dia, muitas uniões conjugais provocam suas próprias destruições mudando as coordenadas da doação. “No momento do ato conjugal, o homem e a mulher são chamados a confirmar de maneira responsável o recíproco dom que fizeram de si mesmos com a aliança matrimonial. Agora, a lógica da entrega total de um ao outro comporta a potencial abertura à procriação” (Ibid. 12). Quando se regeita a capacidade do esposo ou da esposa de ser pai ou mãe, aquele dom não respeita as exigências do amor conjugal, e é por isto que o Papa afirma que é essencial a uma verdadeira civilização do amor, “que o homem sinta a maternidade da mulher, sua esposa, como um dom.27 (ibid., 16)” .

Na catequese sobre o amor humano, João Paulo II fala da “linguagem dos corpos” que na união conjugal significa não só o amor, mas também a potencial fecundação e portanto não pode ser privado no seu pleno e adequado significado. Como não é certo separar artificialmente o significado de união e procriação, (cf. H.V.,12), “o ato conjugal privado da sua verdade interior, porque privado da sua capacidade pro-criativa, deixa de ser também um ato de amor”.28

O filho introduz-se na dimensão da espiritualidade do matrimônio que abre-se à vida. Precisaria aqui seguir as pistas de uma reflexão que vai do amor trinitário ao amor conjugal. A família que cresce à imagem da Trindade, o “nós” da família a imagem do “nós” trinitário, inclui o filho que surge do amor total e fecundo. Escreve Carlo Rocchetta: “Segundo a afirmação de I Jo. 4,16, “Deus é amor” (agapé), a suprema plenitude do amor que doa e acolhe; não um “eu” só, fechado em si mesmo, ma um “eu” que vive em si mesmo uma existência de amor interpessoal, uma eterna geração que surge do amor e conduz ao amor, da onde o intercâmbio de dom/acolhida entre as primeiras duas Pessoas alcança a sua plenitude no seu encontro com a Terceira (…) O vínculo sobrenatural entre os esposos é revestido deste valor trinitário. A graça sacramental representa o dom da ontologia trinitária desdobrada no coração dos esposos como semelhança dinâmica que estrutura em profundidade a vida dos esposos e os faz sinais e participação na comunhão tri- pessoal de Deus”.29

Precisa lembrar que o filho ou os filhos, o “bem da prole”, são a razão de ser do matrimônio. Como sabemos, para Doms o sentido do matrimônio e o amor de dois que encontram sua mais profunda expressão, seria a mais íntima e preciosa realização no ato conjugal, em si mesmo, feita abstração da ordenação ao filho. A realização da unidade conjugal justificaria a instituição matrimonial. Numa posição semelhante encontra-se Krempel.30

O Concílio lança uma forte luz para mostrar o sentido pleno do matrimônio e contrasta estas e outras posições similares: “O matrimônio e o amor conjugal estão ordenados pela sua própria natureza (“índole sua”) à procriação e educação dos filhos. Deste modo, os filhos são um dom preciosíssimo (“sunt praestantissimum matrimonii donum”) e contribuem muitíssimo ao bem dos proprios … De conseqência a autêntica pratica do amor conjugal e toda estrutura da vida familiar que nasce sem deixar de lado os demais fins do matrimônio, tendem a capacitar os esposos à cooperar valorosamente com o amor do Criador e Salvador, que através deles aumenta e enriquece a sua família” (G.S. 50)31.

A Familiaris Consortio afirma categoricamente que “a incumbência fundamental da família é o serviço à vida, é realizar, através da história, a bênção originaria do Criador, transmitindo a imagem divina pelas gerações de homem a homem” (F.C., 28).

Na família, santuário da vida, assinala a Encíclica Evangelium Vitae, “dentro do povo da vida e para a vida”, é decisiva a responsabilidade da família, é uma responsabilidade que brota de sua própria natureza”, e mais adiante sublinha: “Por isto, o papel da família na edificação da cultura da vida é determinante e insubstituível. Como Igreja doméstica, a família è chamada a anunciar, celebrar e servir o Evangelho da Vida. É um trabalho que diz respeito principalmente aos esposos, chamados a transmitir a vida, sendo cada vez mais conscientes do significado da procriação como acontecimento privilegiado, no qual manifesta-se que a vida humana é um dom recebido para ser dado” (E.V., 92).

A família anuncia o Evangelho da vida através da educação dos filhos (cf. E.V., 92), celebra o Evangelho da vida com a oração quotidiana, celebração que exprime-se na existência quotidiana e é ao serviço da vida que exprime-se através da solidariedade (cf. E.V., 93). Tudo isto faz parte de uma integral pastoral familiar: “Redescobrir e viver com alegria e com coragem a sua missão em relação ao Evangelho da vida” (E.V., 94).

Não pode, realmente ser separada a família do seu serviço essencial da vida, com tão clara raiz conciliar (cf. G.S., 50, a), e confirmada também no conjunto do magistério e na pastoral da família: “O matrimônio e o amor conjugal estão ordenados- permito-me de repeti-lo- pela sua própria natureza à procriação e educação dos filhos” (G.S., 50). A relação da família com a vida é mais completa, direta e integral. Todos estão convidados à proclamação e defesa da vida.. “É urgente uma mobilização geral das consciências e um comum esforço ético, para por em prática uma grande estratégia em favor da vida. Todos juntos devemos construir uma nova cultura da vida” (E.V., 95). Porém são diversas as formas de aproximação ao objeto formal. “Todos têm um papel importante a desempenhar. Refere-se o Papa à missão dos professores e educadores, dos intelectuais, dos meios de comunicação. Recorda, o Santo Padre, a criação da Academia Pontifícia para a Vida, com suas peculiares funções” (cf. E.V., 98)32.

À esta perspectiva de estreitíssima conexão entre a família e a vida, obedeceu, sem dúvida, a criação do Pontifício Conselho para a Família, em 13 de maio de 1981idealizado pelo Santo Padre João Paulo II, não só em relação à instituição familiar, mas como na missão especial, como Secretariado da Santa Sede, indicada no artigo 141, 3 da Constituição Apostólica sobre a Cúria Romana Pastor Bonus. “Esforça-se [o Pontifício Conselho para a Família], para que sejam reconhecidos e defendidos os direitos da família, também na vida social e política; sustenta e coordena as iniciativas para a tutela da vida humana desde a sua concepção e em favor da procriação responsável”.

A Carta do Santo Padre às Famílias, Gratissiman sane, dá uma sólida base doutrinal e pastoral à integridade do serviço à vida, às famílias e a partir da família. Recordemos alguns aspectos mais importantes. No número nove, dedicado a genealogia da pessoa, escreve: “A genealogia de todo homem: a genealogia da pessoa esta ligada a uma família A paternidade e a maternidade humanas fundem suas raízes na biologia e ao mesmo tempo a superam”. Posiciona-se, pois, em referência a Deus: “O próprio Deus é presente de um modo diferente, como acontece em cada geração “sobre a terra” (ibid.).

O caráter de dom que é o filho, mesmo se, de uma forma lacônica, é mencionado no texto bíblico: “Adão conheceu sua mulher Eva, a qual concebeu e deu à luz a Caim, e disse: Possuí um homem por (auxílio de) Deus”. (Gên. 4,1). É como uma garantia, não obstante o filho concretamente concebido, que será assassino de seu irmão. É uma exclamação alegre por um homem novo! No Novo Testamento, o nascimento de um homem, que “veio ao mundo um homem” (Jo 16,21), constitui um sinal Pascal, como lembra o Papa; Jesus, falando à seus discípulos antes da sua paixão e morte, contrapõe a tristeza, que os atingirá e será semelhante às dores do parto, à alegria no qual estes se transformam como quando se dar à luz a um homem que vem ao mundo (felicidade e alegria diante da vida que nasce, o que não acontece, na cultura da morte, na desconfiança sempre maior que de tal cultura difunde no mundo de hoje, com sociedades doentes, se corre o risco de experimentar sempre de menos). A alegria que na espera e acolhida do novo filho deve encher as casas, transforma-se num processo melancólico, às vezes indesejável, como se o canto dos anjos e dos pastores em Belém não tivesse seu eco em cada casa, com toda humana “pobreza”, como feridas produzidas na humanidade, que tal atitude comporta e contrasta com àquelas de quem quer um filho a todo preço! Contraste que todavia não deve fazer com que o dom do filho seja interpretado como um “direito” que pode ser invocado inclusive recorrendo à atos contraditórios à moral, porque não expressam a verdadeira a doação, no ato conjugal pessoal.

Normalmente o filho concebido, o seu nascimento mais que parecer um compromisso que pesa, não obstante a responsabilidade e sacrifício que comporta, é da parte do novo ser, um convite à festa. Existe alegria pascal! É o verdadeiro significado da expressão de São Irineu: “Gloria Dei vivens homo”. Esta atmosfera em nada reduz a força do compromisso que o dom do filho encarna, como uma grande, dignificante, inevitável responsabilidade.(cf. Grat. sane,12).

No cumprimento alegre desta responsabilidade, da capacidade de responder, em primeiro lugar a Deus, se joga a própria coerência e portanto sua felicidade. No sacramento da reconciliação o exercício ministerial da Igreja que absorve e perdoa os homens de seus pecados é coerente à sua missão profética de anunciar a verdade. Quando o Evangelho é proclamado e vem acolhido no coração, frutifica na dor saudável que prepara para receber o perdão. Só uma comiseração que não nasce do amor cristão, pode induzir a dissimular a verdade, que talvez fere, porém é uma ferida saudável que salva, e a amenizar as exigências morais decorrente da revelação.

Tal atitude certamente não excluirá os fiéis do sofrimento diante das próprias obras desordenadas, porém muito menos conduzirá à alegria do perdão com que Deus os acolhe como filhos que retornam à casa paterna. Estas são as características que guiaram a redação do Manual para os Confessores, preparado pelo Pontifício Conselho para a Família. Neste se apresenta seja a atitude, com a qual os ministros devem sempre acolher e exercer este sacramento, cheia de compreensão e misericórdia, seja a claridade, verdade e competência doutrinal com que devem formar e instruir a quem pode encontrar-se desorientados no pecado.

São difundidos um prejuízo e um erro: aqueles de querer opor a verdade e a misericórdia. Uma “misericórdia” sem verdade seria uma caricatura do que o Senhor confia como missão à Igreja. A Igreja não pode em nome de uma “compreensão” (mal entendida), por assim dizer, “fechar um olho”, passar sem ver, sem denunciar, precisamente como exigência de uma verdadeira reconciliação, para tornar a encontrar o Senhor na verdade e no perdão.

O filho é um o dom para a família; que concentra a sua atenção nele e segue de coração todo o processo, desde a concepção, o nascimento, a educação, com ternura e sentido de reconhecimento, com capacidade de maravilhar-se, de surpreender-se, de descobrir nos diversos momentos o afirmar-se de um novo ser. Tudo isto exige uma pedagogia para que a rotina não devore o que torna harmonioso e gratificante a missão dos esposos e “a carga” não tire a intensidade legítima da plenitude, da alegria. Um conhecido moralista põe nos lábios da criança estas palavras que com prazer transcrevo: “Não temer de acolher-me, de assegurar-me a minha vida como um dever! Este não será para nós um trabalho pesado, mas contrariamente, será um trabalho tão leve até conseguir aliviar a vossa vida oprimida. Eu não sou um patrão despótico (…). Serei capaz de um tal reconhecimento, que me transformarei, para vocês, em uma recompensa maior que vossa fadigas”.33

É o Senhor quem nos ensina com a palavra e com os gestos: “Tomou um menino, pô-lo no meio deles, e, depois de o abraçar, disse-lhes: Todo o que receber um destes meninos em meu nome, a mim me recebe, e todo aquele que me receber, não recebe a mim, mas aquele que me enviou” (Mc 9, 36-37). O sinal de acolhida já leva a mensagem do dom oferecido e na acolhida manda ao Doador de todo bem. Os filhos são uma bênção, uma mensagem transmitida na espontânea ternura que caracteriza especialmente o lar, e antes que sejam vistos como uma carga, são portadores da “Boa Nova” que neles proclama-se e resplende. Diríamos que o Evangelho da família e o Evangelho da Vida que ressoam na Igreja Doméstica, Santuário da vida, são o local da onde o próprio filho proclama a sua dignidade. “Deus Criador o chama a existência “para si mesmo”, e ao vir ao mundo começa, na família, a sua “grande aventura”, a aventura da vida. “Este homem”, tem o direito a sua própria afirmação pela sua dignidade humana. É precisamente esta dignidade que determina o lugar da pessoa entre os homens, e antes de tudo, na família” (Grat.sane, 11).

Este “antes de tudo, na família”, que simplesmente nos adverte da inseparabilidade entre a família e a vida, traz a verdadeira alegria que palpita em cada vida nova com original totalidade.

“O Evangelho do amor de Deus pelo homem, o Evangelho da dignidade da pessoa, e o Evangelho da vida são um único e indivisível Evangelho” (E.V. 2). Na família este Evangelho vive-se como uma aventura que surpreende e provoca a capacidade de maravilhar-se, conservando, como Maria, tudo no seu coração. O mistério de Belém e Nazaré é portador de uma verdade antropológica, da vida como um dom, na dignidade que o amor de Deus assume e alimenta: “O filho de Deus, com a sua encarnação, uniu-se de certa forma a cada homem”.(G.S.22).

Bem pode expressar Hans Urs Von Balthasar: “(…) Em todas as culturas não cristãs a criança tem uma importância somente marginal, porque é simplesmente um estado que precede o homem adulto. Necessita-se da encarnação de Cristo para que possamos ver não somente a importância antropológica, mas também aquela teológica e eterna do nascer, a bem-aventurança definitiva do ser a partir de um sinal que gera e dá à luz”.34

Existem alguns que preferem apresentar a hipótese que “o sentimento da infância” surgiu apenas na metade do século XVI (É a posição de Philippe Ariés). Campanini comenta: “exista ou não a confirmação da hipótese dada por Ariés (…), não existe dúvida que, no Ocidente, por um grande período a criança esteve na periferia, e uma mais breve, porém igualmente rica e significativa fase (que abraça aproximadamente os três últimos séculos da história do Ocidente), na qual a criança foi colocada ao centro da família e, de alguma maneira, de toda a vida social. Este foi o tempo da “puericultura”, que talvez está consumando-se aos nossos olhos pelo efeito de um desenvolvimento tecnológico sempre mais avançado dentro do qual parece não existir lugar para a criança”.35 O autor, profundo sociólogo da universidade de Parma, na peculiar claridade e síntese de suas observações, manifesta a preocupação que a técnica estrague as relações pessoais e que conte mais a tecla que se chama “Sociedade digital” do que na aproximação as pessoas à uma criança.

Na educação estima-se mais a inteligência, (eu diria, um tipo de inteligência), do que a inteira personalidade: O encontro com o “botão”, (a tecla do computador ou dos jogos eletrônicos) toma o lugar do encontro com as pessoas. O fenômeno que Campanini caracteriza como “perda do centro”, leva à perda dos pontos de referência relativos aos valores fundamentais, sobretudo éticos e religiosos, enquanto surge outro quadro de “valores” O computador pode ser um campo aberto à fantasia, à uma fantasia programada e pre-codificada”, porém a criança está no meio de um mundo onde “seu mundo vital” reduz-se. Verifica-se a destruição das estruturas fundamentais de mediações. A principal delas, é a família, no seio da qual em passado se adquiria a maior parte dos conhecimentos. A própria escola abre mais e mais espaço à “informação” fornecida pela máquina. Poderá a família e a escola deixarem de ser os núcleos de proteção?36 Sobre o tema das mediações sociais e família retornaremos mais adiante, já em referência ao conjunto social, as preocupações de Pier Paolo Donati.

É impressionante ver como se perde terreno onde se davam passos promissores para o reconhecimento da criança no seu lugar central, não periférico ou marginal. A criança é um ser ameaçado, já quando é no ventre da mãe, que os parlamentos transformam no lugar das mais injusta sentenças de morte! Enquanto se dão passos firmes na “Convenção dos Direitos da Criança” das Nações Unidas (sem considerar então as relações e oscilações em algumas partes, justamente submetidas ao tratamento das “reservas” por parte da Delegação da Santa Sede), e a Igreja luta por um estatuto de proteção da criança, proliferam os atentados, de toda espécie e não encontra-se sempre a devida coerência entre aquilo que se escreve e promete e a conduta concreta. Existe um abismo de separação entre a “Convenção” das Nações Unidas e certas recomendações do Parlamento Europeu…É ainda muito tímida a reação diante os escândalos que golpeiam e sacodem salutarmente a consciência dos povos, mesmo se tais situações sejam a consequencia de uma permissividade difundida. São as crianças as principais vítimas! Esta atitude pode representar um caminho de retorno depois da prostração.

De acordo com a Familiaris Consortio, n. 26, sobre os direitos das crianças, o Pontifício Conselho para a Família veio explicando, com meios bem limitados, uma mobilização das consciências, especialmente, no que diz respeito à “autoridade” da criança na família e na sociedade. O Santo Padre já havia expressado na audiência geral das Nações Unidas, de 2 de outubro 1979: “A solicitude pela criança, ainda antes do nascimento, desde o primeiro momento da concepção e depois nos anos da infância e da juventude é primária e fundamental prova da relação do homem com o homem” (F.C. 26). O “teste” para a verificaçao do estado de saúde da família e da sociedade é dado pelo cuidado amoroso pelas crianças. Fico muito preocupado em ver que os esposos dao ecessivo peso aos “seus” problemas (como se o filho pudesse ficar às margens) em busca de uma felicidade que se apresenta esquiva e inacessível, longe dos pontos de referência que regularam a vida daqueles que decidem compartilhá-la, deixado em segundo lugar as situações do filho. Não é o divórcio uma prova inconfundível que o filho sofre pela falta de amor”?

A preocupação pelo filho dá em um processo normal, um sentido novo de responsabilidade e o casal não pode resolver “os seus problemas” a perda e o dano de quem se transforma no testemunho da qualidade do seu amor e dos graus de personalidade de quem os deram a vida37. A criança pode transformar-se também numa vítima que reclama seus direitos, mesmo se o faz no silêncio.

Cresce a preocupação pelos custos sociais e pela destruição dos direitos das crianças, porém não se vê como dar continuidade numa sociedade que caiu num sono pesado. Contemplando a criança como dom, na transparência de uma inocência que convida a tratá-lo com um amor privilegiado, comprometido e terno, torna-se mais penoso o contraste da sua negação de fato.! Diríamos que junto ao portal de Belém são mais escuros os riscos dos propósitos de Herodes, como são os massacres físicos e morais, que cobrem as vítimas mais indefesas.

M. Zundel oferece um belíssimo texto que serve também para ver o horroroso contraste: “Quem não se sente impulsionado à oração diante do espetáculo maravilhoso da criança que dorme?. As inumeras possibilidades se ligam à pureza original do dom”38. E pensar nas terríveis matanças que ocorrem! Visitei uma Paróquia no Ruanda: durante o genocídio (que com outras modalidades não termina) foram assassinados no templo e aproximadamente 6000 mulheres e crianças. A humanidade prossegue no seu “autogenocídio”, e refiro-aos abortos que sepulta o próprio futuro!

Se é verdade aquilo que diz Platão, segundo o qual “a educação das crianças, a Paideia, é o princípio de que se vale toda comunidade humana para a própria conservação”, observa um jornalista, temos que dizer que as comunidades que, em lugar de educar os filhos, os usam para o sexo, para a guerra, o mercado, a publicidade, decidiram já sua extinção e bem têm consciência.

Ser filho, por outra lado, exige uma maneira de viver, um comportamento: o filho orgulha-se de seu pai e o manifesta com o gesto de pôr-se em suas mãos, como ato que exprime a suprema confiança que o pai corrigirá tudo aquilo que é errado e desordenado. Reconhece-se como filho quando dialoga com seu pai e o chama na confiada apelação como Abba! É o relacionamento de Jesus com seu Pai, que vai desde a infância até a morte, até o último grito do Filho abandonado do Pai sobre a cruz. Jesus entra numa especial relação, no contexto familiar, com sua Mãe, de cujo ventre provêm. “Bendito é o fruto do teu ventre”. É uma relação que vai muito além dos limites biológicos, e que alcança as dimensões insuspeitáveis de um diálogo que frutifica na obediência pronta, terna, decidida a cumprir a vontade de Deus. “Uma mulher levantou a voz no meio da multidão e disse: “Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos que te amamentaram!” Porém ele disse: “Antes bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põe em prática.” (Lc. 11, 27-28). É um aforismo corrente que Tangum Yeronshami recorreu parafraseando a bênção de Judas sobre José. Jesus não contradiz esta bem-aventurança, que bem sabe merece plenamente sua mãe, mas anuncia uma bem-aventurança superior.39

Os filhos, que são um dom de Deus (Salmo 126, 3), tem a responsabilidade de configurar-se como dom aos pais, obedientes à vontade de Deus, confiando neles, na mesma corrente que leva até Deus. Jesus “Desceu com eles, foi a Nazaré e era-lhes submisso” (Lc. 2, 51) obsoluta perfeição o mandamento: “Honra teu pai e tua mãe, a fim de que tenhas uma vida longa sobre a terra que o Senhor teu Deus te dará” (Êx. 20, 12, Dt. 5,16). “A família cristã é uma comunhão de pessoas, reflexo e imagem da comunhão do Pai e do Filho no Espírito Santo” (C.E.C., n. 2205).

O filho é um dom que fortalece notavelmente o vínculo matrimonial e serve de cimento à compreensão dos esposos que constroem juntos um projeto comum, os faz sair de si mesmos para encontrar-se no seu futuro, que é a vida nova que deles, unidos ao Deus Criador, surgirá. Projetados no filho, constróem seus futuros. De certa forma este, os primeiros evangelizadores de seus filhos, são também por eles evangelizados. O cuidado dos filhos se traduz em confiança, como atitude humana fundamental. Escreve Giuseppe Angelini: “É conhecido por todos (…) o grandíssimo valor que os filhos encontram na compreensão recíproca entre os pais. Mais ainda, que de grandíssimo valor, é necessário falar de uma incapacidade radical dos filhos pequenos a imaginar suas vidas e o mundo inteiro sem esta compreensão” (…). Assim sendo, os filhos serã uma bênção… uma iluminação do sentido amplo da vida40… Uma exigência para receber o dom dos filhos que compromete, é saber empenhar-se; “A verdade no ato generativo exige portanto que, desde o começo, o homem e a mulher prometam-se a si mesmo àquele que deve vir…”41

Todos estes aspectos, que nós nos limitamos a apresentar e que merecem ser aprofundados numa teologia dos valores da “pessoa e do dom”, que alcançam altos graus de grandeza para o fiel, não eram propriamente desconhecidos à sabedoria, na cultura secular. Vejamos Aristóteles: “Os pais amam de verdade os filhos porque os consideram uma parte derivada deles(…). Os pais amam os filhos com a si mesmos, pois os filhos concebidos por eles, são como eles mesmo… e os filhos amam seus pais porque deles tiveram origem (…). Enfim, os filhos são considerados um vínculo e è por isto que os cônjuges sem filhos separam-se mais rapidamente; os filhos são um bem comum para ambos e o que é comum mantêm unido”42.

As relações na família observa Giorgio Campanini, à luz do Evangelho adquirem outras dimensões: “Honra o pai e a mãe” (Dt. 15,4) pode levar à formas variadas de submissão dos filhos; segundo diversos contextos o cuidado dos filhos não foi sempre desinteressado. “O Evangelho introduz no âmbito das relações entre pais e filhos a nova categoria do “serviço”, que não exclui mas supera definitivamente àquela da “autoridade” (Mt. 20, 26), mudando a tradicional relação de submissão”. Diríamos talvez que é enriquecida a concepção e enfoque de uma autoridade imposta ao serviço do crescimento dos filhos. E esta, parece-me, a perspectiva do autor ao recordar: “Entender o exercício da autoridade como realização de um serviço implica que aquele que está em alto faça daquele que está embaixo o centro de suas preocupações”43. É uma subordinação transitória, no Senhor, que realiza-se e leva ao amadurecimento. Novamente, o amor busca o bem do outro, não o próprio domínio. O amor dos pais não deve ser “possessivo”, pois assim tiraria oxigênio aos filhos e impediria seu crescimento. Em tal sentido, a autoridade familiar é “excêntrica” enquanto tem fora dela seu centro.

O filho, centro das preocupações, faz com que os pais inclinem-se à esse bem comum no qual se encontram em pessoal convergência, como profunda urgência vital, existencial, uma forma característica de propósito comum, que desde a sua íntima comunhão realiza-se desde o fruto do seu amor, fruto bento, no duplo caráter de “serviço” e da “provisoriedade”. Projeto e propósito comum que vão desde o momento da procriação até o seu completo desenvolvimento.

No pensamento se S. Tomás como em um útero integral, “o tipo de relacionamento de “submissão” evangélica, (para não esquecer o “estava sujeito” ou “era submisso”) torna-se de valor exemplar para a própria sociedade e para o exercício da autoridade. Assim a autoridade familiar pode ser proposta como tipo ideal de cada forma de autoridade exercitada no espírito do Evangelho”44.

O Catecismo da Igreja Católica observa, dentro desta perspectiva: “A estabilidade, autoridade e a vida de relação no seio da família constituem os fundamentos da liberdade, segurança, fraternidade no âmbito da sociedade” (C.E.C., n. 2207).

O compromisso da educação dos filhos põe em tal perspectiva a autoridade, superando a tendência instintiva a transferir ou amoldar os filhos à própria personalidade e às próprias expectativas, e requer que haja um real empenho de educação na fé (cf. G.S, 48).

4. A FAMÍLIA, DOM PARA A SOCIEDADE

“A família é a célula originária da vida social”. É a sociedade natural em que o homem e a mulher são chamados ao dom de si mesmos no amor…A vida familiar é fundamento da sociedade e iniciação na mesma” (C.E.C., n. 2207).

Nesta necessária dimensão não devo prolongar-me, já que foi tratado em outros momentos e reflexões. Limito-me só à algumas considerações de caráter geral.

O Concílio já sublinhava, no começo do capítulo “Dignidade do matrimônio e da família”: “A salvação da pessoa e da sociedade humana e cristã está diretamente ligada a uma favorável situação da comunhão conjugal e familiar” (G.S., 47). E mais adiante, com termos não menos expressivos, declara: “Porque é o próprio Deus o autor do matrimônio, dotado de muitíssimos bens e fins vários, tudo isto é de suma importância para a continuação do gênero humano, para a perfeição e o destino eterno de cada membro da família, para a dignidade, estabilidade, paz e prosperidade da mesma família e de toda a sociedade humana” (G.S., 48).

A família é um dom para a sociedade e exige desta um adequado reconhecimento e apoio, e das famílias espera-se o assumir de sua missão política.

A exortação apostólica Familiaris Consortio, dedica o capítulo III, da terceira parte, à “participação ao desenvolvimento da sociedade” (nn. 42-48), pois a família, “célula primária e vital da sociedade” (A.A., 11), possui vínculos vitais e orgânicos com a sociedade, porque constitui seu fundamento e alimento continuo mediante a sua função de serviço à vida (…). Longe de fechar-se em si mesma, a família abre-se às demais famílias e à sociedade, assumindo sua função social” (F.C., 42).

Não são fáceis e transparentes as relações entre a família e a sociedade, através do Estado. E isto por vários aspectos. O Estado invade campos que antes estavam reservados à família. E enquanto a democracia abana a bandeira do respeito e da participação, a família se vê cada vez mais colocada em um espaço menor, aonde dificilmente respira, e sente-se acusada e provocada. O poder do Estado torna-se onipotente. De alguma maneira o movimento de privatização, no âmbito da intimidade, bem pode representar uma forma de fuga, e refúgio, em relação aos compromissos que a família tem com a sociedade. Pier Paolo Donati indica: “A família torna-se (…) sob o ponto de vista “psicológico”, uma forma particular de convivência, de comunicação privatizada e “subjetivada”, de pura manifestação de intimidade e afeto, que não incide,- e não deve incidir-, de modo significativo, senão por outras razões de retardo social e cultural”45.

É este um fenômeno complexo que aborda em uma de suas dimensões Paul Moreau, seguindo F. Chirpaz: no mundo de “fora” precisa-se produzir e lutar para viver. É o mundo da competição econômica e dos conflitos políticos. Em troca, é a afirmação de Chirpaz, “o mundo familiar pode parecer, por contrapartida, e em oposição à sociedade, o lugar do privado aquele da relação humana verdadeira”46. A intimidade como refúgio diante da sociedade ameaçada, ou diante do próprio Estado hostil, diante de uma sociedade que gera pena, seria o lugar da autenticidade da verdade e da paz. Curiosamente a cidade atrai, porém às vezes produz desafeição, moléstias, alimenta e nutre o sonho virgiliano do campo diante da cidade insuportável, agressiva e desorganizada. Essa concepção da privatização, que subtrai à família sua função diante da sociedade, pode mascarar-se em todos tipos de razões e comportar atitudes individualistas, egoístas de desinteresse. É a oportuna denuncia de Moreau: “Fugindo deste mundo, no abandono das pessoas honestas como eu, deixo a pessoas sem fé e sem lei”47. Objetivamente é um ato de irresponsabilidade o desertar a “politeia”: “(…) Fugir do perigo não é afrontá-lo e quem se satisfaz com o fugir da sociedade48 (démission de sa qualité de citoyen), chega a ser objetivamente cúmplice da degradação que atinge a sociedade.

Refugiar-se no privado e não opor-se, é uma tentação que facilita a ambição do novo domínio do Estado, que termina não só por não reconhecer na família algo de “soberano”, anterior ao proprio Estado, mas por isolá-la na impotência de quem não tem mais força.

É legítima, também, a preocupação de Campanini: “A moral familiar não tem como exclusivo âmbito de exercício, as paredes domésticas (…). Existe, da parte da família, o preciso dever de concorrer à humanização da sociedade e a promoção do homem. Precisamente porque é, enquanto estrutura, ponto de encontro entre o público e o privado, a família não pode isolar-se na sua própria intimidade (que, entendida privadamente, seria falsa e deformada), mas que chamada a fazer-se cargo dos problemas da sociedade que a circunda. Sobretudo, a instauração desta relação aparece, nas sociedades industriais avançadas, caracterizadas por uma forte incidência da esfera pública na vida familiar, condições quase necessária para o mesmo cumprimento correto da missão educativa”49.

O Santo Padre João Paulo II sublinha a importância da família, a qual deve ser reconhecida como “sociedade primordial” e, num certo sentido, “soberana”. Este conceito, bem interessante, é explicado pelo Papa na Carta às Famílias, Gratisssimam sane, com seus detalhes precisos, tratando da família e da sociedade (cf.Grat. sane, 17).

A família é uma sociedade soberana, reconhecida na sua identidade de sujeito social. É uma soberania específica e espiritual, como realidade solidamente enraizada, mesmo que seja condicionada por diversos pontos de vista. Os direitos da família, diretamente ligados aos direitos do homem, devem ser reconhecidos, na sua qualidade de sujeito, que realiza o desenho de Deus, e exige direitos particulares e específicos, citados na Carta dos Direitos da Família. Recorda o Papa suas raízes nos povos, na sua cultura (aqui escreve o conceito de “nação” e suas relações com o Estado, este reveste uma estrutura menos “familiar” organizado como um sistema político e de forma mais “burocrática”), porém que tem “uma alma” na medida em que responde à sua natureza de comunidade política. É aqui precisamente aonde posiciona-se, na relação da família com “a alma” do Estado, o princípio de subsidiaridade, no quadro da Doutrina Social da Igreja. O Estado não deve ocupar o lugar e a missão que tem a família , violando a sua autonomia. É categórica a posição da Igreja, fundada numa experiência que não pode ser negada: “Uma invasão excessiva do Estado mostraria-se não só irrespeitável como nociva… A intervenção justifica-se, dentro dos limites do princípio mencionado, quando a família não é suficiente para atender o que lhe corresponde” (Grat. sane, 17).

Quando a família, bem necessária à sociedade, não é respeitada, ajudada, mas obstaculizada, cria-se um vazio imenso, desastroso para os povos (ex. O divórcio, a nivelação do matrimônio, “a mera união que pode ser confirmada como matrimônio na sociedade”, a permissividade, etc.). Conclui o Papa: “A família está no centro de todos os problemas e deveres: associá-la a um papel subalterno e secundário… significa causar um grande dano ao crescimento autêntico do corpo social” (Grat. sane, 17).

Como aplicação do princípio de subsidiaridade no campo educativo, é necessário lembrar que a Igreja não pode delegar completamente esta missão!

Devo limitar-me aqui à simples anunciação do problema das mediações sociais, que vão distanciando as famílias dos campos nos quais a sua presença era benéfica e desejada.

Pierpaolo Donati reflete sobre “as novas mediações familiares”, e propõe esta pergunta: “A família não mais mediadora no social? Em alguns campos a família é tratada com um “resíduo” chamado em causa só em casos problemáticos. Difunde-se a sensação que a família deve desaparecer da cena pública. Chega-se até a qualificar como “sobrevivências” o empenho matrimonial, a valorização da estabilidade50. Todavia, Pierpaolo Donati adverte com razão: “De fato, nenhuma investigação no campo confirma hoje a irrelevância da proveniência da família nas esferas não familiares… Portanto se por alguns aspectos e alguns âmbitos, as mediações familiares diminuem ou se perdem, por outros, aumentam e surgem outras novas. No conjunto a importância da família nas várias esferas não familiares… não somente continua a existir, mas aumentada seja nos comportamentos de fato, seja nas exigências de legitimação cultural e também política”51. Existe uma configuração toda nova. Se a família não define o estado social (e pode ser algo positivo), torna-se porém, sujeito de relações imprevistas.

Hoje entende-se que o filho não é um átomo isolado ou um monge no esquema de Leibnitz, uma ilha, uma molécula que flutua no vazio. Retorna a preocupação pelos direitos das crianças. Busca-se o direito à identidade biológica do filho, como também as raízes culturais, étnicas e históricas. Observa Donati:” No passado era a sociedade a impor à família as mediações que esta devia exercitar; hoje, é o indivíduo a gozar do direito de valer-se dessas mediações, de fazê-las emergir e de valorizá-las”.52 Depois observa: “As mais recentes investigações põem em evidência que a família média, de forma diferente do passado, uma quantidade de relações e posições sociais, que esquecem de ser menos importantes de um tempo, mas ao contrário, são mais decisivas para o destino social e a qualidade de sua vida”53.

Este sociólogo reconhece campos em que o desconhecimento estende-se de forma alarmante, especialmente no campo político, que deveria ter o maior interesse, pelo menos em circunstâncias nas quais não podem ocultar-se efeitos e reações negativas54. É acentuada a separação no campo educativo55.

Existe novas formas de mediações, que procedem de um descobrimento mais profundo da família, como sujeito, e isto particularmente no campo de uma visão humanizada, personalizada, por exemplo em tudo que a família representa necessariamente para o crescimento harmônico do filho: A mediação do amor no lar, ou o calor humano no acompanhamento do ancião e o rico suporto de sua experiência na família concebida em forma mais ampla, em razão da solidariedade entre as gerações56. A “subjetividade” da família é muito importante para a formação da identidade pessoal da criança, na qual necessita de um ambiente de família, como um direito fundamental57.

Nestas circunstâncias, precisa dizer que se por alguns aspectos vem esquecida a família como bem social, por outros aspectos emerge o valor da família, como um novo bem58.

Tudo isto vem evidenciar aspectos essenciais da mediação da família, pode talvez, liberar à instituição familiar de outras mediações acidentais da qual, em um determinado momento, pode-se prescindir sem atingir nem o núcleo familiar, nem o tecido social. A família pode ser transmissora de valores, ou centro de mediações que resultem mais decisivos para a qualidade da vida social e para a ética pública. Esta perspectiva coincide com o que diz a Carta dos direitos da Família: “A família constitui, mais que uma comunidade jurídica e econômica, uma comunidade de amor e solidariedade, insubstituível para o ensino e transmissão dos valores culturais, éticos, sociais, espirituais e religiosos, essenciais para o desenvolvimento e bem estar de seus próprios membros e da sociedade”59.

Configura-se nas novas mediações uma nova cidadania da família60. Neste sentido a incorporação na sociedade não se teria em base a família a qual se pertence, (como no passado), como uma espécie de passaporte ou carta de crédito, a partir dos “sobrenomes”. Esta etapa, em princípio parece superada e se fosse assim, seria algo positivo. Na realidade, a incorporação se teria em base a identidade, a harmonia do desenvolvimento da personalidade adquiridas sobretudo em família. Não se verificaria o caso de quem descansa “enquanto seus sobrenomes trabalham”, mas teria importância a profissão adquirida e obtida com a capacidade, a integridade. Nesta perspectiva a família é a primeira escola de virtudes. Numa nova cidadania ocupa lugar destacado o conjunto de novas relações em que a mulher seja amplamente valorizada com seu direitos e deveres e não como “submissa” à uma dependência masculina da qual com razão se preocupam alguns movimentos feministas, (não na versão radical). É este setor no qual se exprime algo mais amplo, como é o respeito dos direitos fundamentais da pessoa humana, que em relação com a família não limita-se ao reconhecimento de menos direitos individuais61.

Em termos de mediações para os valores de autêntica humanidade e a partir da família, hoje fala-se dos altos custos sociais devido a falta de reconhecimento à instituição familiar. Como sociologo, Donati aqui põe o dedo na chaga: “Pode-se observar que, realmente, uma quantidade crescente de problemas sociais nascem da falta de reconhecimento e de apoio das funções de mediações sociais da família. O testemunha o aumento de mal estar, doenças,enfermidades mentais, de degradação, suicídios e tentativas de suicídios entre jovens, do mesmo modo em que é indicativa as carências familiares na persistência da evasão escolar”62.

“A sociedade moderna, observa o mesmo autor, tentou eliminar toda mediação entre o indivíduo e a sociedade”. Buscou a auto realização do “puro indivíduo”, numa “sociedade aberta”, feita de simples indivíduos. O resultado foi perder o indivíduo, e negar a mediação familiar, deixá-lo “sem casa”, com graves conseqüências. O “indivíduo” que determina é um “sujeito fraco”, necessitado de construir “ex novo” formas de mediações sem as quais não podem existir nem “sociedade” nem “sujeito humano” 63.

È necessário uma nova casa, onde a família volta a ter a sua real importância. Não podem coerentemente queixar-se deste vínculo “unidade- nós” universal, ou que não existia altruísmo quando negam-se os valores da identidade de nós que è a família, nas “pequenas solidariedades quotidianas”. A família é necessária para a sobrevivência e existência da mesma cidadania política64. Ninguém pode deixar de lado “uma relação de confiança, ajuda, apoio primário no decorrer da própria vida”65.

Ficar “sem casa”, sem família pelos caprichos suicidas do Estado, é para o ser humano sentir-se reduzido a nada, exposto às intempéries, e ser ameaçado na raiz da sua personalidade. Sejamos sinceros : estes indivíduos fracos são a prova do fracasso de hipóteses aventureiras, de uma péssima antropologia, de um vazio imersos na concepção do ser humano como pessoa e da própria sociedade. Para não alterar totalmente tal direção, como evitar um colapso universal? Este perigo a nível universal ou aquele de uma nação deve fortalecer a reação saudável e a função política e social da família66. Exige também que seja reconhecido o direito da família de “poder contar com uma adequada política familiar da parte das autoridades públicas no campo jurídico econômico, social e fiscal, sem nenhuma discriminação” (Art. IX). A família tem direito de existir e progredir como tal. (Art VI).

Só a aproximação aos indivíduos não basta, pois desconhece “a subjetividade familiar”, a casa como centro e fonte de relações, sem as quais a sociedade se perde!

Os custos sociais do não reconhecimento das mediações familiares, com os obstáculos que tem o perigo de imobilizá-la politicamente e em sua influência social, repetimos, tem suas vítimas sobretudo nas crianças. Impressionam as informações e dados que oferece a Revista Concilium dedicada ao tema: “Aonde estão as nossas crianças?”, aquela que com razão qualifica-se de “catástrofe silenciosa”67, mais penosa porque contrasta com um leque de soluções possíveis. Como não denunciar um terrível vazio de solidariedade e a falta de vontade política de oferecer súbito soluções.

No amplo fenômeno de uma violência injusta que gera morte, às desigualdades e desequilíbrios de oportunidades que cobrem milhões e milhões de vítimas inocentes (sem contar a abominável matança que é o aborto), poderia-se dar uma resposta histórica com uma eficaz mobilização que está no alcance das nossas mãos,: “Se, fosse colocado a disposição dos principais objetivos da política para o desenvolvimento uma décima parte dos meios que nestes dez anos têm sido utilizados no mundo para armamentos, hoje viveríamos com pouca ou nenhuma desnutrição, com um número muito menor de enfermidades e invalidez, com um nível de alfabetização e de instrução muito mais alto, com rendas mais elevadas”68. Esta conclusão fundamenta-se em dados do Comitê Alemão para a UNICEF sobre a situação das crianças no mundo de 199569. O documento ao qual me refiro, por outros aspectos, abre uma porta à esperança: “As condições sanitárias melhoraram no mundo no decorrer dos últimos 40 anos. Mais do que durante toda a precedente história da humanidade70”. “Na última década o aparecer da infância como argumento de interesse público e político foi realmente impressionante…A atenção atualmente orientada às crianças não se consuma no princípio que são “as crianças os cidadãos mais vulneráveis” da sociedade ou o “recurso mais precioso da humanidade”… O século XXI pertence às crianças”71. Abramos portanto o coração à esperança!

Existem outras formas de “pobreza” que atingem vítimas na infância, como se tivessem passado um pente sobre as suas costas e que não limitam-se só à questões econômicas ou de saúde física e que são hoje, objeto de estudo e análises, por exemplo, nos Estados Unidos, como diz um artigo, “De que modo a família, nos E.E.U.U.tornou-se um “tema” liberal”. No campo político, “os liberais interessam-se, (é um subtítulo), pelas questões morais.

São apresentados aqui alguns testemunhos dramáticos: “As provas da crescente pobreza das mães sós e do deteriorar-se físico e mental das crianças, representam o fator mais importante desta troca de mentalidade. O crescimento do número de divórcios e nascimentos fora do matrimônio é hoje considerado a causa próxima que está por trás destas tendências. Se olhamos o divórcio: Nos anos 70 e 80, houve um enorme crescimento do percentual de divórcios nos Estados Unidos, atualmente calcula-se 50%”72. É enorme a incidência na queda das condições econômica73. E o que dizer dos nascimentos fora do casamento!

Aumentam os estudos sérios sobre o impacto inclemente da ausência do sentido da família na infância e na juventude. Como não sentir-se gravemente interpelados os dirigentes de um país, além das denominações políticas? Estabelece-se sem rodeios: “A correlação entre o crime na idade da adolescência e a desagregação da família é clara. Louis Sullivan, ex-secretário do Departamento de saúde…diz que mais de setenta por cento dos jovens homens que encontram-se nas penitenciárias, provêm de famílias nas quais faltava o pai”74. Em troca, “as crianças obtêm resultados melhores, quando esperiemtam o compromisso pessoal e o apoio material de um pai e uma mãe, e quando ambos os pais cumprem com responsabilidade a própria missão com amor… Índices crescentes de divórcio, de traições, e falta dos pais, não são simplesmente manifestações de estilos de vida alternativos, mas de esquemas de comportamento adulto que aumentam o risco de conseqüências negativas para a criança”75.

Estas informações apenas somárias, extraídas de fontes de maior credibilidade, nos mostram a gravidade do problema e a necessidade de fortalecer e ajudar a família no cumprimento das suas mediações sociais, sem as quais, (e não é retórica apocalíptica), as civilizações se desmoronam. Ao centro do problema está uma questão de valores, estilos de vida, comportamentos que incidem na sociedade através da família existente ou ausente. Convém, de todas as formas, ao Estado, ajudar a família, a ter “uma vigorosa ética familiar” . Galston76 crê que, uma democracia justa requer cidadãos virtuosos e que a religião é essencial para a criação da ética das motivações77 que se nutrem na família.

5. ESPERANÇA DA HUMANIDADE

O tema do Encontro mundial do Santo Padre com as famílias abre o coração à esperança.

Mira-se ao futuro com total confiança, não obstante as dificuldades e a hostilidade encontradas, que enfraquece a instituição matrimonial.

A esperança nos situa na perspectiva do terceiro milênio, que oferece uma ocasião para olhar ao passado, fazer balanços, recolher tantas lições da história na peregrinação da Igreja sobre o olhar de Deus em caminho com a humanidade, e sobretudo para celebrar a fé com firmes compromissos, tomando nas mãos o futuro, que pertence a Deus, e diante do qual temos que assumir a nossa responsabilidade. Não podemos desertar nas batalhas decisivas da humanidade.

A família “vincula-se diretamente com o mistério da Encarnação e com a própria história do homem”, observa o Santo Padre na Carta Apostólica Tertio Millenio Adveniente (cf. n. 28), pela ocasião do Ano da Família. Desde Nazaré, onde “o Verbo se fez carne” (Jo 1, 14), liga a mensagem sublime da Sagrada Família, modelo das famílias, fonte inesgotável de espiritualidade e das novas energias que vêem desde o Ressuscitado, que atua, com uma dinâmica transformadora, no próprio coração da história, nessa especial revelação do mistério, na plenitude dos tempos, que identifica-se com o mistério da Encarnação (cf. Tertio Millenio Adveniente, n. 1).

Em Cristo, no qual, “revela plenamente o homem ao próprio homem e faz descobrir a sua altíssima vocação” (G.S. 22), decifra-se também o mistério desta célula primordial da sociedade, comunidade de toda vida e de amor, na qual, como nas bodas de Caná, o Senhor está presente.

O senhor segue em direção às famílias, iluminando-as, fortalecendo e redimindo o seu amor, caminhando junto a elas, num diálogo de premorosa solicitude, que precisa descobrir na fé, na oração. Não em poucas circunstâncias, é uma peregrinação difícil, onde percebe-se a amargura do não obtido, talvez combates perdidos, e da erosão de muitos lares, porém aonde graças ao contato com os peregrinos de Emaús, em uma causa que parecia deixar em pedaços, renasce a esperança.

O amor redimido conserva energias maravilhosas para responder aos desafios e assumir as necessárias responsabilidades, que o Senhor confia à família e sem as quais a humanidade e a própria Igreja estariam condenadas ao fracasso. Se o futuro da humanidade passa pela família, faz-se necessário ponderar as vastas oportunidades que o futuro prepara e pensar que em boa parte, respondendo ao Senhor da história, a família é arquiteta do seu próprio destino. O Papa indica: “É por isto necessário que a preparação ao Grande Jubileu, passe de certa forma, através da Família”. Por acaso não foi através de uma família, a de Nazaré, que o filho de Deus entrou na história do homem? (Tertio Millenio Adveniente, n. 28).

O Senhor, que habitou entre nós (Jo 1,14), que montou, por assim dizer, como sugere a linguagem bíblica, sua tenda, no nosso meio, assim fez, neste lugar concreto de Nazaré, onde Jesus recebeu as primeiras lições, na obediente procura de seus pais.

A celebração do Encontro mundial do Rio requer essa atitude aberta, alegre e contemplativa, na qual o mistério da família descobre e se aprofunda no Senhor. Esta é a razão pela qual queremos que a preparação de tal evento, assuma a forma de uma “catequese”,no qual milhares de familias em diversas partes do mundo estão refeletindo, guiadas pela doutrina da Igreja, em clima de oração, com a certeza que o Senhor as acompanha.

Esperar é algo que está inscrito no dinamismo humano. Faz parte da índole essencial do homem e é fator determinante, escreve um filósofo, o esperar e o modo como se espera78. A existência humana é determinada só pela assunção do presente, mas também pela memória do passado e pela expectativa do futuro, no sentido da esperança ativa, que nos abre para um bem, o conjunto de bens que desejamos. É pois, próprio do homem, esperar, ter esperança. Para o cristão esta esperança se projeta em Deus. Isto gera uma atitude de confiança sem limites na proteção e ajuda de Deus, de tal forma que quando a confiança não se põe em Deus, comenta um autor, a confiança torna-se certeza irresponsável, destinada a ser destruída79.

Se bem, por outra parte, como notava um escritor espanhol, Eugenio D’ors, a esperança era “a virtude que é a pior fama” , e Chamfort, atrevia-se a dizer que “é um charlatão que nos engana sem cessar”, vivemos um momento da história em que é preciso recompor as coordenadas dessa esperança, daquela verdadeira, que como a verdade e o e amor autêntico, não enganam, porque por último não são construções feitas pela mão humana, e em tal sentido, não é “certeza irresponsável”, frágil e enganadora, mas, dimensão necessária que se cimenta no Absoluto de Deus.

Em virtude da grande certeza do triunfo de Cristo, Salvador dos homens, triunfo que é nosso porque nos faz partecipantes, a esperança nos oferece o modelo, a aparênciae e a garantia da confiança. Dá vigor e orientação ao caminhar, como comportamento moral. São João da Cruz falava de um “revestimento de cor verde”80. Esta firme esperança e confiança são absolutas porque se apoiam nas promessas divinas81.

Ensina o Catecismo da Igreja Católica : “A virtude da esperança corresponde a aspiração da felicidade colocado por Deus no coração de todo homem ; esta assume-se na inspiração às atividades dos homens; purifica para ordená-las aos Reino dos céus ; protege contra o desânimo, sustenta em todos os momentos de abandono; dilata o coração na espera da bem-aventurança eterna. O impulso da esperança preserva do egoísmo e conduz à alegria da caridade” (n. 1818).

Com a esperança lançamos para os céus nossa âncora, ali onde o Senhor já uniu. Jesus, que já penetrou na eternidade, é quem volta para este encontro definitivo com a humanidade, que é a parusia. Por isso a esperança nos situa no terreno da história e da escatologia.

Como elevar os nossos corações à esperança, enquanto um conjunto de sinais levam a dúvidas, algumas fundadas, sobre sua sobrevivência, pelo menos segundo os esquemas atuais? Existem sintomas evidentes de erosões, especialmente em alguns países, e anunciam-se fissuras preocupantes nas estruturas familiares em espaços mais amplos. Recordamos como a dúvida sobre a continuidade da família no futuro era alimentada nos foros internacionais, durante o Ano Internacional da Família, na corrente de “A família incerta” segundo as posições de L. Roussell82.

Todavia, pode ocorrer que as projeções representem uma ampliação indevida num plano universal de fenômenos que revestem características preocupantes em determinados países. Também naqueles mais atingidos pela sistemática destruição da família com “a conspiração” do Estado, é necessário perguntar-se se não surgirá no futuro novas tendências e reações firmes que impõem forças políticas, começando com os mais comprometidos esforços pastorais dos cristão, em direção a novos rumos e modificações. Dão-se sinais esperançosos que revelam uma nova dinâmica.

Em todo caso, será possível que povos que receberam abundantes lições da história, caminhem para uma aventura com trágico final ?

Vimos como certas conclusões derrotistas dão pouca consideração, em relação a preocupação fundamental da continuidade da família e com os muitos dados existentes nas pesquisas sociológicas, sobretudo nas respostas dos jovens, que aspiram na grande maioria, formar um lar estável. Outro aspecto seria ver, se de fato a conduta é adequada ao que expressam como ideal83. As amargas experiências de um insucesso social sugerem já a alguns políticos, conseqüentes políticas financeiras e atitudes de apoio e proteção à família.

Nas etapas finais do Ano Internacional da Família respirava-se uma atmosfera mais positiva do que rarefeita, com a qual se deram os primeiros passos e maior tranqüilidade no trabalho em relação aquele início frenético.

Havia falado do novo modo de tratar a família, por exemplo, nos Estados Unidos, já que a família tenta recuperar um interesse político84.

Não podemos deixarmos levar por uma espécie de “determinismo” de sabor fatalista, de tal forma que haja um rendimento sem luta diante do que pareceria ser uma tendência inevitável de eclipse da família. Tratando-se de uma instituição, desejada expressamente pelo Criador, não se deveria manifestar no coração dos povos e das pessoas uma busca do bem necessário para os esposos, os filhos e a sociedade?

Vimos que a família pode ser o centro das mediações sociais, e que existem mediações essenciais prontas a reconhecer e preservar á família como espaço privilegiado da humanidade e salvá-la da mesma. Revela-se, com a ajuda das ciências, uma nova imagem da “cidadania da família”, inseparável da sua missão educadora ao serviço da identidade da pessoa humana. É aqui aonde seguramente temos que procurar as mais ricas possibilidades da família, sem nos apegarmos a outras formas de presença e mediações da mesma, sujeitas a outros momentos da história e modalidades culturais.

Esta mediação necessária nos conduz a privilegiar a dimensão do filho, como caminho real para o resgate da instituição familiar e para seu fortalecimento, precisamente porque os filhos são aqueles em revelam o perfil o modo de ser, e de viver em casa.

Permitam-me um parêntese. Em um Congresso mundial das famílias em Malta, novembro de 1993, promovido pelas Nações Unidas, o principal (e era sintomático) relator convidado foi o sociólogo francês L. Rousell. As previsões para o futuro da família eram carregadas de sombras. Diria-se que morria a esperança. O interroguei no final, como se me movesse a “spes contra spem”, pelo qual Abraão mereceu o elogio. O perguntei se, de verdade não via nenhuma saída, porque assim, a humanidade caminharia para o vazio. Refletiu um momento. Ofereceu-me seu livro, que já havia lido com interesse. E me respondeu: “Começo a pensar em uma luz no final do túnel e é o filho. Sim, nos filhos existe uma luz e uma saída. Mesmo se, essa “saída” não percebe-se na sua obra, confesso que esta é uma pista fundamental.

É o serviço aos filhos, a atenção amorosa a eles, o que pode liberar dos tentáculos do egoísmo, que fecham tantos casais em um “egoísmo entre dois”, e a sociedade os asfixia com valores que provocam as crises da humanidade. Os filhos, frutos do amor, evangelizam e liberam aos próprios autores, unidos em Deus, na sua vida. A missão central do casal, não se opõe, mas dá plenitude ao amor conjugal, e é preservada pelos filhos de reduzir-se ao pensamento de solucionar “seus problemas”, sem deixar espaço a eles, com seus direitos e sofrimentos.

Em muitos lugares a sociedades corre o risco do envelhecimento, sobretudo no espírito, (não tazendo muitas considerações referido ao “inverno demografico”), a luz vem do alto, na nova vida que vem de Deus, vem “do alto” o Senhor, Salvador do mundo.

Seja-me permitido uma observação de caráter artístico. Um prestigioso escultor espanhol, Luis Antonio Sanguino, presenteou generosamente sua obra “Sanctuarium vitae”. É um belíssima escultura, como um canto à vida. Das mãos de Cristo, traspassadas por pregos- mãos de Deus, paneleiro do homem, em forma de berço, surge a vida no recinto luminoso de uma mulher, a mãe: é o ventre do qual o “nasciturus” dorme… Surge como uma árvore, que dá vida, com a família: são crianças de todas as raças. Com rostos sorridentes, em sinal de vitória, levantam seus braços para o céu, para a luz. A luz que no ventre bendito das mães, ilumina o amor dos esposos, das famílias, do mundo, com maior poesia e realismo que só a luz que se percebe no final do túnel. É a luz de quem, desde Nazaré e Belém, ilumina todo homem que vem a este mundo (cf. Jo, 1,9).

Quero concluir esta dissertação artística com outra recordação e reconhecimento ao dom que recebemos.

O célebre artista religioso italiano Enrico Manfrini deu de presente para o encontro mundial um belíssimo baixo relevo da Sagrada Família de Nazaré. O escultor, que enriqueceu o patrimônio artístico cristão com numerosas obras, tem 83 anos e trabalha com entusiasmo juvenil no seu atelier em Milão, ao lado de sua esposa. É um vivo testemunho de um lar realizado na serena felicidade de um casal, que como conta o livro de Tobias, envelhece sobre os olhos de Deus (Tob. 14, 2). Perguntava a mim mesmo: Como a essa idade podem as mãos serem tão dóceis à inspiração que as move, laboriosas e minuciosas como as de um jovem, basta tocar o rosto admirável de José, Maria e Jesus, que enchem de luz a humilde casa, de Nazaré?

Parece-me que o segredo do frescor deste artista está no amor conjugal e dos filhos, com que o Senhor os abençoou. Nazaré, Belém, Caná nos falam da família e da poderosa presença do Senhor que se prolonga na história. Na Carta às Famílias Gratissimam sane o Sucessor de Pedro apontava o “esposo”, que está dentro da família. É Ele quem une os esposos no mistério da sua Aliança; Ele quem renova o amor desta recíproca entrega na comunhão familiar, dom-compromisso, que funda suas raízes em Deus; Ele quem transforma água em vinho e acode e ajuda o novo lar, nessa cadeia de novidades que continua no decorrer dos anos; Ele que contagia com a esperança, porque é Ele a esperança.

_________
NOTAS:
1 O II Encontro Mundial do Santo Padre com as Famílias, se realizará no Rio de Janeiro, nos dias 4 e 5 de outubro de 1997 e será precedido do Congresso Teológico – Pastoral, que se realizará nos dias 1, 2, 3 do mesmo mês, e que reunirá 2500 participantes delegados das Conferências Episcopais, teólogos, pastores e representantes de movimentos apostólicos da família e da vida, de grupos, associações empenhadas na importante causa da Igreja doméstica, santuário da vida. * 2 cf. p. ex., Exortação Apostólica Familiaris Consortio, nn. 11-16: Carta aos chefes de Estado de todo mundo de 14 de março de 1994: Carta às Famílias, Gratissimam sane, nn. 6-12. * 3 Alguns traduzem “um único ser”, tornando mais profundo o significado da expressão bíblica. * 4 cf. H. Schlier, A Carta aos Efésios, Paideia, Brescia 1973, pág. 414 – 415 * 5 cf. Rituale Romanum, Ordo celebrandi matrimonium, n. 74. * 6 Ritual de celebração do matrimônio, citado em Gratissimam sane, carta às familias, n. 11. * 7 M. Thurian, Mariage et Celibat. Dons et appels, Taizé, 1977, pág. 27 -28. * 8 C. Rocchetta, Il sacramento della coppia, EDB, Bolognia, 1996, pág. 42. * 9 Joachim Gnilka, O Evangelho de Mateus, I-II parte Ed. Paideia, Brescia, 1990, pág. 229. * 10 João Paulo II, Uomo e donna lo creò – catechesi sull’amore umano, Città Nuova Editrice – Libreria Editrice Vaticana, 1985, pág. 97. * 11 Ibid., pág. 468, n. 4. * 12 Ibid., pág. 59. * 13 Cf. M. Yourcenar, Mèmories d’Hadrien, Gallimard, Paris 1974, pág. 21-22. * 14 Ibid., pág. 34. * 15 Francisco Gil Hellín, “El matrimonio: amor e instituiciòn”, em Aa.Vv., Cuestiones fundamentales sobre matrimonio y famiglia, Universidad de Navarra, Pamplona, 1980, pág. 239. * 16 A. Quilici, Le fiançailles. Paris, Le Sarment/Fayard, 1993, pág. 135. * 17 J. Ratzinger, Le mariage et la famille…, pág. 311. * 18 “O amor que fala-se é o “amor coniugalis”, isto é, não o simples sentimento e impulso cego e irresistível exposto à instabilidade da paixão, mas aquele afeto “eminentemente humano” que , assim como procede da vontade e assume todas as manifestações da tendência natural. Parte do que é mais nobre da pessoa, afeto da vontade; e dirige-se ao seu fim, abraçando todo o bem da pessoa amada” (Francisco Gil Hellín, o. c., pág. 236-237) * 19 Francisco Gil Hellín, ibid., pág. 240. * 20 Antonio Miralles, Il matrimonio, Ed. S. Paolo, Milano, 1996 pág. 82. * 21 S. Joannes Chrisostomus, Homilia in Eph., 20, 8. * 22 Cf. A. Miralles, o. c., pág. 81. * 23 Cf. H. Schlier, o. c., pág. 415. * 24 M. Zerwick, Carta aos Efésios, Herder, pág. 166. * 25 C. Rocchetta, o. c., pág. 42. * 26 Santo Agostinho, De bono coniugali, 24, 32. * 27 Francisco Gil Hellín, Il matrimonio e la vita coniugali, Libreria Editrice Vaticana, 1996, pág. 237 e 244s. * 28 João Paulo II, Uomo e donna lo creò, pág. 468. * 29 C. Rocchetta, o. c., pág. 101. * 30 Cf. Antonio Miralles, o. c., pág. 74-75. * 31 O Santo Ofício de então, no decreto de 1° de abril de 1944, já tinha recusado a posição representada por Doms e Krempel (Dz-Sch., n. 3838) e Pio XII havia indicado o fim primário e íntimo da procriação, no discurso aos Obstétricas de 29 de outubro de 1951, e havia sublinhado que “tudo o que tem de mais espiritual e profundo no amor conjugal como tal, foi posto, por vontade da natureza e do Criador, ao serviço da descendência” (Matrimonio e famiglia nel magistero della Chiesa, n. 264). * 32 Assim, com o uso escolástico do objeto formal, o Pontifício Conselho para a Pastoral para os agentes sanitários refere-se a saúde na consideração da enfermidade, portanto da saúde que deve ser curada cuidada e é enfocada a enfermidade e a dor humana. (cf. Pastor Bônus, art. 152, 153). * 33 Giuseppe Angelini, Il figlio, una benedizione, un compito, Vita e Pensiero, Milano, 1991, pág. 164. * 34 Hans Urs Von Balthasar, Homo creatus est, Morcelliana, Brescia, 1991, pág. 186. * 35 Giorgio Campanini, Realtà e problemi della famiglia contemporanea, Ediz. Paoline, Torino, 1989, pág. 105. * 36 Cf. ibid., cap VII. pág. 104-111. * 37 O Pontifício Conselho para a Família realizou os seguintes Encontros Pastorais relacionados ao tema da criança: • Os direitos das crianças, em Roma, junho 18-19 de 1992. • A exploração das crianças na prostituição e pornografia, Bangkok (Tailândia), setembro 9-11 de 1992. • O trabalho das crianças, Manilha (Filipinas), julho 1-3 de 1993. • A adoção infantil, Sevilha (Espanha), fevereiro 25-27 de 1994. • Os meninos de rua, Rio de Janeiro (Brasil), julho 27-29 de 1994. * 38 M. Zundel. Recherche de la personne, Desclée, Paris, 1990, pág. 54. * 39 Cf. Pierre Grelot, Jesus de Nazareth. Christe Le Segneiur, vol. I, Ed. du Cerf, Paris, 1997, pág. 298. * 40 G. Angelini, o. c., pág. 172. * 41 Ibid., . pág. 180. * 42 Aristóteles, Etica Nicomachea, VIII, 12. * 43 G. Campanini, Famiglia, in Nuovo Dizionario di Teologia Morale, San Paolo, Milano, 1990, pág. 410. * 44 Ibid., pág. 410. * 45 Pierpaolo Donati, La nuova cittadinanza di famiglia, in Terzo rapporto sulla famiglia in Italia, CISF, Edizioni Paoline, Cinisello Balsamo, 1993, pág. 26. * 46 F. Chirpaz, Diffícile rencontre, Ed. du Cerf, Paris, 1982, pág. 70. * 47 Paul Moreau, Les valeurs familiares. Essai de critique philosophique, Ed.du Cerf, Paris, 1991, pág. 145. * 48 Ibid., pág. 149. * 49 G. Campanini, o. c., pág. 411. * 50 N. Luhmann, quis dar voz científica à hipóteses que os indivíduos não devem ser ligados da proveniência da família. Seu papel é irrelevante (N. Luhmann, O sistema social família, em A pesquisa social, 1989. n. 39, pág. 235-352). Menos ainda deve ser tomada como um “subsistema social”. (Com isto fixa-se a negação concreta da família como sujeito soberano, com direitos específicos). Não pode e nem deve medir nada entre o indivíduo e a sociedade, nem sequer na relação entre os sexos (cf. N. Luhmann, Mulheres, Homens, Iusea, Paris-Lecce, 1992, pág. 52-70). * 51 P. Donati, o. c., pág. 28. * 52 Ibid., pág. 31. * 53 Ibid., pág. 59. * 54 Cf. ibid., pág. 61. * 55 Reconhece Donati a dificuldade crescente de algumas mediações ou o seu caráter redutivo, por ex. a escola, os serviços de saúde, o poder (economia)- com referência a questão italiana. Em geral, mirando alguns países, poderia-se pensar que “parece que a família não existe: existem “o casal”, “as mulheres”, “as crianças”, “os anciãos”, quer dizer, somente categorias genéricas” (o. c., pág. 61). Ressurge o interesse, todavia, em comprovar a importância no campo econômico (na micro e macro economia) (cf. Família e Vida , Revista do Pontifício Conselho para a Família, n. 2/1996). * 56 cf. P. Donati, o. c., pág. 65. * 57 Ocorreria aqui recorrer as válidas apreciações feitas por Butiglione em tratar o tema da família como comunhão de pessoas, e concretamente sobre a função da mãe e do pai (cf. R. Buttiglione, L’uomo e la famiglia. Dino Editore, Roma 1991, pág. 121, 141). * 58 Donati nota: “Subjetividade da família significa, por último, que a família é um bem de mediação e vem a ser um “novo bem ” que é o sentido, vivido e buscado com intencionalidade do sentido próprio, não subordinado ou dependente de outros conteúdos ou contatos variáveis” (o. c., pág. 70). * 59 Carta dos Direitos da Família, Edizi. vaticana, Cittá del Vaticano, 1983, Preâmbulo, E. * 60 Comenta Donati que “se a família não tivesse mais nenhuma referência de cidadania, serviriam menos regras fundamentais de convivência inter-humana, e, com elas, desapareceria a orientação feita da pessoa humana como sentido de pertencer e identificar-se. (o. c., pág. 71). * 61 Abre-se a um conjunto de relações pessoais no interior da família e na relação com a sociedade. O professor de Bolonha observa: “promover a cidadania da família, significa optar por decisões que se movem na direção de um democracia mais completa: uma democracia da solidariedade, participação e autonomia das pessoas individuais como indivíduos na relação uns com os outros” (ibid., pág. 73). Algo desta perspectiva estava inscrita no tema do Ano Internacional da Família pela ONU: “Construir a menor das democracias”. * 62 P. Donati, o. c., pág. 76. * 63 Ibid., pág. 80. * 64 Ibid., pág. 79. * 65 Ibid., pág. 77. * 66 Cf. Art. VIII. Carta dos direitos da Família. * 67 Cf. Concilium 2/1996. Aborda-se a tragédia da pobreza como “catástrofe silenciosa” das 40.000 crianças que morrem cada dia pela desnutrição ou enfermidades. As 150 milhões de crianças que vivem com saúde e crescimento precários e as 100 milhões dos 6 a 10 anos que não vão à escola”. As injustiças seculares, a falta de solidariedade e oportunidades, não obstante trocas favoráveis e novas possibilidades (Concilium, 2/1996, pág. 22). * 68 Ibid., pág. 20. * 69 O parágrafo que recorro continua: “E com mais baixa taxa de natalidade, com menores problemas sociais e ambientais, com menos guerras civis e refugiados e menores conflitos internacionais” (ibid.). Como tenho sérias dúvidas sobre o dado da taxa de natalidade, que provêm de uma visão demográfica não tão correta, prefiro posicionar aqui esta observação. Caberia observar que, se os enormes recursos econômicos que hoje dedicam-se a um controle da natalidade sem contemplação, se orientassem à formação da família, caminharia-se por melhores caminhos. * 70 Concilium, o. c. * 71 Ibid., pág. 22-23. * 72 Cf. Don Browning, Em que maneira nos Estatodo Unidos a família tornou-se um “tema liberal”, Concilium, 2/1996, pág. 52-53. * 73 Dez por cento das crianças brancas e quatorze por cento das negras com pais separados, caíram na pobreza no ano sucessivo (…) Quarenta e cinco por cento das famílias com filhos abaixo de dezoito anos, cuja responsabilidade é sob uma mulher, são pobres, ao contrário dos sete por cento das famílias cuja condição está confiada a um casal” (ibid.). * 74 Artigo citado, pág. 54. Não podemos nos deter nos dados sobre suicídios, doentes mentais, que são assustadores!… O mesmo no que refere-se ao aproveitamento acadêmico. Enormes são os custos! A déclinio econômica, também, tem correlações evidentes, em certas trocas culturais com a tendência “cada vez mais acentuada a resolver o conflito de interesses entre os adultos e as crianças em favor dos primeiros” (ibid., pág. 55). * 75 Beyond Rhetoric, A New American Agenda for children and families, U.S. Government Priting office, Washington, D.C. 1991, XIX, em Concilium, 2/1996, pág. 59. * 76 Galston é um famoso filósofo moral, autor do livro Liberal Purposes (Cambridge University press, Cambridge 1990) (e que inspiraria certos mudanças na política Clinton). Estuda a democracia aristotélica que pressupõe que os cidadãos possuem um grau elevado de virtude e de caráter moral. * 77 Cf. Don Browning, Concilium 2/1996, pág. 65. * 78 Cf. H.G. Gadames, Plato dialektische Ethik, 1931, 138. * 79 Cf. R. Bultmann, Elpis, em Grande lessico del N. T., Paideia, Brescia, II, pág. 518. * 80 San Giovanni Della Croce, Notte oscura, III, 21, 6. * 81 A esperança não é algo marginal, nem muito menos no mundo da filosofia. Kant recordava que toda filosofia se relacionava com quatro interrogações fundamentais, das quais a terceira seria: “O que me é permitido esperar?”. No fundo, comenta J.L. Bruges, toda religião nasce de uma interrogação sobre o futuro (cf. Dictionnaire de la morale catholique, CLD, 1991, pág. 153). Dar também novas exclamações na teologia (ibid.). * 82 Suas hipóteses tem sido objeto de consideração em outras minhas relações. Enfoca especialmente a situação da França e quem sabe de alguns outros países da Europa ocidental. * 83 Outros estudos mostram como cresce o número das relações pre-matrimoniais e do adiamento da data do mesmo. Vários fatores os levam a não abandonar a casa. É novo e preocupante o fenômeno da “adolescência prolongada”. * 84 Se as políticas demográficas e abortistas são lamentáveis, observa-se um esforço de representar, da parte dos políticos liberais, como defensores da família (cf. Concilium, 2/1996, pág. 48-65).

Facebook Comments

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.